A fotografia e o desejo de happening

[15.set.2015]

Ao mostrar Jackson Pollock em ação, os registros de Hans Namuth (1950-51) deram um desenho mais nítido àquele corpo em movimento que já era de algum modo visível nas próprias pinturas. O gesto pode ser intuído de qualquer pintura, seja um Rembrandt, seja um Van Gogh mas, no caso de Pollock e de todos os pintores que foram associados à Action Painting, a reconexão de um resultado com esse gesto que lhe deu origem é um dos sentidos almejados pela obra.

Jackson Pollock, 1950-1. Fotos de Hans Namuth

Jackson Pollock, 1950-1. Foto de Hans Namuth

Na medida em que os artistas se abrem a tantas novas experimentações, acentua-se o desejo de enxergar seus processos de trabalho. Na passagem para os anos de 1960, era possível ver artistas como Allan Kaprow, John Cage, Robert Rauschenberg ou os integrantes do grupo Fluxus produzindo suas obras diante de uma plateia. Os happenings, como Kaprow batizou esses eventos, buscavam aproximar o público do processo de criação, incorporando improvisos e abrindo-se à interação dos presentes.

Mas os happenings, que deveriam desmistificar o gesto do artista, correram muitas vezes o risco de fetichizá-lo ainda mais. Para alguns, essa era a oportunidade de de participar da realização de uma obra, para outros, era a ocasião de ser abençoado pela presença de uma figura cultuada.

Os admiradores da fotografia não ficaram imunes a esse desejo de happening. Mas havia aqui um paradoxo: entendida como uma arte do instante, a fotografia moderna se pensou muitas vezes como um fazer sem processo. Nesse caso, o “acontecimento” é a própria imagem, que se resolve numa ação discreta e econômica que tem a duração do próprio instante.

Maneira simplista de pensar a fotografia, essa ideia cai por terra quando vemos a folha de contato de um fotógrafo: nele, percebemos que a presença do fotógrafo no local foi planejada, que cena foi antevista, mapeada, cercada, que a imagem foi testada, refeita, negociada, e posteriormente editada. Os modos singulares de aguardar esse instante já são passíveis de análise (como demonstrou Maurício Lissovsky, no livro Máquina de Esperar, 2008). Mas, ao isolar e supervalorizar o momento da tomada, cria-se a ideia de que a imagem surge como uma comunhão repentina entre o olhar e o mundo. Essa mística serve também para reintroduzir a ideia de “dom” numa produção que tantas vezes foi entendida como mecânica, desprovida de espiritualidade.

Se o fazer da fotografia é assim inapreensível, o que pode então responder ao desejo de happening? O que pode ser oferecido como espetáculo? Ainda há, pelo menos, um corpo em torno desse instante, e pouco importa se conseguimos ou não relacionar suas ações às imagens. Vale um pouco de tudo: como o fotógrafo empunha a câmera? Como ele caminha? Como ele ocupa o espaço? Como seu corpo se porta diante da cena?

O cinema, seja ele documental ou ficcional, permite localizar no trabalho com fotografia os movimentos desse corpo celebrado. Aqui vão quatro exemplos:

1. Comentando um clip mostrado na exposição de Cartier-Bresson, no Centro Georges Pompidou (2014), a fotógrafa Viviane Li traz o seguinte relato em seu blog:  Cartier-Bresson tinha a leveza nos pés (light on his feet), ele manobrava seu corpo alto e esbelto como um pardal com pés de bailarino. Ele era rápido, delicado, furtivo, um observador intenso. As luvas de couro que vestia não o deixavam moroso. Com sua câmera de alça encurtada, ele às vezes a segurava abaixada pelo seu canto direito, atrás de suas costas, enquanto caminhava e observava. Antes que seus retratados pudessem perceber que estavam sendo fotografados, ele já havia feito sua tomada discretamente e ido embora. Você tem verdadeiramente a sensação de estar assistindo a um mestre trabalhando.

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2. Sal da Terra (Juliano Salgado e Win Wenders, 2014) é um documentário feito de imagens exuberantes (já escrevi sobre o filme aqui no Icônica). Além disso, encontramos nele a história de Sebastião Salgado, vemos seu rosto e ouvimos sua voz. Feito para um grande público, o filme frustra aqueles que gostariam de conhecer um pouco mais de seu processo de trabalho: como ele viabiliza seus projetos, como chega aos lugares que escolhe, como negocia sua presença com as comunidades que fotografa, como edita e imprime suas imagens. Essa é uma escolha do filme, não é de modo algum uma limitação do fotógrafo. Resta buscar no fotógrafo a capacidade de realizar uma performance tão exuberantes quanto as imagens que produz. É assim que, numa montagem hábil, o documentário irá alegorizar a profunda identificação que Salgado tem com os animais que fotografa para o projeto Gênesis.

3. Em Blow-up (Michelangelo Antonioni, 1966), o diretor também imprime extravagância às performances de Thomas, seu personagem fotógrafo. Até certo ponto do filme, temos a ilusão de estar diante de um homem moderno, plenamente realizado, exercitando a desenvoltura e o poder que a câmera lhe dá. No estúdio, ele usa sua autoridade, manipula suas modelos, exige delas um desempenho à sua altura e, em seguida, as abandona. No parque, ele se corre e saltita com uma vitalidade juvenil. No decorrer da trama, a própria fotografia irá destitui-lo de sua arrogância e mostrar sua incompletude. O fracasso do personagem se revelará também em sua performance: um bom modo de ver o filme é ficar atento às inúmeras ações inacabadas e gestos sem propósito que o personagem acumula.


4. A vida secreta de Walter Mitty traz a nostalgia dos bons tempos do jornalismo que a internet e os homens de negócio destruíram. Tímido, sonhador, desengonçado, Mitty é o oposto de Thomas, de Blow-up: ele é um homem mal adaptado a seu tempo. É ele quem cuida do arquivo de negativos da legendária revista Time-Life que, em seu processo de restruturação, está prestes a extinguir seu departamento. Sua redenção está nas mãos de um fotógrafo misterioso, que se desloca pelo planeta de modo fugidio. Para encontrá-lo, Mitty é obrigado a enfrentar aventuras semelhantes às de sua fantasia. Finalmente, ele encontra o fotógrafo em plena ação. E se depara com a sabedoria de uma espécie de eremita, alguém que é capaz de superar o caráter utilitário de seu instrumento de trabalho. Aqui, o fotógrafo atinge sua plenitude mística, desapegada de toda a materialidade, inclusive a da própria fotografia. Nesse mundo marcado tanto pelo pragmatismo quanto pela banalidade das imagens, para o fotógrafo, basta a contemplação. E, para Mitty, ele próprio transformado, bastará ter presenciado a performance de seu herói. Como bom comediante, o diretor tem o cuidado de não levar seus personagem tão a sério: depois de um momento tão sublime, o fotógrafo convida Mitty a se juntar à diversão mundana de uma pelada de futebol. A redenção de Mitty se completa quando ele descobre que, enquanto perseguia o fotógrafo em sua busca espalhafatosa, o fotógrafo sempre esteve muito próximo, mas com gestos discretos e invisíveis.

Uma resposta a esse culto ao instante se esboça quando a fotografia passa a ser utilizada pelo artistas conceituais que nascem daquele mesmo ambiente de experimentações que deram origem aos happenings. O discurso parece agora se inverter: em lugar de uma imagem exuberante produzida por um gesto invisível, começamos a ver uma fotografia assumidamente banal, que não reivindica nenhuma qualidade plástica ou técnica, mas que exalta suas estratégias de construção, que expõe seus procedimentos e explicitam os conceitos de que parte.

O discurso que destaca demais esse “processo quase sem imagem” é tão frágil quanto aquele que supõe uma “imagem sem processo”. Para a crítica, é importante superar essa cisão e investir nos tantos matizes que podem existir entre uma coisa e outra.

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Este texto é um prelúdio à apresentação que farei na UFRJ, numa mesa sobre “Processos e Performances”, no Colóquio O Cotidiano na Fotografia Brasileira Contemporânea (16 a 18/09).

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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