Fotógrafos não são normais #1

Joaquin Phoenix e Gwyneth Paltrow, no filme "Amantes", de James Gray.

Joachim Phoenix e Gwyneth Paltrow, no filme “Amantes”, de James Gray.

Nesta semana, encontrei mais um personagem-fotógrafo no cinema, no filme Amantes, de James Gray, com Isabella Rossellini, Gwyneth Paltrow e Joachim Phoenix (é o filme que ele foi divulgar no David Latterman, barbudo e quase catatônico). É a história de um jovem com tendências suicidas, dividido entre uma boa moça e a mulher que ama, entre os negócios da família, o ócio e a fotografia. É bom, vale a pena ver.

A fotografia é só um detalhe no filme, mas lembrei de uma pergunta que fiz recentemente ao Fernando de Tacca (que tem pesquisado obras do cinema e da literatura atravessadas pela fotografia): Por que os fotógrafos dos filmes e dos livros são sempre complexos, enigmáticos, introspectivos, perturbados? Exemplos: o paranóico Martin de A Prova, o atormentado Aleksander de Antes da Chuva, o aventureiro Russell de Sob Fogo Cerrado, o arrogante Thomas de Blow-up (personagem que, apesar de todos os fracassos morais e afetivos, levou muita gente a querer ser fotógrafo).

Ao que parece, a fotografia é um ingrediente que ajuda a dar profundidade aos personagens. Faz algum sentido: é uma atividade solitária, fonte de experiências (fotógrafo sempre tem histórias pra contar), que sempre se dá no embate entre a pulsão das emoções e a responsabilidade da comunicação.

Mas a questão que mais me intriga: por que fotógrafos são incompetentes – no mínimo, complicadíssimos – para os relacionamentos amorosos. Quem souber, responda!

Quem quiser ver o texto de Fernando de Tacca, está publicado na revista eletrônica Studium, sob o título “Fotografia e Cinema: Intertextualidades“. Em breve, ele deve publicar uma nova pesquisa sobre Fotografia e Literatura, que já foi mostrado no último Intercom.

Quanto aos filmes, vários deles nunca foram lançados em DVD. Garimpando, dá pra achar em VHS, ou no submundo das redes.


Quando a imprensa inventa o fato que noticia

No domingo, 4/10, o caderno Mais da Folha de S. Paulo trouxe uma série de reportagens sobre corrupção. Um belo trabalho. A última matéria mostrava, passo a passo, como um jornalista conseguiu comprar uma carteira de motorista falsa. Narrativas assim são muito saborosas, primeiro, porque são cheias de detalhes; segundo, porque dão a sensação de que foi dado um flagrante no bandido. Juro que preciso pensar melhor, mas acho que tenho certo pudor quanto a reportagens desse tipo, porque, de certo modo, o jornalista ajudou a criar o fato que noticiou. Fico imaginando algumas coisas absurdas, mas idênticas na estratégia: e se um jornalista decidisse fazer uma reportagem participativa sobre prostituição infantil? Ou, então, se a reportagem não desse certo e o repórter fosse flagrado tentando comprar um documento falso? Ele iria dizer: está tudo certo, pessoal, sou da Folha!

Já aconteceu algo parecido. Em 1996, quando duas jornalistas do JB entraram no berçário de um hospital em Brasília para provar que a segurança era frágil. Pegaram um bebê mas foram detidas na saída pelos seguranças. O jornal protestou: estavam no exercício da profissão.

Os funcionários que roubaram a prova do Enem na gráfica alegaram que não pretendiam vender a prova aos alunos, apenas ao jornal. Ou seja, roubaram a prova para vender a notícia do roubo do prova… Mesmo que os argumentos não sejam verdadeiros, já vemos na defesa a tese de que o jornalismo é um território de exceção.

Até aqui, a questão é: é legítimo corromper para demonstrar que existe corrupção? Mas não se trata só de moralismo. É que eu tendo a achar que esse tipo de experiência visa mais o espetáculo (uma espécie de thriller policial) do que a informação ou o debate.

No final das contas, não me parece muito diferente do jornalismo da revista Caras, que convida as celebridades para um fim de semana na ilha, e depois dá em primeira mão as notícias sobre fatos que a própria revista gerou, as festinhas, os passeios, os flertes.

Valeria pensar sobre como a fotografia participa disso, mas será questão para outro post.


A invenção de um mundo

Para quem acompanhou as atividades em torno da exposição “A invenção de um mundo”, esta foi uma semana intensa. Foi um privilégio estar ali, agradeço muito ao Eder Chiodetto. E, como sou suspeito, vou fazer só um breve comentário.

Estivemos ali constatando que toda fotografia tem alguma dose de invenção. Mas gostei muito do modo como Monterosso diferenciou a experiência dos artistas presentes naquela exposição. Ele disse mais ou menos assim, tentando sintetizar o debate entre Rubens e Soulages:

“Às vezes a fotografia inventa um mundo para afirmar os códigos, às vezes, inventa um mundo para romper com os códigos”.

É isso. A distinção é, no final das contas, entre uma fotografia que esconde seu modo de funcionamento e outra que o revela.

Também deixo um recado pro meu parceiro de blog: quando é que vamos ter a chance de ver um artigo, quem sabe uma exposição, sobre esses anônimos dos álbuns e dos postais que você mostrou? O material é incrível!


E a fotografia de José Oiticica Filho (1906-1964)?

José Oiticica Filho, O Tunel, 1951

José Oiticica Filho, O Tunel, 1951

O pavoroso incêndio que destruiu parte expressiva do Acervo de Obras de Hélio Oiticica no último sábado, dia 17 de outubro, seguramente entrará para a história como mais um descaso no tratamento, preservação e guarda da arte brasileira. Já conhecemos esta história e sabemos como as autoridades em geral, os familiares e a mídia tratam o assunto.

Mas, curiosamente, em nada que eu li e vi sobre o assunto, há referências à obra de José Oiticica Filho, que mais do que o pai de Hélio Oiticica tem seu lugar garantido na história das artes visuais, particularmente na fotografia, onde atuou com propriedade. Ele é um dos artistas que conseguiu, ao lado de Geraldo de Barros e outros expoentes da fotografia modernista brasileira, na década de 1950, tirar a fotografia do realismo atávico e/ou do pictorialismo tardio que ainda grassava nas fileiras do fotoclubismo brasileiro.

José Oiticica Filho, filho de um anarquista e pai de um dos mais importantes artistas brasileiro de todos os tempos, conseguiu trazer para a fotografia brasileira um frescor ainda hoje revolucionário. Foi professor, matemático e entomologista no Museu Nacional. Nesta atividade via no microscópio coisas que o maravilhavam e forma essas imagens visualizadas é que desencadearam a necessidade de aprender fotografia.

Essa necessidade o levou ao Foto-Club Brasileiro onde aprendeu a magia do quarto escuro. Paulo Herkenhoff, na apresentação do catálogo da exposição realizada pela Funarte (José Oiticica Filho – a ruptura da fotografia nos anos 50) em 1983, afirma que “há quatro fotógrafos em José Oiticica Filho: o utilitário, o fotoclubista, o abstrato e o construtivo”. Só isso já o torna um caso raro de atuação múltipla na linguagem fotográfica. Sua evolução em direção ao abstrato é impressionante e seu trabalho o transformou no fotógrafo brasileiro com maior número de participações em exposições internacionais.

Quero saber como fica sua obra diante do fatídico incêndio que destruiu centenas de trabalhos de seu filho Helio Oiticica – os parangolés, bólides e bilaterais, entre outras peças de inestimável valor para a arte brasileira contemporânea. Na realidade, suas últimas exposições realizadas no Brasil e no exterior, não só recuperaram parte desse precioso acervo, como também documentaram em catálogos e livros. Diante das características destas obras, isso possibilita e viabiliza refazer e remontar algumas peças. Mas e os negativos, positivos e outras matrizes de José Oiticica Filho? Será que também se perdeu, parcial ou totalmente neste incêndio? Estas sim jamais poderão ser vistas novamente.

Digo isso porque esse material ainda não foi pesquisado, exibido e publicado o suficiente para estarmos de certo modo tranqüilos. Afinal de contas, uma matriz fotográfica, negativa ou positiva, não pode ser refeita com as mesmas singularidades do original.. A última exposição que vimos no Centro Municipal de Arte Helio Oiticica, na cidade do Rio de Janeiro – José Oiticica Filho Fotografia e Invenção – foi realizada em setembro de 2007,  e exibiu uma coleção de 158 fotografias, 20 pinturas e 20 vitrines. Uma maravilhosa retrospectiva que esclarecia o processo de criação do artista, seu percurso e seus procedimentos, e que chegava à recepção desavisada como uma bomba estética esclarecedora sobre a obra de um gigante da história da fotografia brasileira.

José Oiticica Filho, Recriação 29-64, sem data

José Oiticica Filho, Recriação 29-64, sem data

Sem falar em seus textos publicados na década de 1950 em muitas revistas brasileiras entre elas destacamos: Fotografia – Arte, Ciência e Técnica, do Rio de Janeiro; Boletim do Foto Cine Clube Bandeirantes, de São Paulo; Jornal do Brasil, do Rio de janeiro; e até mesmo na revista como Flores do Brasil, que publicava seus textos sobre como fotografar flores com luz artificial, luz natural, etc. Sua coleção de textos forma uma importante bibliografia sobre fotografia brasileira em seus aspectos técnicos e estéticos, que nunca foram organizados e publicados em forma de livro. Como pesquisador preocupado com a propagação do conhecimento sobre  fotografia e tudo que envolve o tema, gostaria de saber em que estado se encontra este material após o incêndio.

Vemos a ressonância na mídia mundial sobre o estrago provocado na obra de Helio Oiticica, mas quase nada encontramos sobre a obra de José Oiticica Filho. Essa é a razão desse texto que busca ampliar a discussão, bem como trazer a público, informações que não estão circulando entre aqueles que estão preocupados com a memória da arte brasileira – seja moderna, seja contemporânea.

José Oiticica Filho é um dos primeiros artistas a dessacralizar a matriz fotográfica, ou seja, a profanar o espaço do fazer fotográfico com intervenções em diferentes etapas do processo de trabalho. Para ele o que realmente importava era retirar da fotografia seu aspecto documental e figurativo, e sintonizá-la com as estéticas contemporâneas à sua época. Foi talvez o primeiro fotógrafo brasileiro que teve seu trabalho, vigoroso e instigante, em plena sintonia com a vanguarda que se praticava naquele momento em que buscava integrar todas as manifestações artísticas num projeto cultural geral para o país.


Quanto de Photoshop?

Foto de Klavs Bo Christensen rejeitada pelo concurso e imagem original

Foto de Klavs Bo Christensen rejeitada pelo concurso e imagem original

O assunto não é novo, nosso blog é que chegou atrasado…

Há alguns meses,  o Olha Vê trouxe a notícia sobre esta  imagem de Klavs Bo Christensen, que foi banida do concurso dinamarquês Picture of the year, por “excesso de Photoshop”. É uma questão bastante complicada, considerando que a manipulação não se refere a uma montagem, no sentido de acrescentar ou retirar elementos da cena, mas sim ao suposto abuso de filtros e correções.

Decidi retomar o tema porque me deparei com as regras do concurso que justificaram a exclusão. Entre outras coisas, diz o seguinte:

As fotos enviadas ao  Picture of the year devem ser uma representação confiável daquilo que ocorreu em frente à câmera durante a exposição. Pode-se processar (post-process) as imagens eletronicamente desde que de acordo com as boas práticas. Pode-se cortar, queimar (burning), clarear (dodging), converter em preto e branco bem como normalizar a exposição ou corrigir as cores, mas preservando a expressão original da imagem. O júri e o comitê da exposição reservam o direito de ver o arquivo original RAW, “raw tape”, negativos e/ou cromos. Em caso de dúvida, o fotógrafo pode ser banido da competição.

Pra começar, alguém explica o que são “boas práticas”? Será algo parecido com os bons costumes?

É certo que houve manipulação, manipulação intencional, planejada, mas algumas questões devem ser colocadas:

– Considerando que a correção da imagem é prática recorrente no fotojornalismo, como estabelecer o limite a partir do qual esse procedimento se torna inconveniente ou antiético?

– Há uma diferença significativa entre as correções as que fazemos hoje no Photoshop e as que fazíamos no laboratório (e que, aliás, levam os mesmos nomes: burning, dodging…)?

– Existe um comportamento seja do filme ou do CCD que possamos chamar de “natural”? Em outras palavras, não são eles inevitavelmente programados pelo fabricante para responder ao estímulo da luz segundo uma programação?

– Se o problema é a “pós-produção”, como julgar as imagens feitas com as novas câmeras digitais que trazem cada vez mais efeitos semelhantes aos do Photoshop como recursos “pré-programados”?

É claro que essas perguntas são retóricas, porque já insinuam uma resposta.

Só pra comparar, a Associated Press diz em sua Carta de Novos Valores e Princípios:

As fotografias da AP devem sempre dizer a verdade. Nós não alteramos ou manipulamos o conteúdo de uma fotografia em nenhuma hipótese (…).

Pequenos ajustes em Photoshop são aceitáveis. Isso inclui cortes, dodging e burning, conversão em escala de cinzas, normalização de tons e ajustes de cores que devem se limitar ao mínimo necessário a uma clara e acurada reprodução (semelhante ao burning e dodging geralmente utilizados no processamento de imagens em laboratório) e que restauram a autêntica natureza da fotografia.

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Foto de Mannie Garcia agenciada pela AP, e o cartaz de Shepard Fairey

Aliás, é nesta Carta de Princípios que a AP se baseou para questionar as imagens feitas pelo artista Shepard Fairey, na campanha de Barak Obama, como vimos nesses dias no blog do Clício.

Mas aqui está novamente o nó: qual é essa “autêntica natureza da fotografia”? É a natureza em si, tipo o movimento do sol, a força da gravidade, o moranguinho silvestre que nasce la longe? Ou é algo forjado pela tradição da própria fotografia? Se for, então, não é uma natureza em estado puro, é uma construção cultural, passível de adaptação, de atualização, de releitura ao longo da história. O que seria, por exemplo, “restituir a autêntica natureza da moda”,  “a autêntica natureza da língua portuguesa”…?

No final das contas, trata-se de “respeitar a tradição documental” que, é certo, tem um grande valor. Mas, se for esse o caso, seria melhor assumir em vez de fazer malabarismos conceituais.

Tenho a impressão de haver certo saudosismo de uma pureza que nunca existiu, de uma espécie de Jardim do Eden do qual fomos expulsos pelo pecado que cometemos. O século XIX acreditou ter descoberto a Escrita do Sol, da Luz ou o “Lápis da Natureza”. E, às vezes, podemos achar que essas primeiras fotografias eram o paraíso, mas não, já eram o próprio fruto do conhecimento.

É um assunto velho e que ainda vai longe. Mas temos que reconhecer: deve ser mais fácil fazer uma “fotografia confiável” do que redigir regras para concursos e cartas de princípios para agências.


Calvin, fotógrafo e semioticista

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Dois foto-filmes raros de Chris Marker

Nesses dias, tive acesso a cópias de dois filmes raros de Chris Marker, Lembranças de um futuro (Souvenirs d’um avenir, 2001), sobre o trabalho da fotografa Denise Bellon, e Se eu tivesse quatro dromedários (Si j’avais quatre dromadaires, 1966), um diálogo fictício em torno de imagens documentais que mostram as transformações do mundo. Ambos discutem fotografia e são feitos a partir de fotografias, por isso, foto-filmes. Compartilho alguns pequenos fragmentos desses e outros trabalhos.

Pra quem já conhece Marker, pode valer mais a pena ir direto aos vídeos.

Pra quem não conhece, uma breve apresentação. Ele é um fotógrafo, cineasta e artista multimídia francês, diretor do clássico La Jetée (algo como A Plataforma, 1962), filme de ficção também todo feito com imagens estáticas (com exceção de uma breve passagem em movimento). O filme conta a história de um prisioneiro que vive num planeta devastado pela 3ª Guerra mundial. Requisitado para experiências de viagem no tempo, ele retorna ao momento de um trauma de infância e à mulher cujo rosto é a única imagem que o reconforta. É imperdível.

Esse filme foi lançado no Brasil em DVD, junto com outra obra importante, Sans Soleil (Sem Sol, 1983).

A maior parte de sua obra não está disponível nem mesmo na França. Felizmente, existe uma rede de aficcionados que compartilha informações e, eventualmente, os próprios filmes. Assim eu fui formando uma coleção.

Recentemente, o produtor cultural Rafael Sampaio, ex-aluno nosso da Faap, procurou o Marker e propôs uma mostra de seus filmes, que aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil no meio deste ano. Em princípio, ele recusou. Disse que seria algo tão improdutivo quanto juntar pessoas numa sala para ficar lendo todos livros de um escritor. Mas acabou aceitando mostrar alguns trabalhos. Como poucas pessoas sabiam do que se tratava, creio que o público foi menor do que a mostra merecia. Mas foi uma conquista. O catálogo não é rico em imagens mas traz uma compilação de artigos, informações biográficas e uma descrição bastante completa de seus trabalhos, algo que não se encontra facilmente em lugar nenhum do mundo. Ainda é possível comprá-lo no CCBB por R$ 5,00.

Até amanhã (25/10), temos no MIS-SP a exposição Staring Back (algo como, Olhando fixamente de volta, 2007), um trabalho que realizou a partir de fotografias de diferentes épocas e lugares.

Marker é uma figura enigmática. Raramente dá entrevistas, não se deixa fotografar, não se conhece muito de sua biografia, mas inventam-se muitas lendas. Como diz o cineasta e amigo Alain Resnais, há hipóteses de que se trate de um extraterrestre. Dizem também que ele já foi visto em lugares muitos distantes ao mesmo tempo. É bem verdade que ele viajou por quase todo o planeta, e viu de perto quase todos os conflitos do século XX. Consagrado como fotógrafo e cineasta entre um público politizado, lançou trabalhos em vídeo nos anos 80, um CD-Rom (Immemory, 1997) e instalações multimídia nos anos 90 e, agora, com quase 90 anos de idade, anda com vários projetos pela internet. Recentemente, criou junto com artistas e ativistas da internet uma experiência no Second Life, uma ilha chamada Ouvroir (algo como Acervo, 2008) onde reproduz uma recente retrospectiva feita na Suiça. Sabe-se que, num dado momento, foi possível conversar com ele próprio, através de seu avatar, mas nunca tive esse privilégio. Para ilustrar, gravei uma navegação que fiz esse ano.

Marker tem uma habilidade excepcional de percorrer imagens de arquivos, dele ou de terceiros, e construir a partir delas amarrações surpreendentes, muitas vezes permeadas por elementos ficcionais. Faz história como um colecionador, como recomendaria Benjamin. Vamos aos dois filmes:

Souvenir d’um avenir (Lembranças de um futuro, 2001)

Homenagem e reflexão dedicada à obra da fotógrafa francesa Denise Bellon, que conviveu com os artistas das vanguardas européias, trabalhou na Alliance Photo junto a fotógrafos como Robert Capa, David Seymour e Pierre Boucher , e permaneceu atuante na França ocupada pelos nazistas. Navegando pelas imagens, Marker demonstra como a 2ª Guerra já se fazia pressentir na atmosfera captada por sua câmera, num tempo de suposta calmaria do pós 1ª Guerra. Esse filme esteve na Mostra do CCBB, e são deles as legendas que mostro.

Si j’avais quatre dromadaires (Se eu tivesse quatro dromedários, 1966)

Conversa ficcional entre um fotógrafo e dois amigos, sobre imagens tomadas em diferentes partes do mundo. Enquanto pensa a fotografia através desses personagens, Marker constrói um documentário que discute diferenças entre culturas, as transformações trazidas pelo progresso, e as utopias revolucionárias, alguns de seus temas mais recorrentes. Este filme não esteve na mostra e só consegui uma cópia dele esta semana. Quem quiser vê-lo inteiro, está disponível no site Tofu, sem legendas. A tradução deste fragmento é minha, sujeita a erros, e com um fragmento de conversa que não consegui entender. O estranho título do filme é o final do poema Dromadaires, de Guillaume Apollinaire, que foi musicado pelo compositor Francis Poulenc.

Avec ses quatre dromadaires (Com seus quatro domedários)
Don Pedro d’Alfaroubeira (D. Pedro de Alfarroubeira)
Courut le monde et l’admira (Correu o mundo e o admirou)
Il fit ce que je voudrais faire (Fez o que eu gostaria de fazer)
Si j’avais quatre dromadaires (Se eu tivesse quatro dromedários)

Bonus: Lettre de Siberie (Carta da Siberia, 1957)

Para finalizar, deixo um trecho deste filme que, apesar de muito discutido, é quase impossível de encontrar. Ao que parece, Marker não permite mais sua exibição. Consegui comprar um DVD defeituoso (faltam 3 minutos) e supostamente autorizado, num disputadíssimo leilão no e-Bay.

Nesse trecho, Marker faz um exercício que sugere a fragilidade das pretensões documentais da imagem: uma mesma tomada repetida três vezes, pode servir para legitimar discursos muito distintos e mesmo contraditórios.

A filmografia completa de Chris Marker pode ser vista no IMDB. Quase completa, porque ele segue produzindo.

Eu discuti alguns de seus trabalhos num artigo chamado Memórias fixadas, sentidos itinerantes publicado em 2008 na Revista Facom, da Faap, e parcialmente reproduzido no catálogo do CCBB. Pode ser acessado numa versão on line.


A fotografia e o diagnóstico do espírito

O caderno Mais da Folha de S. Paulo trouxe neste domingo um belo artigo de Moacyr Scliar, “A cara do mal” , sobre o médico Cesare Lombroso, professor da Universidade de Turim cujo centenário de morte foi comemorado agora em outubro.  Lombroso dedicou sua vida à hipótese de que certos aspectos do comportamento criminoso são congênitos. Ou seja, em alguma medida, bandido nasce bandido.

O texto está disponível apenas para assinantes do UOL na edição on-line da Folha: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2510200907.htm.

Cesare Lombroso, publicado em seu livro O homem criminal, de 1876.

Cesare Lombroso, publicado em seu livro O homem criminal, de 1876.

Apesar das ótimas referências que traz, Scliar não menciona um aspecto que nos interessa. Lombroso, como bom positivista, acreditava que nenhuma verdade escapava ao olhar atento e munido de métodos rigorosos, mesmo aquelas que dizem respeito ao espírito humano. Esse olhar e esse método seriam garantidos por uma tecnologia de ponta do século XIX: a fotografia.

É na comparação entre milhares de fotos de criminosos e não criminosos que ele tentará encontrar a fisionomia típica do criminoso, conforme o tipo específico de desvio que manifestasse: o ladrão, o homicida, o estuprador, mas também, o anarquista, o homossexual. Ou seja, bandido nasce bandido e tem cara de bandido.

Imaginem só que maravilha seria a possibilidade de uma atuação “profilática” da polícia: você poderia ser preso por ter uma sobrancelha, um nariz, talvez uma orelha, digamos, com formas delinqüentes. Se você não fez nada de errado, ainda bem, seu rosto prova que poderia muito bem ter feito! Na prática, não era isso exatamente que Lombroso defendia mas, como lembra Scliar, ele não deixou de inspirar teorias que foram usadas para justificar as perseguições naziistas, que visavam uma espécie de assepsia social dessa mesma ordem.

Homossexual passivo, c. 1900. Atribuído à Lombroso.

Homossexual passivo, c. 1900. Atribuído a Lombroso.

O rigor metodológico de Lombroso resulta em registros bastante padronizados que, suponho, tenham sido importantes para definir o que é hoje nossa “foto de identidade”. Mas isso pode não tê-lo impedido de confundir a natureza do ser-humano com uma teatralidade que é inerente ao corpo, sobretudo ao corpo exposto à câmera. Neste último exemplo, não se trata de revelar nada, mas de fazer a imagem coincidir forçosamente com um juízo já formado.

Lombroso não foi o primeiro nem o último a usar a imagem para identificar patologias e comportamentos. Mas, hoje, a ciência já superou a linguagem mimética da fotografia e tem métodos muito mais sutis para identificar os padrões que definem nosso comportamento, como o mapeamento genético e as análises bioquímicas. E assim, vez ou outra, ela continua tentando entender o que “causa” o comportamento do criminoso, do subversivo, do esquizofrênico, do homossexual, quem sabe, em busca de uma cura…

Quem se interessar por saber mais sobre o uso da fotografia por Lombroso e outros cientistas, temos algumas boas fontes em português:

Em tempo: o Blog do Cia de Foto publicou referências muito interessantes que complementam este post e o comentário deixado por eles aqui: http://ciadefoto.com.br/blog/?p=1559 . Vale a pena ver.


25 anos de A ILUSÃO ESPECULAR

O Brasil não gosta de efemérides. Muito menos de discutir mecanismos de preservação e conservação de informações que pertencem à nossa história. Ou até mesmo as reedições são raras em nossa história do livro, particularmente do livro de fotografia. Acreditamos até o último momento que alguma editora pudesse fazer uma nova edição deste clássico da fotografia brasileira.

ilusao_especularO livro A Ilusão Especular – Introdução à Fotografia, de Arlindo Machado,  foi publicado em 1984, graças a uma ação conjunta entre a Editora Brasiliense e o Instituto Nacional da Fotografia/Funarte, e ao esforço de Pedro Vasquez, na época Diretor do INFOTO. Por iniciativa própria e por acreditar que também temos que contemplar a produção dos pesquisadores, historiadores e críticos que pensam a fotografia como uma manifestação visual particular e com características próprias, Pedro Vasquez criou a Coleção “Luz e Reflexão”, iniciada em 1983, com a publicação de Universos e Arrabaldes, de Luis Humberto. Pedro Vasquez justificou a importância da coleção que se propunha, entre outras metas, “garantir em espaço fixo para o debate das questões fotográficas”.

No início da década de 1980 várias editoras arriscaram a publicação em língua portuguesa de livros que contemplavam a fotografia: em 1981, tivemos Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, e A Câmara Clara de Roland Barthes; e, em 1985 Vilém Flusser com o antológico Filosofia da Caixa Preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia.

Isso nos permitiu antever um espaço de democratização da produção científica, crítica e histórica da fotografia, ao mesmo tempo em que se abria uma nova possibilidade de articulação entre os diferentes autores que potencializaram o campo da reflexão fotográfica.

Por razões diversas a coleção idealizada não progrediu, mas A Ilusão Especular tornou-se referência obrigatória para fotógrafos e pesquisadores. Uma rápida pesquisa nos sites de vendas de livros é possível, de tempos em tempos, se deparar com algum exemplar “em bom estado” de A Ilusão Especular, por um preço assustador: R$ 300,00. Como vimos isto ser praticado nos últimos anos, já se justifica uma nova edição.

Queremos lembrar Arlindo Machado que na Introdução assinala: “ O que nós chamamos aqui ‘ilusão especular’ não é senão um conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um poder revelatório. A fotografia, em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida como ‘espelho do mundo’, só que um espelho dotado de memória”.

Parece que os nossos editores se pretendem efêmeros, não dotados de memória. Mesmo assim, vale o registro dos 25 anos de existência de um dos textos mais citados em teses acadêmicas no país que versam sobre fotografia.


Miséria editorial

Dizem que Giovanni Pico della Mirandola, um erudito do século XV, orgulhava-se de ter lido aos 30 anos de idade todas as obras escritas e disponíveis em sua época. Isso só era possível, claro, porque a recente descoberta de Gutenberg ainda não tinha produzido seus efeitos. Com o mercado editorial produzindo mais do que nunca, quem poderia dizer algo parecido hoje?

Talvez um jovem pesquisador da fotografia possa fazer uma visita à melhor livraria de sua cidade e, depois de algumas semanas, dizer que leu todos os ensaios disponíveis sobre o tema. Mas não é motivo para orgulho.

No post anterior, o Rubens apontou muito bem a importância de A Ilusão Especular em nossas pesquisas, e a necessidade de reeditá-lo. Dei uma repassada em minha biblioteca – nas coisas que tenho, nas que me faltam – e decidi fazer um pequeno balanço.

Temos visto um espaço crescente para a publicação de catálogos e livros com obras de fotógrafos. É uma conquista, e os livros estão cada vez mais bem diagramados e impressos.  Mas a dívida das editoras com a pesquisa sobre fotografia é enorme. Muitas vezes, nem com edições feias podemos contar.

A exemplo do livro de Arlindo Machado, outros títulos escritos em português estão esgotados ou são difíceis de encontrar. Alguns textos importantes nunca foram traduzidos.

Filosofia da Caixa Preta, de Flusser, disponível em turco (acima), russo, chinês, japonês e outras tantas línguas

Filosofia da Caixa Preta, de Flusser, disponível em turco (acima), russo, chinês, japonês e outras tantas línguas

Até que não podemos reclamar de alguns clássicos: Sobre fotografia, de Sontag, e Filosofia da Caixa Preta, de Flusser, ficaram uns bons 15 anos longe das livrarias mas reapareceram e só então pude substituir minhas cópias alternativas. Fotografia e História, do Boris Kossoy, não tenho certeza se chegou a esgotar, mas felizmente também ganhou uma edição revisada. A Câmara Clara, de Barthes, está por aí, resistindo bravamente. Mesmo assim, na semana passada, só vi disponíveis na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista) exemplares dos livros do Boris e de Sontag. O de Barthes precisava ser encomendado. Flusser, inacreditável, nem encomendando. Alguém sabe se esgotou de novo?

Publicações recentes, como A Máquina de Esperar, de Maurício Lissovsky ou Fotografia e Viagem, de Antonio Fatorelli, já se tornaram livros importantes, mas não é óbvio que os encontremos em livrarias de São Paulo. Será que é bairrismo? Nessas horas, só a internet nos salva, mas também demora.

Mais… O livro de Philippe Dubois demorou muito a chegar: quando ele veio ao Brasil lançar O ato fotográfico, aproveitou para dizer  em várias palestras que já não acreditava tanto no que havia escrito. O Fotográfico, de Rosalnd Krauss, só chegou com uma edição em português lançado por uma editora espanhola (G&G).

Recentemente, houve rumores de que teríamos uma tradução de Photographie Plasticienne, de Dominique Baqué, que já estava disponível em espanhol.  Acho que desistiram, afinal, a própria autora lançou uma continuação desse livro (um outro trabalho, não apenas uma reedição), tentando dar conta da rápida transformação vivida pela fotografia na última década.

Fotografia e Sociedade, de Gisele Freund, foi lançado em Portugal, mas provavelmente está esgotado. Os usados são difíceis de encontrar e custam caro. Hoje, no site Estante Virutal, há um exemplar em espanhol (La Fotografia Como Documento Social)por R$ 319,00.

Autores como Raul Beceyro (Ensayos Sobre Fotografia), Henri Van-Lier (Philosophie de la Photographie), Joan Fontcunberta (El Beso de Judas), André Ruille (La photographie), Geoffrey Batchen (Burning with desire: The Conception of Photography), que foram ou têm sido sistematicamente lidos por aqui, nunca foram sequer traduzidos. E The History of Photography, de Beaumont Newhall? Só em espanhol. Ou qualquer outro de história mundial…? Temos é claro obras como A fotografia moderna no Brasil (Helouise Costa e Renato Rodrigues) e a coletânea Fotografia: usos e funções no século XIX (organizado por Annateressa Frabris), ambos com recortes bem específicos. Mas alguém me ajuda a lembrar de um bom livro de história da fotografia mundial, escrito ou editado em português, que possamos encontrar hoje nas livrarias (não vale nos sebos ou leilões de obras raras)…?

Imaginem quanta gente deve ter passado batido. Maurício Lissovsky recomendou um autor português, Pedro Miguel Frade (Figuras do Espanto: a fotografia antes de sua cultura). Eu desconhecia, não lembro de tê-lo visto algum dia em livrarias por aqui. Tentei achar, mas já não está disponível sequer em Portugal.

Também deve haver autores brasileiros publicando seus trabalhos em pequenas editoras ou editoras universitárias, coisas cujo acesso será sempre difícil. Ou pesquisadores cujas teses de mestrado ou doutorado, com um pouco de sorte, só vão circular em PDF. Tudo isso num momento em que já temos dois (que eu conheça) cursos de graduação em Fotografia, muitos programas de pós-graduação distribuídos pelo Brasil com linhas de pesquisa que apontam para a fotografia.

Ainda bem que temos os blogs, que não esgotam… Mas podem sair do ar.


Fotografia e Literatura no Centro Maria Antônia

O Centro Universitário Maria Antônia está com inscrições abertas para o curso Literatura e Fotografia: Relações Produtivas, com Marcos Fabris (mais informações, ao final deste post).

O Centro é um braço da Universidade de São Paulo que encontrou nos últimos anos uma forte vocação: fazer a mediação entre o conhecimento acadêmico e o grande público, sobretudo em temas ligados à arte, à cultura e à filosofia. Para não parecer só uma frase de efeito, explico melhor: passam por ali alguns nomes de peso – da USP ou não – que aprenderam a falar de modo claro e simples sobre assuntos densos e complexos.

Esse tipo de experiência tem acontecido também em outros lugares, como a Casa do Saber, a Escola São Paulo ou Instituto Tomie Ohtake, para citar alguns espaços daqui de São Paulo. Em particular, o Centro Maria Antônia não oferece nenhum luxo, mas mantém a qualidade da programação com preços muito acessíveis, e uma boa política de descontos para professores e estudantes.

Na programação, vi que eles têm também cursos básicos de fotografia. Mas, para nós, não é isso que importa. Vale mesmo ficar de olho na programação de cursos e palestras de filosofia. Fiz ali recentemente um pequeno curso com Olgária Mattos sobre Walter Benjamin, que não se deteve nos textos mais óbvios para nós (“Pequena história da fotografia” ou “A obra de arte…”), mas em sim outros que são igualmente fundamentais para entender um tempo que viu a fotografia nascer e se difundir.

Tem também muita coisa que passa pela história, pela estética e pela filosofia da linguagem, coisas que seriam muito proveitosas para quem gosta de fotografia. E, vez ou outra, vemos boas exposições por lá.

A programação completa de atividades pode ser vista no site: http://www.usp.br/mariantonia/

Para quem estiver por ali, vale uma passada no Instituto de Arte Contemporânea, que fica ao lado, num espaço anexo ao Centro: http://www.iacbrasil.org.br/

Também não faltam bons botecos e livrarias no entorno.

LITERATURA E FOTOGRAFIA: RELAÇÕES PRODUTIVAS, com Marcos Fabris

4, 18 e 25 de novembro e 02 de dezembro

Quartas, 16h ás 18h

Valor: R$170,00 (consulte sobre descontos)

O curso pretende abordar a constituição de uma literatura voltada para o retrato do espaço urbano e para a crítica da modernização e suas correlações com o desenvolvimento da fotografia, novo meio técnico criado pela experiência moderna.

Marcos Fabris é professor de História da Arte e Fotografia, Crítica de Imagem e pesquisador na FFLCH-USP.


Doisneau publicitário

É surpreendente encontrar o nome de um típico “fotógrafo de rua” ligado ao acervo de imagens publicitárias e institucionais de uma grande indústria. É isso que nos mostra a exposição A Renault de Doisneau (assim mesmo, com rima), que passou por Curitiba e agora está em cartaz na Fiesp, em São Paulo.

Mas temos sempre que desconfiar daquilo que chamamos de “típico”.

Eu mesmo sempre tive a sensação de que Doisneau foi um fotógrafo tipicamente francês. Por que isso? Talvez porque o tradicional Cours de langue et de civilisation françaises, de G. Mauger,  método usado por muitos professores e escolas desde o tempo da palmatória, era ilustrado com fotografias dele. Talvez porque, enquanto vimos mestres como Kertész, Capa ou Cartier-Bresson se deslocando pelo mundo, o trabalho de Doisneau parece ter se concentrado nos hábitos e paisagens urbanas da França. Talvez ainda porque, em qualquer lugar do mundo, todo Café que deseja ganhar um clima parisiense e simpático coloca na parede algumas de suas fotos.

Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950.

Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950.

Na prática, esse “tipicamente francês” se refere a elementos de nosso imaginário que estão representados em suas fotos: o francês romântico, elegante, erudito, também com uma dose de malícia, de sedução, de bom-humor sem jamais perder a formalidade e a polidez.

A famosa foto do “Beijo”, que tanto nos fez sofrer ao se revelar encenada, parece ser uma chave para responder a isso. Doisneau certamente não se rendeu ingenuamente a um estereótipo. Ao contrário: com muita habilidade, ele ajudou a construir aquilo que nosso imaginário reconhece como França, sobretudo por Paris.

Sendo assim, mesmo na rua, Doisneau sempre foi um bom publicitário, sem nenhum preconceito quanto ao termo: refiro-me aqui a alguém que tem plena consciência das imagens que constrói e da leitura que delas se poderá fazer.

E não se esquivou de mostrar a França quando a vida já não parecia tão leve: não são as mais famosas, mas conhecemos as imagens que ele fez durante a guerra, a ocupação nazista e as atividades de resistência.


As fotos da Renault

Doisneau praticamente iniciou sua carreira de fotógrafo, aos 22 anos, trabalhando para essa fábrica de automóveis.

Os resultados são sempre bons, mesmo em situações muito diversas: ao ar livre ou em espaços fechados, mostrando máquinas, paisagens, arquitetura ou pessoas, em tom publicitário ou documental, o que vemos é um grande domínio da técnica, da luz, da composição e, num dado momento, também da cor e daquilo que me pareceu ser um flash. Quanto às pessoas, às vezes as poses são evidentes, às vezes, não. Mas como saber? É possível ver ao longo do tempo coberto pela exposição o modo como ele aprimora sua capacidade de dirigir seus modelos de modo convincente, seja em poses extravagantes da fotografia de moda, seja na encenação do espontâneo, como no “Beijo”.

Doisneau, 1935.

Doisneau, 1935.

Mesmo trabalhando com encomendas, ainda há leveza e romantismo no conjunto que vemos. É muito bom que a Renault tenha preservado e mostrado esse material. Mas me incomoda notar que a empresa, numa exposição histórica, adota ainda hoje um tom propagandístico. No texto do folheto distribuído na exposição, a conservadora da coleção fala numa “empresa mítica”, “à frente de seu tempo”. Diz ainda, que Doisneau está ali “promovendo a elegância dos automóveis da Renault” quando, na verdade, ele está exatamente construindo essa elegância através de suas fotografias. Por fim, fala do “orgulho dos trabalhadores” da fábrica.

É verdade que Doisneau é, ele próprio, um desses trabalhadores. Ele não está ali para fazer denúncia, não é essa sua vocação. Também é verdade que parece buscar o que existe de mais digno nas pessoas que poderiam muito bem desaparecer naquele ambiente escuro, com seu maquinário pesado e gigantesco. É natural que olhemos para a fábrica quase com certa nostalgia: as ferramentas, as peças, engrenagens, manivelas são coisas de um tempo em que o trabalho na indústria ainda respondia a uma performance humana, ou seja, são de um tempo em que os produtos ainda eram feitos por alguém. Também é verdade que a indústria francesa quase sucumbiu por excesso de humanismo (às vezes, de sindicalismo), sendo mais lenta na adesão de modelos que garantem produtividade.

O momento em que Doisneau chega a essa empresa coincide com aquele em que o mundo todo se esforça para contornar os efeitos da crise de 1929. A resposta de Louis Renault é eficiente: ao mesmo tempo em luta pela diminuição da carga tributáira e pela melhoria nas condições de crédito, investe em publicidade. O sucesso da Renault desse período tem a ver também com uma política de redução dos custos, garantida pela renovação das linhas de montagem segundo os modelos que observa nos EUA, que incluem a cronometragem do trabalho e rigorosas metas de produtividade.

Voltando às fotografias, e ao modo como os trabalhadores aparecem nelas, vemos que há momentos de descontração, de aprendizado, há intervalos, e há também muitas poses, seja pelo compromisso institucional, seja porque as baixas luzes assim exigiam. Mas nem todas as expressões esbanjam felicidade e orgulho de estar ali. Com um pouco de atenção, é possível ver também o esforço, o cansaço e os corpos sujos de graxa.

Doisneau,1935.

Doisneau,1935.

Isso fica ainda mais evidente quando comparado ao glamour do outro lado da exposição: os belos carros, as paisagens exuberantes, grupos de pessoas se divertindo, os vestidos caros, as mulheres (não necessariamente lindas, mas charmosas e seguras, muitas vezes dirigindo os próprios carros). Também os “concursos de elegância”, dos quais o automóvel é sempre um componente.

Mesmo a serviço da empresa, Doisneau soube não confundir o esforço de venda dos carros – as imagens usadas como propaganda – com o esforço exigido para sua fabricação. É o próprio texto de abertura da exposição que nos informa que os registros dedicados aos trabalhadores resultavam de uma iniciativa pessoal do fotógrafo.

Não é preciso levar à exposição uma bandeira marxista. Não é preciso interrogar Doisneau a respeito de sua ideologia ou buscar ali um protesto contra o caráter alienante de toda indústria. As imagens estão acima disso. Mas também seria um desperdício não reconhecer a amplitude de experiências que o fotógrafo soube mostrar, quando a indústria automobilística se colocou como tema de suas fotos. Em outras palavras, é preciso enxergar Doisneau para além do cronista das pequenas alegrias cotidianas.

É exatamente pela possibilidade de nos reconhecemos em algum ponto dessa amplitude de experiências que suas imagens têm algo de universal. Se não fosse assim, estaríamos simplesmente diante do exótico (do glamour, das paisagens européias, dos vestidos pomposos, dos trejeitos chiques que podemos admirar sem propriamente nos identificar com eles). É isso que faz de Doisneau um fotógrafo humanista e não apenas tipicamente francês.


A fotografia e o pensamento selvagem

O pensamento selvagem foi o primeiro livro de Levi-Strauss que li. E está entre aqueles poucos que nunca mais parei de ler. Tive também a sorte de ter um bom professor, Etienne Samain, que me ensinou quase tudo que eu sei sobre antropologia. Foi ele quem me explicou o grande salto que representava abandonar a idéia de uma “mente primitiva” para propor a existência de um “pensamento selvagem”.

Chegarei lá, mas antecipo que tive a sensação de encontrar nesse livro algo que quase define a fotografia, pelo menos, uma certa fotografia.

Para Levi-Strauss o índio não é um ser limitado ou defasado em sua forma de pensar, tampouco está desprovido de um saber sistematizado, conforme concluiu a ciência européia. Ele tem sim um modo legítimo de fazer ciência, que chamou de “a ciência do concreto”, título do primeiro capítulo do livro.

“(…) é que existem dois modos de pensamento científico, um e outro funções, não certamente estádios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar pelo pensamento científico – um aproximadamente ajustado ao da percepção e ao da imaginação, e outro deslocado”.

Enquanto a ciência moderna optou por olhar de longe para as coisas, em outras palavras, operar por abstrações racionais, o índio produz seu conhecimento sempre rente à natureza, a partir de experiências sensíveis e concretas que irão atuar na composição do mitos. Enquanto traduzimos o mundo em conceitos, o índio observa as formas, movimentos, cores, sabores e, a partir disso, constrói categorias que organizam o que está ao seu redor. Essa não é uma maneira nem maior nem menor de fazer ciência, é diferente. O mito não é uma fabulação que dá as costas à realidade, mas uma narrativa que organiza e transmite fragmentos dessa experiência com a natureza. É aí que surge uma metáfora fundamental construída por Lévi-Strauss: enquanto nossos cientistas operam como um engenheiro, o  índio opera como um bricoleur.

Palácio Ideal, construído pelo carteiro francês Ferdinand Cheval ao longo de 33 anos, com pedras que recolhia no caminho ao longo de seu trabalho. É um exemplo de bricoleur citado por Lévi-Strauss.

Palácio Ideal: construído início do século XX pelo carteiro francês Ferdinand Cheval ao longo de 33 anos, com pedras que recolhia no caminho durante seu trabalho. É um exemplo de bricoleur citado por Lévi-Strauss.

Talvez a bricolagem não nos seja algo muito familiar. Trata-se de uma atividade em parte funcional, em parte lúdica, que consiste em colecionar de tudo um pouco com o princípio de que “isso poderá servir”. Diz Lévi-Strauss sobre o bricoleur:

“seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se paresentam (…)”.

No momento em que precisa de algo, o bricoleur revira seu acervo de achados para encontrar ali uma peça que pode se encaixar na nova função, sem no entanto esconder ou apagar as marcas de sua origem. É como improvisar um cabo de vassoura para recompor o pé de uma mesa, ou um chapéu para fazer um abajur.

Enquanto o engenheiro, com seu projeto, parte de uma estrutura (uma saber ordenador) para chegar a um evento (o fenômeno constituído), o bricoleur parte de um acontecimento para chegar a uma estrutura.

Quando me deparei com essa idéia, pensei: é a fotografia.


A fotografia como bricolagem

Quando o fotógrafo está na rua, ele não trabalha como o pintor ou o escultor. O mundo visível não é uma matéria tão “prima” como é a tinta na paleta ou um monte de argila que aguarda que uma ordem lhe seja oferecida pela autoridade do artista. O mundo com que lida o fotógrafo está pré-organizado por um universo de razões que não são as do fotógrafo. Um prédio, as pessoas, e todas as coisas enquadradas não estão ali para compor sua imagem, apenas podem lhe servir. E o fotógrafo não deixa de observar todas as coisas, como o bricoleur não deixaria de recolhê-las. E pode ali encontrar os elementos de que precisa, não porque os produziu, mas porque soube aproveitar suas qualidade para colocá-los dentro de uma nova ordem.

Comparar a fotografia com a bricolagem me parece resolver um antigo problema. A imagem não é o mundo em si, não é seu duplo, sua reprodução. Estamos mais do que de acordo que a fotografia transforma o mundo. Mas a imagem não é algo totalmente afastado e independente desse mundo, a ponto de não podermos mais reconhecê-lo.

O que vemos na imagem são como peças que o bricoleur toma emprestado para dar-lhes um novo sentido, ao mesmo tempo em que seu sentido original ainda permanece visível. Ele não aceita de modo neutro aquilo que lhe chega, mas também não o renega, não o esconde.

O sentido da fotografia, como toda bricolagem, é uma negociação entre uma necessidade de um pensamento e uma disponibilidade do mundo (no nosso caso, uma necessidade estética, não propriamente utilitária).

Essa sempre me pareceu uma bela maneira de pensar a fotografia, porque nos permite evitar os extemos:  um conteudismo que só é capaz de buscar na imagem aquilo que o mundo era antes de ser fotografado;  ou  um formalismo que trata o mundo fotografado como uma matéria prima a ser manipulada do zero pelo artista. O fotógrafo, como o bricoleur, não é alguém produz o que precisa, mas sabe fazer sua busca dialogar intensamente com aquilo que encontra. Em certa medida, sabe redefinir sua busca a partir dos seus achados.

Talvez isso pareça valer apenas para uma fotografia antiquada, aquela feita pelo “fotógrafo caçador”, que ignora as questões propostas pelas novas imagens de simulação (imagens construídas pelo método do “engenheiro”). Mas creio ser possível ampliar um pouco o espectro coberto pela idéia de bricolagem. Imagino que, mesmo um fotógrafo de moda, tenha que adequar suas necessidades ao potencial do corpo que está diante de sua câmera, isto é, inventar um novo corpo a partir de fragmentos de um corpo que preexiste. Ou, quem teve a oprotunidade de ouvir Joel Peter Witkin falando de seu trabalho recentemente, percebeu que, para ele, coletar e produzir não são experiências distanciadas. Ainda que suas imagens sejam totalmente encenadas, lembro de ouvi-lo dizer: “quando encontrei tal coisa”… “tal personagem”… “tal objeto”. Na prática, toda arte tem um toque de bricolagem porque, um pouco ao contrário do que pode parecer, mesmo a tinta na paleta ou a argila não são matérias tão inertes assim. Estão menos ordenadas que o mundo diante da câmera, mas certamente determinam a criação, impõem suas próprias qualidades.

Retrato de Lewis Payne por Alexander Gardner, 1865.

Retrato de Lewis Payne por Alexander Gardner, 1865.

Talvez seja possível ir um pouco além. O tempo que resulta da fotografia é uma espécie de tempo mítico: quando um ritual encena o mito, o passado é vivenciado como se fosse ocorresse agora. O ritual não relata algo que está dado, como faz o historiador, ele coloca uma origem em jogo no presente. É assim que entendo o “isso foi” da Câmara Clara, de Barthes. Não como um movimento em direção ao passado que se impõe ao olhar diante da imagem, mas como uma espécie de curto-circuito temporal que dá virtualidade a esse passado e permite a ele ser sentido no presente. Como diz Barthes (também ele leitor e companheiro de estruturalismo de Lévi-Strauss): “isso será e isso foi”. Algo que repete a respeito do assassino de Lincoln condenado à morte, visto na foto de Alexander Gardner: “ele está morto e vai morrer”.

Na fotografia, como na bricolagem, vemos esse tempo complexo, uma sobreposição entre aquilo que foi e uma potencialidade. Trata-se da possibilidade de produzir uma narrativa própria a partir dos fragmentos do mundo, em outras palavras, de produzir um saber que não abnega a natureza tal e qual ela se oferece aos sentidos, como só o pensamento selvagem é capaz de fazer.

Para ser sincero, essa relação entre bricolagem e fotografia é uma idéia que foi recusada no exame de qualificação de meu mestrado porque, de fato, resultava mais em rebarbas do que em encaixes. Mas a idéia de bricolagem virou para mim quase um valor que reconheço em muitas das coisas de que gosto.

É uma idéia imprecisa que, se não coube na dissertação, talvez possa ser compartilhada neste blog de modo informal, também como a homenagem possível que posso deixar a Lévi-Strauss.


Mario Ramiro e a fotografia de espíritos

Amanhã (09/11) começa o IV SEMINÁRIO ARTE CULTURA E FOTOGRAFIA: MEMÓRIA, OUTROS DEBATES, na ECA-USP. A programação está ótima, com o mérito de abrir espaço para jovens pesquisadores e de aproximar da fotografia críticos e teóricos que não são os nomes mais recorrentes desse campo.

Queria indicar uma apresentação, em especial: A fotografia de espíritos no Brasil: uma iconografia do outro mundo, de Mario Ramiro, programada para o dia 10/11.

Mario Ramiro é um artista irriquieto que integrou no final dos anos 70 o coletivo 3 nós 3, junto com Hudinilson Jr e Rafael França. Fez experiências com vídeo, fax, xerox, secretária eletrônica, muito antes de falarmos tão deslumbradamente das novas tecnologias. Passou algum tempo na Alemanha e, de volta ao Brasil, seguiu produzindo e tornou-se professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.

No ano passado, tive a oportunidade de participar da banca de seu doutorado, na qual apresentou a tese “O Gabinê Fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil”, com orientação de Donato Ferrari. Dividi a banca com nomes de peso: Annateresa Fabris, João Musa, Sandra Stoll, além do orientador. Foi uma das teses mais interessantes que li na minha vida, e volta e meia sou visto com ela debaixo do braço, mostrando para colegas e alunos.

Retrato feito por Militão Augusto de Azevedo, com suposta apareição ao fundo.

Retrato feito por Militão Augusto de Azevedo, com suposta apareição ao fundo.

Ramiro se debruçou sobre um campo nebuloso da história da fotografia: o registro de espíritos, fantasmas, manifestações ectoplasmáticas e outros fenômenos mediúnicos ou paranormais. Conhecíamos bem esforços realizados desde o século XIX que visam dar forma através da câmera ao invisível. Conhecíamos também um livro relativamente fácil de encontrar, O trabalho dos Mortos, publicado pela Sociedade Espírita Brasileira, que já oferecia alguma iconografia.

Ramiro faz um percurso bastante amplo: resgatou experiências importantes feitasnos Estados Unidos e na Europa, às vezes envolvendo nomes célebres, e analisou o modo como a fotografia espírita se desenvolveu de modo particularmente sistemático no Brasil. O trabalho é riquíssimo em ilustrações, apresentando desde casos discretos e obscuros, até outros mais famosos, como a polêmica reportagem da revista O Cruzeiro sobre o grupo mineiro de Chico Xavier, além de outras ocorrências de paranormalidade veiculadas pela grande imprensa.

O tema é delicado mas, com a sutileza de quem anda sobre uma corda, o texto consegue ser crítico quanto às evidentes manipulações que às imagens trazem e, ao mesmo tempo, respeitoso com as fontes mais envolvidas com o tema que, conforme o autor, colaboraram sem impor exigências.

Tudo isso já compõe uma tese densa e original, mas Ramiro traz no trabalho uma segunda questão. Ele compara a capacidade inventiva da fotografia espírita com aquela da produção artística contemporânea. O salto é abrupto, e Ramiro teve que responder a perguntas um tanto duras da banca sobre essa comparação. Mas ele deu uma aula, e foi também uma oportunidade para conhecer a pesquisa que fez na Alemanha e alguma de suas produções recentes como artista, trabalhos que também discutem – sem deslumbramento – a relação possível entre novas tecnologias e fenômenos paranormais.

Seja pela originalidade, seja pelos riscos que assume, vale conferir.

A programação do evento pode ser conferida no site da ECA-USP: http://www.cap.eca.usp.br/eventos.html.


São Paulo - cidade da fotografia

Mario Cravo Neto, Exu na grota do mar, c. 2000.

Mario Cravo Neto, Exu na grota do mar, c. 2000.

São Paulo é, sem sombra de dúvida, uma capital cultural. A cidade vem exibindo nestas últimas e próximas semanas, imperdíveis mostras de fotografias que merecem nossa atenção. No Instituto Tomie Ohtake, temos uma retrospectiva de Mario Cravo Neto (1946-2009), denominada Eternamente Agora – tributo a Mario Cravo Neto, curadoria de Paulo Herkenhoff e Christian Cravo. O Instituto Moreira Salles exibe Otto Stupakoff (1935-2009), com 70 fotografias de moda, mulheres e celebridades, até 22 de novembro e, em seguida, Norte, fotografias de Marcel Gautherot (1910-1936). No Itaú Cultural, a imperdível exposição A Invenção de um Mundo, curadoria de Jean-Luc Monterosso e Eder Chiodetto, que reúne fotografias da coleção da Maison Européenne de la Photographie,  e exibe trabalhos dos artistas Sarah Moon, Joan Fontcuberta, Duane Michals, Jan Saudek, Joel-Peter Witkin, Pierre e Gilles, Vicente de Mello, Pierre Molinier, Bernard Faucon, entre outros, até 13 de dezembro. No Espaço Porto Seguro Fotografia, reúne os premiados da 9º edição sob o tema A Fotografia e o Tempo, com destaque para Miguel Rio Branco, até 15 de novembro. O Centro Cultural FIESP exibe 106 imagens do fotógrafo francês Robert Doisneau (1912-1994), na mostra A Renault de Doisneau, até 06 de dezembro. O Sesc Pinheiros Henri-Cartier Bresson – Fotógrafo, apresenta 133 imagens do artista do acervo da Fundação Cartier Bresson e Agência Magnum, além da mostra Bressonianas, com os trabalhos de Juan Esteves, Cristiano Mascaro,  Carlos Moreira, Tuca Vieira, Flavio Damm, Orlando Azevedo e Marcelo Buaianin, até 20 de dezembro. Na Caixa Cultural, na Praça da Sé, a boa retrospectiva com 40 fotografias de Ed Viggiani, Meu olho esquerdo, é imperdível pois traz o melhor da fotografia documental brasileira dos últimos 15 anos, até 19 de novembro. A Galeria Cultural Olido, da Secretaria Municipal de Cultura mostra Pierre Verger – Andalucia 1935, que reúne 70 fotografias que foram realizadas por Verger (1902-1996) na província espanhola na primavera de 1935, antes de radicar-se no Brasil, até 22 de dezembro. E o Masp, Museu de Arte de São Paulo, traz pela primeira vez ao Brasil a retrospectiva Walker Evans (1903-1975), que traz imagens da Grande Depressão americana às experiências com a Polaroid, até 10 de janeiro de 2010. No mesmo Masp também é possível se emocionar com a exposição Rodin: do Ateliê ao Museus – Fotografias e Esculturas, que mostra 193 fotografias, parte do acervo do parisiense Eugene Rodin (1840-1917), e que retratam o processo de criação do artista, até 13 de dezembro. No Museu da Casa Brasileira, uma boa surpresa com a exposição do canadense Robert Polidori, que reúne diferentes ensaios sobre a fragilidade do homem diante das intempéries naturais e dos desastres provocados pelo homem, até 12 de dezembro.

Que cidade no mundo tem consegue trazer à luz essa quantidade de artistas de reconhecimento internacional, com trabalhos e/ou séries de excepcional qualidade, que fazem de São Paulo um centro irradiador do melhor da fotografia moderna e contemporânea produzida no mundo. Ainda é possível ver também espalhados em mostras coletivas os trabalhos de Cris Bierrenbach e Rochelle Costi, no Centro Cultural São Paulo; Albano Afonso e Ana Lucia Mariz, na Funarte; Pierre Verger e Mario Cravo Neto, no Museu Afro-Brasil; e a instalação Corpo da Alma, de Rosangela Rennó, na Galeria Vermelho.

E se você ainda não viu nada, não diga que nada acontece na cidade de São Paulo.


O olhar incomum de WALKER EVANS

Walker Evans, Signs, NY, 1928-30.

Walker Evans, Signs, NY, 1928-30.

Walker Evans (1903, St. Louis, Missouri – 1975, New Haven, Connecticut) sem dúvida, uma referência na história da fotografia, está presente pela primeira vez em São Paulo, com uma exposição individual no MASP, que reúne 113 fotografias que abrangem diferentes períodos de sua trajetória profissional. A relação mais imediata que normalmente se faz com seu trabalho é que ele foi um dos fotógrafos ativos na década de 1930 no programa da Farm Security Administration (FSA). Mas sua grandeza e sua importância estão muito além disso. Evans é acima de tudo um intelectual refinado que se aproximou com muita intensidade da literatura e se conectou com movimentos artísticos que pontuam sua obra em diferentes momentos. Basta aprofundar um pouco nosso olhar sobre seu percurso para saber, por exemplo, que Evans incorporou o intelectualismo europeu da modernidade e das vanguardas, em particular o contexto literário que está presente e é significativo em sua fotografia. Ele mesmo se denominava “um homem da literatura, influenciado por Flaubert, Baudelaire, Proust, Stendhal, Henry James, Hemingway e acima de tudo James Joyce”.

Influenciado por Eugene Atget, entre outros, sempre rejeitou o rótulo de “fine art photographer”. Aliás, o trabalho de Walker Evans foi muito mais publicado em livros, catálogos e revistas, do que exibido em museus e galerias. Assumiu esse compromisso desde o início de sua carreira, optando por publicar suas imagens. Mesmo assim, tornou-se referência para muitos, entre eles Robert Frank, Lee Friedlander, Diane Arbus, Garry Winogrand, o melhor da fotografia americana produzida entre as décadas de 1950 e 1970. Robert Frank, por exemplo, se aproximou de Evans desde sua primeira viagem aos EUA, e o tornou seu mentor intelectual. Por sua vez, Evans além de considerá-lo um jovem talento, foi o responsável (e uma espécie de co-autor secreto) por estimulá-lo a escrever um projeto à Fundação Guggenheim, do qual era conselheiro. A realização deste projeto após dois anos e 767 rolos de filmes 35mm, concretizou-se em outro clássico, o livro Les Américains, com 83 fotografias, em 1958, editado por Robert Delpire.

Walker Evans por sua vez, já era consagrado quando Robert Frank chegou aos EUA pela primeira vez no final dos anos 1940. Foi colaborador da revista Fortune e em 1934 apresentou um vigoroso ensaio sobre o Partido Comunista dos EUA. Mais tarde tornou-se editor associado de fotografia e colaborou até abril de 1965. Entre outras realizações, em 1933, sua exposição Walker Evans: Photographs of 19th Century Houses, foi a primeira individual na história institucional do MOMA, apesar de Beaumont Newhall considerá-la apenas como uma exposição dedicada à arquitetura e não à fotografia. Mas, foi em 1938, com a lendária exposição American Photographs, resultado das fotografias produzidas nos dois anos anteriores no sul dos EUA, é que Walker Evans inscreve seu nome nas artes visuais. Praticamente criou um estilo para a fotografia americana e a mostra é considerada a primeira manifestação da fotografia como arte autônoma no MOMA.

Em 2008, tive a oportunidade de participar da banca de doutorado de Diana de Abreu Dobranszky, da Unicamp, que pesquisou durante mais de um ano os arquivos do MOMA para sua tese “A legitimização da Fotografia no Museu de Arte: o Museum of Modern Art de Nova York e os anos Newhall no Departamento de Fotografia”, orientada pelo Prof. Dr. Fernando de Tacca. Um exemplar está disponível na Biblioteca do Instituto de Artes da Unicamp e recomendamos fortemente este trabalho pela quantidade e qualidade dos dados reunidos e que discute e relaciona a presença da fotografia no MOMA, após árdua e intensa pesquisa.

O curioso é que a exposição American Photographs contempla mais de uma centena de fotografias produzidas ao longo de uma década e foi minuciosamente editada por Evans. A mostra foi concebida por Lincoln Kirstein, seu amigo de toda a vida, teve organização inicial de Newhall. Mas, este último foi praticamente hostilizado por Evans que optou pelo controle total da exposição, criando conscientemente, uma narrativa consistente que valorizava intenção, continuidade e clímax. Por outro lado, o livro publicado com o mesmo título tem projeto editorial do fotógrafo, mas é completamente diferente. 47 fotografias da exposição não estão no livro e 33 outras que estão  editadas na publicação não estão na exposição, o que diferencia os dois produtos, ambos clássicos e referenciais.

Walker Evans: The Hungry Eye, de Gilles Mora e John T. Hill

Walker Evans: The Hungry Eye, de Gilles Mora e John T. Hill

Antes da FSA, Walker Evans já tinha realizado e publicados alguns  ensaios contundentes e reveladores, entre eles, Brooklyn Bridge e New York Streets, ambos de 1929, Tahiti, de 1932 e Havana, de 1933. Segundo Gilles Mora e John T. Hill, no fascinante livro Walker Evans – The Hungry Eye, “entre os 75 mil negativos dos arquivos da FSA, Evans contribuiu com apenas algumas poucas centenas. Sua produção, realizada no período dezembro de 1935 e julho de 1938, é diferenciada e não obedeceu aos preceitos de Roy Stryker, um dos coordenadores e que alinhava as imagens à ideologia do projeto. Evans se recusou participar deste contexto e quando se afastou, deixou claro que sua fotografia para FSA “era puro registro, não propaganda”.

Walker Evans é um fotógrafo intenso, dramático e lógico, que soube articular com precisão a câmera para não transformá-la num mero aparato de reprodução, mas dotá-la de uma inteligência mediadora conectada ao seu olhar instigante e crítico. A exposição Walker Evans em exibição no Masp – Museu de Arte de São Paulo, Avenida Paulista, 1578 – tem encerramento previsto para o dia 10 de janeiro de 2010. Não deixe de ver.


A primeira notícia sobre a fotografia

O artigo, escrito pelo jornalista Hippolyte Gaucheraud, adota uma postura empolgada e quase propagandística, apesar de expor algumas limitações técnicas da nova imagem. Responde provavelmente a uma estratégia de divulgação e afirmação do daguerreótipo articulada por Daguerre e o político e cientista François Arago, que defendeu a descoberta junto ao poder público Francês.

É interessante – apesar de óbvio – notar a falta de um vocabulário para descrever a fotografia, e o modo como o autor se esforça com termos ligados à pintura, ao desenho e à gravura para explicar ao público o que eram as imagens que tinha visto em primeira mão.

A tradução é a mais literal possível. No meio do texto, alguns parênteses meus. E, ao final, algumas breves referências históricas do que aconteceu depois.

BELAS ARTES

Nova descoberta

Por  H. Gaucheraud

 

Anunciamos uma importante descoberta de nosso célebre pintor de diorama Sr. Daguerre. É uma descoberta prodigiosa. Ela desconcerta todas as teorias da ciência sobre a luz e sobre a ótica, e fará uma revolução na arte do desenho.

O Sr. Daguerre encontrou um meio de fixar imagens que vêm se pintar sobre o fundo de uma câmera escura; de tal modo que as imagens não são mais o reflexo passageiro dos objetos, mas sua impressão fixa e duradoura, podendo se transportar para longe da presença dos objetos como um quadro ou uma estampa.

Imagine-se a fidelidade da imagem da natureza reproduzida pela câmera escura e some-se a isso o trabalho dos raios solares que fixam essa imagem, com todas as suas nuances de luzes, de sombra, de meios-tons, e teremos uma idéia dos belos desenhos que Sr. Daguerre expôs a nossa curiosidade. Não é sobre o papel que Sr. Daguerre pode operar, são-lhes necessárias placas de metal polido. É sobre o cobre que vimos diferentes vistas de boulevares, a Ponte Marie e seus entornos, e tantos outros lugares mostrados com uma veracidade que só a natureza pode dar às suas obras. O Sr. Daguerre lhe mostra a peça de cobre nua, ele a coloca na sua frente dentro de seu equipamento e, ao final de três minutos, se temos um sol de verão, ou alguns [minutos] mais, se o outono ou inverno enfraquecem a força dos raios solares,  ele retira o metal e o mostra coberto de um desenho arrebatador que representa o objeto na direção do qual apontou o equipamento. Trata-se apenas de uma curta operação de banhos, creio eu, e eis que a vista construída em tão curto instante torna-se invariavelmente fixado, e de modo que o sol mais ardente não a poderá mais destruir.

Os Srs. Arago, Biot e Humboldt constataram a autenticidade dessa descoberta, que despertou neles admiração, e o Sr. Arago a fará conhecer na Academia das Ciências dentro de poucos dias.

Deseja outros detalhes? Aí estão alguns mais.

A natureza em movimento não pode ser reproduzida, ou não poderia a não ser com grande dificuldade pelo processo em questão. Em uma das vistas da qual falei do Boulevard, ocorreu que todos os que caminhavam ou se movimentavam não tiveram lugar no desenho, dos dois cavalos atrelados na estação, infelizmente, um deles balançou a cabeça durante a curta operação, e o animal está sem cabeça no desenho. As árvores se mostram muito bem, mas sua cor, ao que parece, impõe obstáculos quando os raios solares a reproduzem com a mesma rapidez com que faz com as casas e outros objetos de cores diferentes. É uma dificuldade para a paisagem, porque há uma regulagem fixa para a perfeição das árvores e da cor verde, e outra para aquilo que tem outras cores, que não a verde. Resulta, de fato, que enquanto as casas são alcançadas, as árvores não; e quando se alcança as árvores, é demasiado para as casas.

A natureza morta, a arquitetura, aí está o triunfo do equipamento ao qual o Sr. Daguerre quer batizar, a partir de seu nome, de Daguerótipo [no original, Daguerotype, em vez de Daguerreotype]. Uma aranha morta, vista no microscópio solar [supostamente, Daguerre chegou a fazer fotografias microscópicas e telescópicas, destruídas num incêndio em seu laboratório, em 8/3/1839], é de uma tal riqueza de detalhes no desenho, que com ele poderíamos estudar sua anatomia, e sem lupa, como fazemos com a natureza mesma. Não há nem um fio, nem um vaso, por tênue que seja, que não se possa seguir e examinar. Viajantes, vocês logo poderão, talvez, com algumas centenas de Francos, adquirir o equipamento inventado pelo Sr. Daguerre, e poderão trazer para a França os mais belos monumentos, os mais belos lugares do mundo inteiro. Vocês verão o quanto seus lápis e seus pincéis estão longe da veracidade do Daguerótipo. No entanto, que os desenhistas e pintores não se desesperem, os resultados do Sr. Daguerre são algo diferente de seus trabalhos e, por melhor que seja, não pode substituí-los.

Se eu quisesse fazer uma comparação dos efeitos trazidos pelo novo procedimento, diria que são como a gravura a buril ou a gravura em negro [mezzo-tinto], mais para esta última. Quanto à veracidade, estão acima de tudo.

Falei apenas da descoberta sob o ponto de vista da arte nesta curta exposição. Se o que me chegou é exato, os resultados do Sr. Daguerre devem conduzir a não menos que uma nova teoria sobre um ramo importante da ciência. O Sr. Daguerre avisa generosamente que a primeira idéia de seu procedimento lhe foi fornecida, há quinze anos, pelo Sr. Nieps [o nome de Niépce aparece grafado exatamente assim], de Chalons-sur-Saone, mas dentro de um tal estado de imperfeição que foi preciso um longo e obstinado trabalho para alcançar o resultado que ele esperava!


E depois…

Em 7 de janeiro, um dia após a publicação desse texto, Arago exibe a descoberta para a Academia Francesa de Ciências e propõe que o governo francês compre a patente para torná-la um patrimônio público do país.

Após alguns meses de articulação política, a proposta de Arago é aceita e, no dia 19 de agosto de 1839 (que se oficializou como dia da fotografia), ocorreu numa sessão especial conjunta da Academia de Ciências e da Academia de Belas Artes a solenidade em que Arago descreve detalhadamente o processo do daguerreótipo, e em que o governo francês formaliza a pensão de 6 mil francos anuais para Daguerre, e de 4 mil francos anuais para o filho de Niépce.

Reproduzido alguns dias depois no Journal of the Belles Lettres, Arts, Science, de Londres, esse texto provocou algumas reações imediatas. O pintor e botânico inglês Francis Bauer, que tinha consigo algumas das heliografias de Nièpce (incluindo a famosa vista da janela), se esforçou para que fossem reconhecidas as experiências pioneiras feitas pelo amigo. Fox-Talbot e John Herschel também se manifestaram. Conforme lembra Kossoy, o historiador Pierre G. Harmant chegou a computar um total de 24 pessoas que reivindicaram para si a invenção da fotografia, Hercules Florence dentre elas.


Intertextualidades: revista Studium #29

Studium #29

Studium #29

Acaba de ser lançado o número 29 da revista eletrônica Studium, ligada ao Instituto de Artes da Unicamp, e coordenada por Fernando de Tacca: www.studium.iar.unicamp.br. Paralelamente, ocorrerá a mostra “O Fotográfico no Cinema”, no Espaço Cultural Casa do Lago (Unicamp), entre 24 e 27/11 (programação disponível na Revista). Vale a pena conferir, já que alguns dos trabalhos discutidos são de difícil acesso.

Espaço consagrado de reflexão sobre a fotografia, a Studium dedica esta edição ao diálogo com o cinema. Trata-se de uma perspectiva que o próprio Fernando de Tacca ajudou a consolidar no país, através da pesquisa sobre “intertextualidades” que realiza há vários anos, em que mapeia e discute a presença da fotografia e do fotográfico no cinema, assim como na literatura.

Os autores são: Gilberto Alexandre Sobrinho, Wilton Garcia, Andreas Valentin, Maurícius Farina, Erico Elias e Iara Lis Schiavinatto. Também estou lá entre eles.

Percebemos que a Studium evitou obras que, apesar de inesgotáveis, já têm merecido grande espaço em nossas reflexões, como é o caso de Blow Up. Nesse sentido, devo admitir que o título mais óbvio para o nosso meio é talvez o que discuto em meu texto: A Prova. Na lista de artigos, os clássicos estão bem representados por Lá Jetée. Mas há ainda filmes pouco discutidos apesar de populares, como Memento e A moça com brinco de pérola, outros quase desconhecidos do grande público como A Barriga do Arquiteto, Dirty Pictures e Shortbus, e também os raros (mesmo que tão próximos) e experimentais trabalhos de Marcelo Tassara, professor da ECA-USP.

Para quem ainda não conhece a revista, vale percorrer as edições anteriores. É raro ver um espaço que consegue aliar rigor acadêmico, um belo projeto gráfico e uma proposta editorial que explora muito bem os potenciais da internet.

[ Não poderia deixar de lembrar que, recentemente, a Capes, responsável pelo sistema Qualis de avaliação de periódicos acadêmicos, considerou a Revista pertinente a uma série de outros campos mas, inexplicavelmente, não ao de Artes, seu lugar mais natural e onde vinha merecendo a nota máxima, o “Qualis A”. Sobre isso, vale ler a entrevista que Tacca concedeu ao blog Olha Vê:  http://www.olhave.com.br/blog/?p=3771 ]

Abaixo, a lista de artigos e autores:

A barriga do arquiteto e o fotográfico expandido
Gilberto Alexandre Sobrinho

Cinema, corpo e fotografia: estudos contemporâneos
Wilton Garcia

La Jetée e Memento: lembrar para esquecer
Andreas Valentin

Sobre as fotos proibidas de Robert Mapplethorpe
Mauricius Martins Farina

A prova: ensaio sobre a incompletude
Ronaldo Entler

Da Fotografia ao Cinema: os fotofilmes de Marcello Tassara
Érico Elias

O olho que vê
Iara Lis Schiavinatto


O vídeo nos oferece mais que a fotografia

O Let’s Blogar colocou novamente a questão sobre o futuro da fotografia, relembrando que as câmeras digitais fazem vídeo em HD e que alguns espaços tradicionalmente ocupados pela fotografia estão agora aptos a receber imagens em movimento, sejam porta-retratos ou páginas de revista.

Já temos exemplos suficientes de que, no campo da arte, as linguagens e tecnologias não se substituem, mas a discussão é sempre pertinente no que se refere ao papel mais utilitário da imagem, na ciência, na comunicação, nas documentações sociais. Algumas dessas coisas vão nos divertir um pouco, outras vão mudar – como já tem mudado – o modo como produzimos e como percebemos as imagens.

Não sou a pessoa mais indicada para discutir o mercado. O Let’s Blogar fez boas ponderações e se encarregou de oferecer alguns bons links para esse debate. Queria pensar a fotografia numa relação mais abrangente e cotidiana com a produção de memória.

Para começar, assumo meu conservadorismo: de um lado, só consigo imaginar um porta-retratos digital sendo vendido nesses programas de TV, entre um multiprocessador de alimentos e um aparelho de ginástica. E, de outro lado, não consigo imaginar um porta-retratos com um slide-show ou vídeo ligado o tempo todo na estante da sala. Menos ainda, alguém ligando o porta-retrato quando chega a visita.

Memória e desejo

A grande vantagem do vídeo é que ele oferece uma imagem mais completa, mais prolixa, nos dá mais informação que a fotografia.  Pode soar estranho, mas isso mesmo já me leva a supor: a vantagem da fotografia é o fato de que ela nos dá uma imagem mais sutil, mais lacônica, com menos informação.

Andre Kertesz, 1979.

Andre Kertesz, From my window, 1979.

Sem dúvida há momentos que pedem o registro do movimento. Mas, de todo modo, os objetos de memória mais importantes operam por intensidade, não por estensão. Eles têm aquilo que Barthes, referindo-se à fotografia, chamou de “força metonímica” (uma parte que traz a sensação de presença do todo ausente). Portanto, uma força que é tanto maior quanto menor o fragmento de mundo que é capaz de nos afetar. Um brinquedo que sobra da infância, uma conchinha recolhida na praia, o ingresso de um show não relatam muita coisa sobre o passado mas, de algum modo, parecem carregá-lo consigo. São fetiches que operam naquilo que ainda hoje pode restar de magia, no sentido antropológico do termo: o pensamento mágico, superado pelo pensamento racional, desconhece a diferença entre o signo e o objeto representado por esse signo, entre a imagem e o mundo. A fotografia às vezes parece operar desse modo: é a razão de se guardar e tocar quase com carinho a imagem das pessoas que amamos, bem como de se picar em pedacinhos a imagem de quem passamos a odiar. Essa sobreposição entre a imagem e o mundo é tanto mais poderosa quanto maior for a distância e a desproporção entre eles (para o bom feiticeiro, basta uma peça de roupa, um fio de cabelo para poder se colocar diante de alguém).

A fotografia funciona desse modo: ela nos encanta não tanto pelo tanto que ela explicita mas, ao contrário, pelo que oculta e que, não estando ali, deve ser recuperado pela imaginação.

Isso pode ser discutido no plano teórico: a psicanálise nos ensina que o desejo sempre atua sobre uma lugar vazio. Ou seja, só pode mobilizar o desejo aquilo que não está dado ou, ainda, o desejo se desloca para outro lugar vazio quando seu suposto objeto se oferece por completo. É a diferença entre o erótico e o pornográfico: o primeiro é intenso, porque insinua sem oferecer quase nada, dando a certeza de que falta algo para ser visto; o segundo é enganoso, esvazia-se ao oferecer tudo, por não haver nada que se queira ver e que já não se tenha visto.

Mas é possível demonstrar isso na prática de nossa relação com as imagens. As imagens se tornam importantes quando são quase perdidas, quase esquecidas, e depois reencontradas. Os vídeos ou os velhos super 8, que nos dão mais que a fotografia, se tornam mais interessantes quando deles só restam fragmentos ou quando, por sabedoria, eles são editados para exibir apenas fragmentos. Eu me pergunto se os turistas que viajam com a câmera ligada o tempo todo realmente assistem o que gravam, ou apenas se reconfortam com o fato de saber que tudo está lá. E tenho a impressão de que nunca olhamos tão pouco para nossas fotografias de viagem quanto agora, quando retornamos com milhares de imagens que, aliás, já foram vistas no LCD da câmera.

Cada vez mais é importante a figura do editor, essa pessoa que tem o poder e a sabedoria de não mostrar o que não tem força. Dizem que os fotojornalistas, num futuro próximo, em vez de se darem ao trabalho de encontrar o momento certo, poderão voltar para suas redações com vídeos de qualidade suficiente para extrair o frame que será publicado. Se isso acontecer, mais do que nunca, os editores serão necessários e os bons “repórteres de imagem” ainda serão aqueles poucos que saberão encontrar no fluxo das coisas uma meia dúzia de fragmentos indispensáveis.

É absurdo o princípio de que imagem boa é aquela que nos oferece mais. A fotografia já produziu essa falácia no século XIX, ao tentar exibir suas vantagens sobre a pintura. Mas também seria também absurdo reagir ao vídeo do mesmo modo que, naquela ocasião, a pintura reagiu à fotografia.

O vídeo é fabuloso. Disputará alguns espaços com a fotografia e provavelmente conquistará vários deles. Mas não pelos motivos que estávamos supondo, não porque oferece mais. Ele ocupará seu lugar na medida em que souber selecionar, tornar-se lacônico, operar por intensidades. Em outras palavras, oferecer as lacunas necessárias ao desejo e à memória. Também precisará saber conter o movimento e fazer a imagem durar diante dos olhos para que ela tenha consistência. E aprender a olhar com certo silêncio para as coisas banais, para tornar essa memória universal.

Cao Guimarães, Da janela do meu quarto, 2004.

No filme Sem Sol (1992), Chris Marker imagina uma civilização que habitará a Terra no ano 4001 e que será capaz de lembrar de todas as coisas: “após muitas histórias de pessoas que que perderam a memória, eis a de alguém que perdeu o esquecimento”. Esse habitante do futuro não entenderá a emoção de ouvir uma música ou de ver um retrato, coisas ligadas à miséria de sua pré-história. A conclusão já havia sido dada no começo desse relato: “uma memória total é uma memória anestesiada”. Assistam ao filme todo e vejam como que o valor da montagem (da bricolagem) que Marker faz está mais nos saltos que realiza, nas lacunas que deixa, do que na ilusão de continuidade que o cinema poderia muito bem produzir (esse filme acompanha o La Jetée no mesmo DVD lançado aqui no Brasil).

Também encontramos um recado semelhante num texto bastante conhecido de Borges, Do rigor na ciência:

… Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal perfeição que o mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo o País não resta outra relíquia das disciplinas geográficas.

(Suaréz Miranda: Viajes de Varones Prudentes, Livro Quarto, Capítulo XIV, Lérida, 1658.)


Seria Gregori Warchavchik um fotógrafo moderno?

Há anos venho colecionando fotografias. Recentemente adquiri um retrato de René Thiollier, um dos patronos do modernismo no Brasil e fundador da Academia Paulista de Letras. A autoria é de Gregori Warchavchik (Ucrania, 1896 – São Paulo, 1972) e isso bastou para lembrar sua produção fotográfica. Warchavchik chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista experimentada pela Semana de 22, e encontrou um terreno fértil para suas idéias centradas nos arquitetos Walter Gropius, Le Corbusier e Mies van der Rohe.

Casou-se em 1927 com Mina Klabin irmã de Jenny Klabin, casada com o pintor Lasar Segall, filhas de um rico industrial da elite paulistana e isso facilitou sua inclusão no grupo modernista – Paulo Prado, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Victor Brecheret, Anita Malfati, Villa Lobos, Di Cavalcanti, entre outros. No ano seguinte, concluiu o projeto de sua residência, localizado à Rua Santa Cruz, Vila Mariana, considerado a primeira casa modernista do Brasil. A partir dos anos 1930 interessou-se pela fotografia e na década seguinte já participava com certa freqüência das atividades do Foto Cine Clube Bandeirante. É aqui que nasce nosso interesse em pesquisar mais profundamente o seu trabalho e verificar sua importância no movimento fotoclubista paulista, considerado bem sucedido e responsável pela fotografia moderna brasileira.

As referências informais da sua atividade tivemos através de relatos de Luis Hossaka, falecido recentemente, nos intervalos das reuniões da Coleção Pirelli-Masp, e de Thomaz Farkas, um dos mais ativos fotógrafos no período de ouro do Foto Cine Clube Bandeirante. Hossaka que trabalhou durante quase 60 anos no Masp e também foi do Conselho do Museu Lasar Segall e ativo colaborador, falou-me em diversas ocasiões da fabulosa coleção de câmeras, lentes e acessórios deixada por Warchavchik, do seu profundo conhecimento técnico e do seu prazer em fotografar. Sabemos que mais tarde essa coleção foi aos poucos desaparecendo e até mesmo o laboratório, talvez num anexo da Casa Modernista, foi desmontado.

Warchavchik, autoretrato, c. 1944.

Warchavchik, autoretrato, c. 1944.

Pesquisamos os Boletins do Foto Clube e os Catálogos dos Salões realizados pelo clube a partir de 1942. É notório seu envolvimento com os fotógrafos do Bandeirante mas não foi possível através dos boletins detectar uma atuação mais intensa. Gregori Warchavchik está presente no catálogo do 2º Salão Paulista de Arte Fotográfica, realizado em outubro de 1943, e foi capa do 3º Salão Paulista de Arte Fotográfica, realizado em novembro de 1944, na Galeria Prestes Maia, com um belíssimo autorretrato. Além disso, tem mais três fotografias selecionadas neste Salão.

Nos boletins aparece pela primeira vez somente no número 10, editado em fevereiro de 1947, onde podemos encontrar na página 11, uma tabela de pontuação dos fotógrafos, síntese que informa o número de salões nacionais e internacionais e o número de fotografias com que cada fotógrafo do clube participou. Esse ranking atribuía ao fotógrafo mais pontuado do ano o Troféu Prestes Maia, instituído em 1945. Tomamos conhecimento que José Yalenti em 1945 e Eduardo Salvatore em 1946 foram os vencedores. Em abril de 1947, no Boletim número 12, Gregori Warchavchik aparece em 28º lugar graças à sua participação em três Salões somando 80 pontos. No ano seguinte aparece em 39º lugar com apenas um Salão com duas fotografias e 40 pontos, evidenciando talvez algum desinteresse.

É notável sua participação na década de 1940 das atividades promovida pelo Foto Cine Clube Bandeirante mas, curiosamente, sua fotografia nada tem a ver com a arquitetura, pois privilegia quase sempre o retrato. No livro A Fotografia Moderna no Brasil, de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, há apenas uma citação nominal e nenhuma informação sobre sua fotografia. De qualquer forma, nossa intenção é deixar registrado o andamento desta pesquisa e mostrar algumas fotografias produzidas por Warchavchik. É perceptível seu interesse pelo retrato e o que tenho disponível até o momento é exatamente esse gênero de produção. Porém, os retratos de Mario de Andrade, René Thiollier, e da menina, denominada Os óculos do vovô, aqui publicados, evidencia um tratamento único, ou seja, um enquadramento fechado, centrado no rosto do fotografado e com o foco crítico.

Warchavchik: "Os óculos do vovô", Mario de Andrade, René Thiollier (s/d).

Warchavchik: "Os óculos do papai", Mario de Andrade, René Thiollier (s/d).

Esse foco crítico revela sua visão sensível e torna-se uma espécie de imprecisão intencional e controlável. Mostra também um controle técnico sobre o processo e uma direção da cena, pois tenta evitar a frontalidade e propõe uma leitura mais difusa e aberta, à medida que os olhares são quase sempre dispersos, um pouco diferente das convenções disseminadas no movimento fotoclubista. Paradoxalmente, a “leveza do foco” também aproxima os retratos da tendência pictorialista, que predominou no clube durante os seus primeiros anos. De qualquer modo preferimos entendê-los mais como transgressores, pois Gregori Warchavchik foi um intelectual que tem seu nome associado à racionalidade moderna. Em 1925, ele publicou o primeiro manifesto da arquitetura modernista no Brasil e entre as diversas críticas elaboradas, a que faz ao ornamento é a me parece que mais tem relação com sua fotografia: “detalhe inútil e absurdo, imitação cega da técnica da arquitetura clássica, tudo isso era lógico e belo, mas não é mais”.


Tudo o que se enxerga por um furo de agulha

Olhando minha prateleira de teses, reencontrei a dissertação de mestrado de Maria Helena Villar, apresentada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sob orientação de uma grande amiga, a professora Luciana Martha Silveira. Estive algumas vezes nessa Universidade, de onde saem algumas pesquisas muito rigorosas sobre a relação entre comunicação, arte e tecnologia (sejam as novas ou as velhas).

O trabalho da Maria Helena se chama “A fotografia estenopéica revisitada: desconstrução da homologia tradicional através das dimensões sócio culturais da tecnologia”. Fotografia estenopéica é um nome mais técnico para as imagens feitas com as câmeras que costumamos chamar de pin-hole, com a ressalva de que nem toda câmera estenopéica tem, efetivamente, um buraco de agulha.

Como é de praxe, o trabalho começa com um passeio pela história da fotografia e pelas principais vertentes teóricas. Mas da metade em diante que se torna efetivamente original.

Entender essas câmeras artesanais e improvisadas é talvez o modo mais efetivo de desmistificar a técnica, tal e qual nos convidam autores como Arlindo Machado, quando denuncia a “Mística da Homologia Automática” (primeiro capítulo de A Ilusão Especular), ou Vilém Flusser, quando critica os fotógrafos que são “funcionários do aparelho”.

Sobretudo agora, que as câmeras têm mais botões e recursos do que nunca, é incrível descobrir ou relembrar que ela não é mais do que uma caixa vazia e escura, com um orifício numa das faces. Quem já deu aula de fotografia sabe da importância de passar por essas experiências simples e arcaicas. Quem ainda dá aula, sabe da dificuldade de manter nas escolas algumas velharias fundamentais: a câmera, os ampliadores, a sujeirada química toda…

Depois de fazer uma detalhada incursão pelas razões culturais que levam a câmera a ser construída de uma forma e não de outra (isto é, de modo a respeitar o sistema de perspectiva renascentista), a dissertação aborda o trabalho de artistas que subvertem essa programação elementar da fotografia, ou seja, artistas que desafiam e desmistificam o automatismo do aparelho, que deixam de ser seus funcionários. E podem fazer isso radicalmente, porque o controle do processo começa com a fabricação da câmera, ou com a descoberta de coisas que podem servir de câmera. Aí vem algumas boas surpresas.

Alguns artistas variam a forma de posicionar o material sensível na câmera ou de construir o orifício que permitirá a entrada de luz. Por exemplo:

Thomas Hudson monta a caixa com o próprio material sensível, de modo que quase todo o interior da câmera se transforma em imagem, depois de desmontada e revelada. Jürgen Lechner e a brasileira Ana Angélica Costa posicionam o material sensível como um cilindro, no centro de uma câmera com vários furos em sua parede, produzindo uma panorâmica de 360 graus. Joaquim Casado e Claudia Johas trabalham com rasgos (slits) com formatos variados em vez de furos, o que gera uma espécie de desordem na perspectiva. Paolo Gioli usa uma bolacha do tipo cream cracker e aproveita seus vários furos para formar imagens que se repetem e se sobrepõem no papel.

Jürgen Lechner, Schloss weibenstein 1, Eckental Alemanha, 2006.

Jürgen Lechner, Schloss weibenstein 1, Eckental Alemanha, 2006.

Há também outros que, para além das caixas de sapato, de fósforo, caixotes, quartos, latas, utilizam objetos inusitados. Como diz Jochen Dietrich, um dos autores em que a pesquisa se apóia, “tudo o que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica”: Ilan Wolff usa um pimentão vermelho, Paolo Gioli usa a mão fechada, Thomas Bachler e Jeff Guess usam a boca, Jeff Fletcher usa cascas de ovos.

Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 1999 (fotos feitas com a boca).

Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 1999 (fotos feitas com a boca).

Como o furo resulta numa baixa exposição à luz, o registro pode se estender por dias, ou meses, ou ser feito em momentos muito distintos. Isso significa que a fotografia se afasta radicalmente da noção de instantâneo: Tarja Trygg registra numa mesma imagem os diferentes trajetos que o sol faz no céu em dias e meses diferentes, o já citado Thomas Bachler usa uma mala como câmera e registra, numa forma totalmente abstrata, o percurso de uma viagem, por exemplo, de Nuremberg a Kassel.

Tarja Trygg, Solargraphy , Helsinki, 2003.

Tarja Trygg, Solargraphy , Helsinki, 2003.

E por aí vai… O trabalho traz um conjunto de 132 imagens, e não deixa de situar o trabalho de artistas brasileiros, como Paula Trope e Neide Jallageas, Dirceu Maués e a já citada Ana Angélica Costa.

Muitas dessas experiências são facilmente encontradas na internet, mas a pesquisa tem o mérito de mapear uma diversidade de situações que poucos poderiam imaginar e de colocá-las a serviço de uma compreensão da fotografia, num sentido muito amplo. O trabalho de Maria Helena é uma espécie de arqueologia que demonstra o quanto as origens são importantes para entender o estado presente das coisas.

A “origem”, como aprendemos com Walter Benjamin, é aquele lugar em que todos os potenciais estavam anunciados e disponíveis, que podem ser silenciados e esquecidos, mas que permanecem acenando para o presente. Desse modo, a origem não é apenas um objeto de culto saudosista, mas um lugar a que se chega quando a história permite realizar o potencial das coisas.

Ao contrário do que faz a indústria quando acrescenta novos recursos aos equipamentos, o foco desta pesquisa e desses artistas todos não é tanto as novas tecnologias, mas as tecnologias plenas.

É um trabalho que merece ser publicado. Por enquanto, a dissertação pode ser encontrada no site Scrib.


Imagem, morte e tempo

Nesta última sexta-feira, faleceu Godelieve, esposa do professor e amigo Etienne Samain. Pouco antes do velório, Etienne apareceu com uma câmera e me pediu para fazer algumas fotos da cerimônia que aconteceria. Fiquei desconcertado, não consegui entender imediatamente o porquê dessas fotografias. Mas logo lembrei de uma de suas aulas numa disciplina que dividimos na Unicamp, em que ele analisa um álbum com 19 fotografias do enterro do avô de Godelieve, feitas em 1957, na Bélgica.

Sem dúvida, a morte e seus rituais interessam a um antropólogo. Mesmo quando ela ocorre tão próximo? Quem conhece Etienne, sabe o quanto ele critica o método tão difundido nas ciências humanas de olhar com distanciamento, e a forma mais corajosa de fazer isso tem sido deixar sua vida aparecer com grande transparência em suas pesquisas. É assim que vemos desde seu primeiro livro, em que apresenta a imersão na tribo dos Kamayurá, o papel que teve Kayãmaru (mulher que toca flauta), nome atribuído pelos índios à sua esposa. Cada um praticou a seu modo a antropologia: enquanto Etienne se aproximava das pessoas para compreendê-las, Godelieve fazia o mesmo para agregá-las. Foi assim nos muitos lugares em que ela viveu, foi assim também em sua morte.

http://www.youtube.com/watch?v=TFrFXMsxZyo

Trecho do documentário “De um caminho a outro”, dirigido por Clarice Ehlers Peixoto. No vídeo, vemos Etienne, Godelieve (recentemente e também quando era chamada Kayãmaru) e a filha Maíra.

Não foi fácil circular com a câmera enquanto todos sofriam e choravam. Sabemos que outros rituais – casamentos, aniversários, formaturas – já são formatados para a fotografia, mas não este. A morte ainda é assustadora demais para ser reduzida ao espetáculo das imagens.

O álbum do enterro do “vovô Viktor” na Bélgica aliviava minha tarefa, como uma espécie de jurisprudência, mas eu ainda não sabia o que fotografar. Qual é a linguagem da fotografia de enterros? Se é que já houve uma, ela se tornou distante. Até conhecemos o antigo  hábito de fotografar pessoas mortas, às vezes, de levar o cortejo fúnebre ao estúdio local, mas sempre vimos isso como uma bizarrice provinciana e arcaica. Enfim, o que fotografar?

Lembrei de novo das aulas do Etienne. Nos últimos anos, ele não tem se interessado pelos grandes códigos que permitem ler a imagem: as poses, as composições, ou as performances que se repetem nos rituais. Ele tem levado a sério o interesse pelo Punctum, aquilo que escapa às intenções do fotógrafo. E tem colocado Barthes em diálogo outro antropólogo belga, Albert Piette, que se interessa por aquilo que chamou de “modo menor da realidade”, o detalhe, o pequeno gesto, a pequena expressão facial, as direções dos olhares. Então, era impossível decidir o que merecia ser fotografado.

Difícil saber também o que não fotografar. Se não há uma linguagem para a fotografia de enterros, também não há uma ética. Aparentemente, ninguém se incomodou com minha presença, talvez porque todos ali soubessem da forte ligação que Etienne tem com a imagem. Mas fquei me perguntando porque eu me tornava tão moralista e tenso quando confrontado com a morte. Como já sugeri, fotografamos tudo mas, por medo e respeito, preservamos a morte da exposição.

Ora, não fosse o esforço de nossos ancestrais em lidar com a morte, talvez não existisse a fotografia. Talvez não existisse sequer o que chamamos hoje de arte, pois chamamos assim imagens que muitas vezes surgiram para dar conta da morte, para garantir a passagem para uma outra vida, para criar uma comunicação entre os que ficaram e os que se foram. “Sema”, que está na base de termos como semântica, semiótica, semiologia era nada mais do que a pedra tumular. O sentido de um signo é garantir a possibilidade de presença daquilo que está distante ou ausente. É assim que as imagens se afirmaram em nossas civilizações.

Mas se as imagens nasceram da morte, porque então poupamos a morte das imagens? Enquanto algumas sociedades antigas viviam em função desse tema obscuro, a modernidade optou por se voltar para as luzes, para o bem estar, para o prazer da vida. Aparentemente, esquecer a morte é uma condição para alcançar a felicidade. Mas não é bem assim. Ninguém aproveitou tanto o tempo presente quanto os trágicos antigos, aqueles que viviam com a consciência de que talvez não existisse amanhã. O hedonismo moderno e o conseqüente pudor com relação à morte é apenas covardia travestida de racionalismo.

Então, se a pergunta é “por que alguém iria querer guardar imagens que lembram a morte?”, a resposta pode ser simplesmente: porque não há motivo para temê-la e porque enfrentá-la serenamente é uma forma de celebrar a vida.

Essa é a questão que move um livro muito interessante de Regis Debray, Vida e Morte da Imagem. Ele lamenta o fato de que, quando afastamos a morte de nossas vistas, resta “um fluxo de imagens, sem pretexto nem conseqüências”, isto é, a imagem passa a existir sem o maior e mais profundo dos sentidos que já possuiu. Segundo ele, quando evitamos a imagem da morte, assistimos à morte da imagem.

Interessante foi sair do enterro e chegar, horas depois, na festa de aniversário de outro amigo, co-autor deste blog. Como não deixaria de ser, a fotografia estava também ali muito presente, nos registros que eram feitos, mas também num álbum que circulava entre os convidados, com uma biografia visual do aniversariante que começava com os antepassados (essa palavra que a gente evita porque soa tão primitiva!). Naquela casa, tudo é memória: a própria casa, os móveis, os discos de vinil, a decoração de natal. Incrível como a forma intensa e espontânea de lembrar as pessoas ausentes apenas intensificava a alegria de quem estava ali presente: nenhuma dívida com o passado, nenhum temor quanto ao futuro, apenas uma bela festa, uma festa expandida, que reverberava também a alegria vivida com outras gerações.

As duas celebrações daquele dia me fizeram pensar que nada dá mais consistência à imagem que a vivência do tempo.  Nada nos deixa mais em paz com o tempo do que a experiência da imagem.


Chile

Estive no Chile por alguns dias neste final de ano, passando por Santiago, Valparaíso, Viña del Mar, Ilha de Chiloé, Puerto Montt, Puerto Varas e algumas outras pequenas vilas em torno do lago Llanquihue. Achei que iria conseguir saber melhor a quantas anda a fotografia por lá, mas acontece que o país é muito legal e não sobrou muito tempo pra trabalhar.

Consegui ir a alguns museus. No Centro Cultural La Moneda (anexo ao palácio em que Salvador Allende viveu seus últimos momentos), havia uma grande exposição sobre a China. Mas o melhor era uma pequena mostra paralela que trazia releituras da tradição visual chinesa feitas por jovens artistas chilenos.

Wellcome. Instalação de María Luisa Murillo (2007-09). La Moneda, Santiago.

Wellcome. Instalação de María Luisa Murillo (2007-09). La Moneda, Santiago.

O Museu de Bellas Artes é fundamental pela história, tanto das obras que acolhe quanto de sua arquitetura. Ao lado de grandes nomes da arte chilena, havia uma bela exposição do norte-americano Gordon Matta-Clarck, que talvez merecerá um outro post. O Museu de Arte Contemporânea estava a meio vapor, por causa de uma reforma, com uma exposição média e precária em informações. O melhor de todos foi o Museu de Artes Visuais (MAVI), com um espaço lindo, num bairro lindo (Lastarria). Nele, estava uma pequena retrospectiva do alemão Gerhard Richter, e uma mostra competitiva de obras de artistas chilenos, excelente, com uma bela curadoria.

Como não houve tempo para pesquisas, a melhor dica que posso dar é um blog que encontrei antes de ir, dos fotógrafos e pesquisadores Miguel Angel Larrea e Mane Adaro: Chilenización de la Fotografia. Com esta última, cheguei a trocar alguns e-mails, mas não pude conhecê-la pessoalmente. Vale a pena conferir o blog, que dá espaço a jovens fotógrafos chilenos. Me chamou a atenção o fato de que boa parte dos trabalhos mostrados são econômicos  no uso recursos cênicos e de manipulações explícitas, um caminho da fotografia conceitual que tem me agradado muito. Segundo Mane, é uma escolha sua, pessoal, mas não deixa de ser também uma tendência forte no Chile.

Como a viagem foi puro turismo, para terminar, deixo algo que infelizmente não tenho mostrado com muita frequência: fotografias.

Centro de Santiago.

Centro de Santiago.

Centro de Santiago.

Centro de Santiago.

Mercado de Santiago.

Mercado de Santiago.

Centro de Santiago.

Centro de Santiago.

Museu Pré-Colombiano, Santiago.

Museu de Arte Pré-Colombiana, Santiago.

Viña del Mar.

Viña del Mar.

Puerto Varas.

Puerto Varas.

Puerto Varas

Puerto Varas.

Castro, Ilha de Chiloé.

Castro, Ilha de Chiloé.

Frutillar.

Frutillar.

Vulcão Osorno, visto do aeroporto de Puerto Montt.

Vulcão Osorno, visto do aeroporto de Puerto Montt.


As pioneiras conexões entre fotografia e moda

Gilda de Mello e Souza, em foto do músico João Gilberto, 1968

Gilda de Mello e Souza, em foto do músico João Gilberto, 1968

A revista Piauí deste mês traz um texto bastante singular – “A menina e a mãe dela” – assinado por Ana Luisa Escorel, que rememora sua infância, estabelece relações interessantes e desencadeia conexões diversas para nossas reflexões sobre a fotografia. Ana Luisa é filha de Antonio Cândido e Gilda de Mello e Souza (1919 – 2005), intelectuais, ensaístas, críticos e professores da USP, que marcaram gerações. Também é casada com Lauro Escorel, um dos grandes fotógrafos do cinema brasileiro.

Ana Luisa nesse delicioso ensaio, repleto de imagens mentais, relembra parte de sua infância, traz o cotidiano da relação familiar para seu texto e comenta a erudição e a inteligência das relações sociais e acadêmicas de seus pais. Entre várias e oportunas observações, Ana Luisa afirma ao comentar a paixão de sua mãe pelas roupas: “pensando bem, ela deve ter sido um dos primeiros intelectuais, no Brasil, a valorizar a fotografia como fonte de informação”.

Imediatamente fui tomado pela lembrança do livro O espírito das roupas – a moda no século dezenove, editado em 1987, resultado da tese de doutoramento de Gilda de Mello e Souza – A Moda no Século XIX – defendida em 1950 na USP sob orientação de Roger Bastide, do qual foi assistente por mais de uma década. Também foi aluna e colaboradora de Claude Lévi-Strauss.

Sua tese, publicada inicialmente em 1952, pela Revista do Museu Paulista, e agora pela Companhia das Letras, enfatiza a importância cultural da moda do século XIX ao relacioná-la com outras manifestações, particularmente a literatura, a pintura, a gravura e a fotografia. Neste sentido, podemos considerá-lo como um ensaio pioneiro no Brasil ao tratar a fotografia como informação, trazendo-a para o campo de análise da cultura associado à moda. Não podemos esquecer que Roland Barthes só publicou seu ensaio clássico Système de la Mode, em 1967.

Gilda de Mello e Souza, de Araraquara, mudou-se para São Paulo a fim de cursar a recém inaugurada Faculdade de Filosofia da USP, tornou-se uma das primeiras mulheres a freqüentar o programa e estabeleceu-se na casa de seu primo, o escritor Mario de Andrade, outro importante intelectual que assumiu a fotografia como linguagem quando realizou suas viagens Brasil afora. No Instituto de Estudos Brasileiros da USP (www.ieb.usp.br) é possível acessarmos o arquivo do escritor e nos depararmos com inúmeros exemplares de revistas internacionais de fotografia que ele assinou por quase duas décadas.

O Espírito das Roupas

O Espírito das Roupas

Recomendamos a leitura de O Espírito das Roupas, conceito extraído a partir da epígrafe da tese assinada por Thomas Carlyle. A divisão dos capítulos é perfeita e Gilda vai avançando em sua análise à medida que se articulam as diferentes manifestações artísticas com a moda, herdeira direta da revolução industrial potencializada na primeira metade do século XIX e que vai alcançar a notoriedade e independência juntamente com outras conquistas da modernidade.

Gilda, em grande parte de seu trabalho, analisa imagens de seu próprio álbum de família, fazendeiros bem sucedidos da região de Araraquara até a crise de 1929. É através de álbuns familiares e da sua intimidade com aqueles personagens fotografados é que ela amplia conceitualmente o valor da imagem, estabelece boas relações entre o retratado e a pose, a roupa e os objetos de cena, o cenário e a composição. Sem dúvida, uma análise pioneira da imagem fotográfica bem como sua valorização enquanto documento e informação.

Com o olhar de hoje, o único senão para este trabalho seria a falta de identificação dos fotógrafos, e a não localização dos seus ateliês. Mas isso não empobrece a análise uma vez que a maior preocupação de Gilda de Mello e Souza foi entender a moda como produto cultural da modernidade. Isso fica evidente nas imagens selecionadas para a edição do livro que valorizam o gesto, a atitude e a roupa dos brasileiros fixados nas fotografias. Uma análise vigorosa que determina a importância deste trabalho para todos aqueles que se interessam perceber o mundo como uma trama que se constrói através de múltiplos processos colaborativos e distintas conexões entre as linguagens.


Iphan x Emurb: história como representação e história como burocracia

As obras de revitalização do Largo da Batata, no bairro Pinheiros em São Paulo, foram paralisadas porque os trabalhadores encontraram nas escavações um local com objetos de suposto valor arqueológico. A prefeitura, que quer tocar a obra, e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Governo Federal), que quer pesquisar o material, entraram numa disputa para decidir o quão arqueológico é o tal sítio: a prefeitura alega que os objetos encontrados têm 60 anos, o Iphan, cerca de 200 anos.

É uma discussão técnica, não me atreveria a opinar, mesmo com a certeza de que há muita coisa importante do século XX a se preservar. Mas achei curiosa mesmo a explicação da prefeitura, conforme a Folha de S. Paulo:

“Quem apresentou os objetos ontem em nome da prefeitura foi o diretor de obras da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização), Edward Zeppo Boretto: “São dos anos 50”. “Não têm valor porque na época a fotografia já existia“, acrescentou um assessor da Emurb” (“Sítio arqueológico em Pinheiros para obra e irrita prefeitura”, Folha de S. Paulo, 22/12/09).

Como assim? O que a fotografia resolve nesse caso?

É verdade que a frase pode estar fora de contexto, já que o texto da Folha sequer apresenta o nome do tal assessor. Mas é um pensamento burocrático que reconhecemos cotidianamente.

É inegável a importância que o desenho, a fotografia, o cinema e o vídeo (e, quem sabe, já a computação gráfica) têm para as pesquisas em ciências humanas. Aprendemos muito com elas. Acredito mesmo que, em algumas situações, elas nos ensinam mais que a observação direta das coisas. Acredito até que não exista uma “história em si”, mas o conjunto de suas ruínas e de suas representações. Mas é perigoso inverter o raciocínio e supor que a imagem, quando reconhecida e oficializada como documento, torna o fato dispensável, assim como a possibilidade de retornar a seus outros fragmentos, às suas outras representações.

Não se pode confundir o poder testemunhal dos documentos com o princípio pragmático da burocracia. No primeiro caso, o documento traz questões sobre a realidade, no segundo, ele a silencia.

Sabe quando você está diante do guichê com uma questão de vida ou morte e o funcionário confere os formulários sem olhar pra sua cara? Ou quando a atendente do SAC te dá o número do protocolo como resposta àquela longa história que tem tirado seu sono há dias? Ou, como lembra Arlindo Machado, quando você cai na ilegalidade porque você deixou de se parecer com a foto da carteira de identidade? Essas são relações burocráticas com as representações.

Se depender do tal assessor da Emurb, a história será um conjunto de imagens em bom estado, guardadas num arquivo de aço, em ambiente climatizado, cada qual com sua ficha catalográfica preenchida corretamente. Mas não é tudo. Em nome da democracia, essas imagens estarão em breve acessíveis na internet, e algumas delas até poderão ser vistas com efeito 3D, para garantir que detalhes sutis da história não se percam.

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PS.: para participar da proposta feita pela Cia de Foto, que convidou o público a enviar imagens de São Paulo, fiz um passeio pela cidade no dia 13/01, e aproveitei para fotografar o Largo da Batata. Vi que a prefeitura ganhou a parada e as obras foram retomadas.

Largo da Batata, Pinheiros, São Paulo

Largo da Batata, São Paulo

Rua Martim Carrasco, região do Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, São Paulo

Rua Martim Carrasco, região do Largo da Batata, São Paulo


170 anos de fotografia no Brasil. VIVA A FOTOGRAFIA BRASILEIRA!

No dia 17 de janeiro de 1840, seis meses após o anúncio oficial do advento da fotografia, uma experiência de daguerreotipia foi realizada no Largo do Paço Imperial na cidade do Rio de Janeiro, pelo abade Louis Compte. Sabemos pelos anúncios dos jornais da época que no navio-escola L’Orientale, viajava o Abade Compte encarregado de propagar o advento da fotografia ao mundo. Suas experiências foram realizadas em Salvador, em dezembro de 1839, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, mas apenas o daguerreótipo de 17 de janeiro, tomado no Largo do Paço, sobreviveu aos nossos dias e pertence à família Imperial, ramo Petrópolis.

Abade Louis Compte. Daguerreótipo, 1840.

Abade Louis Compte. Paço Imperial do Rio de Janeiro. Daguerreótipo, 1840.

O Jornal do Commercio registrou: “É preciso ter visto a cousa com os seus próprios olhos para se fazer idéia da rapidez e do resultado da operação. Em menos de nove minutos o chafariz do Largo do Paço, a praça do Peixe, o Mosteiro de São Bento, e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, precisão e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido feita pela própria mão da natureza, e quase sem intervenção do artista.”

D. Pedro II. Autorretrato, c. 1855.

D. Pedro II. Autorretrato, c. 1855.

Se relativizarmos a questão do tempo e do espaço, seis meses na primeira metade do século XIX é um período pequeno para a fotografia ser disseminada mundo afora. Nessa experiência realizada no Rio de Janeiro, um jovem de 14 anos ficou, como todos os presentes, encantado e estupefato com o resultado. Era D. Pedro II que encomendou um aparelho de daguerreotipia e tornou-se o primeiro fotógrafo amador brasileiro. Esse impulso, somado a uma série de iniciativas pioneiras do Imperador, como a criação do título “Photographo da Casa Imperial” a partir de 1851, atribuído a 23 profissionais (17 no Brasil e 6 no exterior), coloca a produção fotográfica do século XIX como a mais importante da América Latina, qualitativa e quantitativamente falando. E Marc Ferrez, que recebeu o título de “Photographo da Marinha Imperial”, talvez seja o exemplo mais emblemático dessa produção, já que seu trabalho tem hoje reconhecimento internacional frente à produção do século XIX.

A primeira grande sistematização da fotografia brasileira foi publicada no Rio de Janeiro, em 1946, pelo historiador Gilberto Ferrez (1908-2000), neto e herdeiro do fotógrafo, na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Nº 10. O ensaio A Fotografia no Brasil e um de seus mais dedicados servidores: Marc Ferrez (1843-1923) ocupava as páginas 169-304, já trazia boas fotografias da sua coleção e buscava mapear o movimento da fotografia no período estudado. Trinta anos mais tarde, o historiador e professor Boris Kossoy, mostrou ao mundo que o francês Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), isoladamente na cidade Vila da São Carlos, atual Campinas, descobre em 1832 os processos de registro da imagem fotográfica. E mais, escreve a palavra photographia para denominar o processo. As pesquisas do professor Kossoy, desenvolvidas a partir de 1973 e comprovadas nos laboratórios de Rochester, nos Estados Unidos, ganharam as páginas das principais revistas de arte e fotografia do mundo, entre elas, a Art Forum, de fevereiro de 1976 e a Popular Photography, de novembro de 1976. No mesmo ano foi publicada a primeira edição do livro Hercules Florence 1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil, agora na terceira edição ampliada pela EDUSP.

Retrato de Hercules Florence, 1875

Retrato de Hercules Florence, 1875

A tese demonstrou que esse fato isolado provocou uma reviravolta e uma nova interpretação da história da fotografia, que tem agora seu início não mais em Nièpce e Daguerre, mas é entendida como uma série de iniciativas de pesquisa que foram desenvolvidas quase simultaneamente, gestando o advento da fotografia. Uma nova história da fotografia relaciona os nomes dos pioneiros sem hierarquizá-los ou priorizá-los do ponto de vista da descoberta.

É importante nos lembrarmos destas nossas iniciativas pioneiras, pois além de sistematizarem uma história mínima, nos propiciaram a possibilidade de buscar e relacionar outras fontes e trazer à superfície a história de muitos outros profissionais que desenvolveram incríveis trabalhos de documentação e linguagem. O novo gesta-se no conhecido, uma idéia que dá importância ao conhecimento acumulado por todos aqueles que têm preocupação de pesquisar e democratizar informações com o intuito de que outros pesquisadores desenvolvam novas reflexões e indagações diversas a partir do que foi estabelecido.

Nesses últimos anos, diversos livros foram publicados sobre a produção fotográfica brasileira produzida no século XIX e primeira metade do século XX, enriquecendo a iconografia conhecida e agregando alguns dados novos sobre a biografia dos fotógrafos e suas trajetórias profissionais. Além disso, o interesse despertado em jovens pesquisadores, em todo o Brasil, evidencia a urgência de sistematizar informações, divulgar acervos e coleções e estabelecer parâmetros de análise e crítica sobre a produção e preservação fotográfica. Dezenas de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado foram apresentadas nos últimos anos, algumas delas já publicadas, demonstrando que precisamos encorpar, relacionar e preservar nossa fotografia, bem como discutir a produção contemporânea com o intuito de produzir um corpus mínimo capaz de facilitar nossa compreensão sobre a fotografia enquanto fato cultural da maior importância para a identidade e memória de um povo.

Infelizmente nenhum Museu ou Instituição Cultural programou alguma atividade para celebrar os 170 anos da fotografia no Brasil, mas com este texto queremos reforçar a máxima popular que diz “um país sem memória é um país sem história”. Particularmente, estamos programando um Seminário, ainda este semestre, cujo objetivo será comemorar esta data, com discussão, reflexão e crítica sobre a fotografia brasileira. O momento é olhar um pouco para trás para fortalecer o presente e criar bases sólidas para refletir sobre o novo cenário da imagem técnica, particularmente a fotografia.


Coletivizando o Coletivo

Mote

Cia de Foto. Primeira imagem da proposta São Paulo de Muitos

Cia de Foto. Primeira imagem da proposta "São Paulo de Muitos"

Nestes dias, vimos uma iniciativa da Cia de Foto que abriu à comunidade de fotógrafos o convite para ocupar duas páginas da Revista da Folha com imagens de São Paulo, na edição que sairá na véspera do aniversário da cidade. Desde algum tempo, acompanho a produção da Cia e o blog, mas não tinha idéia do poder agregador dessa turma: com a provocação que fizeram, reuniram mais de 200 autores, entre fotógrafos importantes, outros emergentes, alguns esporádicos (como eu) e, claro, outros coletivos. A idéia se espalhou e ganhou corpo com o título de “São Paulo de Muitos”.

A rede como evento

Por falta de tempo e desenvoltura, freqüento menos do que deveria os blogs e as redes sociais. Mas temos que admitir a força desses meios. A internet já me salvou da solidão da pesquisa outras vezes.  Independentemente da quantidade de leitores que conquistamos, o mais incrível é descobrir e fazer contato com um tanto de gente boa que tem produzido e pensado a fotografia. Foi assim que encontrei alguns blogs, foi assim que deu vontade de ter um. E aqui estamos, eu e o Rubens, também graças ao incentivo de outros blogueiros que encontramos no momento certo: Pio Figueiroa, Livia Aquino, Georgia Quintas…

O que há de mais rico nessas experiências não é o conteúdo de cada blog, mas alguma coisa que acontece entre eles. Às vezes, eu sinto que as redes proporcionam uma interação e uma imersão semelhante àquela que só vemos nos grandes eventos, mas ainda mais potencializada. Digo isso porque, pela rede, tenho esbarrado em muita gente legal, com conversas informais, mas muito comprometidas, algo que eu só vivi nas antigas Semanas Nacionais de Fotografia. Infelizmente, não tenho frequentado, mas não esqueço da importância de eventos como o Paraty em Foco que, além de cruzar alguns blogs, é um desses grandes espaços em que o pessoal da fotografia se cruza em carne e osso.

Também como nos grandes eventos, ao lado daqueles que aproveitam esses tantos pequenos encontros, há os que sabem criar condições para que eles aconteçam. É esse o papel que a Cia tem feito muito bem nas redes, mandando recados, dando dicas, estimulando, provocando, convidando um blogueiro a ver o post do outro. No final das contas, é um trabalho de ação cultural, que une um contingente de pessoas que só agora percebo.

O que a Cia faz nas redes é uma espécie de metáfora de seu próprio processo de criação, em que a interação é mais forte do que os gestos individuais, em que o todo é mais que a soma das partes. Ou seja, o coletivo já é em si uma rede, espécie de microcosmo análogo ao cosmo da internet, que por sua vez é análogo ao macrocosmo que chamamos de cultura.

Autoria

Na prática, toda criação tem algo de coletivo. Quando um pintor usa a perspectiva, quando um fotógrafo regula sua câmera, quando um editor de imagens seleciona um efeito no photoshop, todos estão recorrendo a um saber acumulado, transformado em programa e colocado à disposição dos criadores. Desse modo, há um universo de anônimos que são sempre co-autoras das nossas imagens de modo que, quando expressamos algo, a cultura fala junto conosco.

A noção de autoria, sobretudo ligada a um indivíduo, não existiu sempre na história. Existe com mais clareza há uns 500 anos. Antes, os contornos desse sujeito não eram assim tão claros. Por exemplo, não se sabe ao certo se Homero escreveu a Ilíada e a Odisséia, se foi um cantador erudito que organizou narrativas que circulavam pela Grécia, ou se é uma espécie de personagem síntese dos próprios mitos que são narrados por sua suposta voz. Outro exemplo: um sacerdote medieval não pensava como sendo suas as decisões sobre o ícone que pintava, ele se supunha instrumento de algo maior do que ele, por isso, não havia sentido em assinar a obra. Foi a modernidade (no sentido amplo, algo que começa a se organizar lá pelos séculos XVI, XVII) que construiu a noção de indivíduo, alguém que se sente autônomo com relação a Deus, à natureza e à coletividade. É aí que surgem os gênios, com seus estilos peculiares, suas personalidades marcantes, com suas assinaturas valiosas.

Em 1969, Foucault realizou uma conferência chamada “O que é um autor?”, lançando sobre a literatura questões que podemos conduzir a outras artes. Para ele, “autor” é uma função, ou seja, algo que não existe em si, mas para algumas finalidades dadas historicamente, dentre elas, garantir que a obra opere sob a condição de propriedade privada. Uma outra função é permitir checar um pensamento diante de um nome que merece ou não nossa confiança, em outras palavras, que tem ou não autoridade. Como não encontramos alternativas satisfatórias ao capitalismo, ok, a demarcação dessa propriedade privada (o direito autoral) permanece indispensável, é nosso meio de sobrevivência. Mas não deixa de ser perturbador – uma pequena revolução – substituir o “nome próprio” que nos situa diante de uma obra pelo nome coletivo.

A afirmação da “autoria”, assim como do “sujeito”, é uma aquisição da qual não abrimos mão. Mas ela corre sempre o risco de tornar a arte uma manifestação egocêntrica, e cria a ilusão de que algumas conquistas históricas são produto de ações de indivíduos. Entre a massa alienada que obedece a estereótipos e o indivíduo que acredita criar tudo a partir do zero e de si mesmo, a idéia de “rede” parece trazer uma medida mais adequada à realidade de uma experiência cultural. No que se refere particularmente à arte, a idéia de “coletivo” tem o mesmo valor: permite construir e manter uma identidade autoral forte sem cair no culto ao indivíduo, a um nome.

Criação e inteligência coletiva

O filósofo francês Pierre Lévy observa que as redes constituem um aparato de percepção, memória e aprendizado exterior aos indivíduos. Como experiência descentralizada, essa nova cognição resulta no que chamou de “inteligência coletiva”, maior em amplitude e alcance que a inteligência individual ou mesmo a acadêmica; uma inteligência que se desenvolve de modo autônomo com relação aos projetos individuais ou institucionais. É uma idéia importante, mesmo que eu não seja tão otimista quanto Lévy: ao lado dessa inteligência existe também a possibilidade de desenvolvimento autônomo de algumas burrices coletivas, sobretudo quando dissolvemos todas as referências de qualidade em nome de um “democratismo”.

Acho mais produtivo quando aliamos a liberdade de expressão nas redes a projetos que assumem a responsabilidade de propor parâmetros para as ações. Ou seja, também nesse sentido, o ideal me parece algo entre a vaidade individual e a alienação das massas. Coletivo (seja um grupo de artistas, de pesquisadores, de blogs) é, porque não, um nome que podemos dar a essa boa medida. No caso específico da Cia de Foto, enquanto buscam referências para seus próprios trabalhos, estimulam e reverberam aquilo que julgam ter qualidade, conectam e ampliam o sentido de produções isoladas, e colocam lado a lado nomes com diferentes pesos de autoridade. Em outras palavras, enquanto criam, fazem o que poderiamos chamar de política cultural (se o termo não estivesse tão desgastado), talvez a mais adequada aos nossos tempos e aos potenciais das novas tecnologias.


Avatar: coisas que a história da fotografia ensina sobre o futuro do cinema

http://www.youtube.com/watch?v=TYIqtFeXZbM

Making of de Avatar, 2009. Dica do Blog Brainstorm9.

Armado de duas sobrinhas como pretexto, fui ver Avatar, iMax, 3D, pacote completo. O tempo voou, foi uma ótima diversão. O filme de James Cameron tem o que há de melhor em termos de efeitos especiais, uma história bem construída que alia saudosismo bucólico e imaginário high-tech (como disse minha sobrinha, a floresta de Pandora tem nativos e animais que já vem com USB). Além disso, o filme faz o esforço possível nesse contexto para deixar o espírito mais elevado: “o filme tem mensagem”, ouvi  numa conversa entre dois desconhecidos. Considerando a média das superproduções, não é pouca coisa. Quem tiver dúvida, vá ver coisas como Independence Day, O Código Da Vinci, Eu sou a lenda que também explodiram nas bilheterias.

Saí da sessão pensando muito no que falam sobre o filme, que tem sido aclamado como um marco na história do cinema. Será? Certamente não pelo enredo, que está na medida para o público que busca entretenimento, não mais que isso. Talvez pelos efeitos especiais, que impressionam muito. Mas também impressionaram muito os efeitos de Guerra nas Estrelas (1977), Tron (1982), Matrix (1999). Essas coisas têm prazo de validade, e os seres de Avatar podem parecer bonecos de pano daqui a 20 anos.

O 3D é a questão. Dá pra notar que o filme foi desenhado para ser visto desse modo, sobretudo a fauna e na flora exóticas do planeta Pandora, cheias de planos bem demarcados e movimentos inesperados. Funciona muito bem. É pretensioso dizer que é um marco na história do cinema, mas certamente é um marco na história do cinema 3D: a tecnologia está mais bem resolvida do que na época de Tubarão e, ao contrário de coisas como O fundo do mar que são exibidas agora nessas salas, Avatar pelo menos é um filme.

O futuro do cinema é esse? Por mim, não precisaria, mas vamos discutir um pouco.

Minha opinião quase não vale. Mesmo que eu tenha me divertido, não é esse o cinema que me toca. Por enquanto, o que penso é que vale a pena ver de vez em quando um filme com essa tecnologia, como vale a pena andar de montanha russa no Hopi Hari… É legal, é uma experiência pra se ter, mas não é o que me interessa no cinema. Atrapalha um pouco o fato de eu ter visto também nesta semana O Eclipse (1962) de Antonioni, em tudo oposto a Avatar: lento, p&b, silencioso, denso, e sem um mundo paralelo que possa salvar o ser humano de seus fracassos. Aí eu fico confuso, cheio de preconceitos, e meus pensamentos sobre o 3D ficam contaminados por comparações que não fazem o menor sentido.

http://www.youtube.com/watch?v=oSqhOzdTG-g

Seria interessante ver algum grande diretor experimentando o 3D, quem sabe, aliando uma tecnologia surpreendente com um conteúdo surpreendente. Há 30 anos, Antonioni e Coppola decidiram brincar com as cores e as luzes, fazendo longas-metragens em vídeo: o primeiro fez O Mistério de Oberwald (1981), que passou batido, e o segundo, O Fundo do Coração (1982), que o diretor de fotografia preferiu refazer todinho em película antes de lançar. Mas um exemplo de que é possível conciliar efeitos especiais e conteúdo é Kubrick, com 2001 (1968), que é intenso, belo e, ainda hoje, os efeitos convencem. Aliás, a sessão de Avatar começou muito bem, com um trailer também 3D do ainda não lançado Alice, de Tim Burton, um desses caras que transitam bem pelo entretenimento e pelo experimentalismo. Enfim, pode vir coisa muito boa, mas eu ainda não vejo “o meu cinema” indo na direção do 3D.

Tendemos a pensar o cinema 3D como ápice da evolução do realismo. Mas temos que desconfiar desse conceito: toda estratégia de representação, quando nos habituamos a ela, nos parece realista. E, ao contrário, para os olhares não acomodados, a mais sofisticada das imagens pode parecer tosca. No limite, isso quer dizer que um egípcio antigo acharia a fotografia uma imagem estilizada, distorcida, talvez precária, como achamos as imagens deles. Isso pode ser pensado em termos históricos: a representação mais fiel é aquela cujos códigos foram mais enraizados na cultura, ao longo de décadas ou séculos.

Mas nosso olhar globalizado se tornou versátil, e essa acomodação pode ser muito rápida: depois de alguns minutos, aqueles que têm o espírito aberto podem achar muito convincente um filme mudo e P&B de Chaplin, a Branca de Neve totalmente 2D da Disney, um filme todo feito com fotografia como o La Jetée de Chris Marker, ou outro sem cenário como o Dog Ville de Lars Von Trier.

Em contrapartida, o impacto de Avatar 3D também se atenua. No começo, você se esquiva dos objetos que se projetam em sua direção (do mesmo jeito que a platéia fez com A chegada do trem em La Ciotat, dos irmãos Lumière, há mais de um século). Depois de meia hora, tudo se naturaliza, você se habitua e começa a ver o filme do jeito que está acostumado. Se de vez em quando um objeto gigantesco não fosse atirado bruscamente na sua direção, você nem se lembraria que pagou mais caro para ter uma dimensão a mais.

Na prática, seja qual for o tipo de filme que as pessoas gostam, duvido que saiam das sessões pensando algo como: “até que o filme é bom, mas falta alguma coisa, talvez uma dimensãozinha…”. Mesmo que todas as novidades sejam bem vindas, às vezes a tecnologia dá respostas a questões que não foram colocadas, ou que não são prioritárias. Lembro do Arlindo Machado comentando a TV de alta-definição numa aula na USP: “será ótimo, mas as pessoas não clamam por mais pixels, elas querem uma programação melhor”.

Todo o cinema será 3D em breve? O suposto acréscimo de realismo pode não ser tão decisivo quanto imaginamos. A história da fotografia que conhecemos tão bem nos mostra movimentos distintos. A cor veio pra ficar, mas não porque foi uma evolução da linguagem, porque tornou a imagem melhor ou mais realista. O P&B resistiu muito além do que se esperava, mas foi se tornando uma artesania complicada e economicamente inviável. Houve nesse caso uma pressão da indústria para a padronização. Com as câmeras digitais, o P&B virou um “efeito” disponível tanto na câmera e quanto nas ferramentas de pós-produção, mas a cor estabeleceu sua hegemonia.

Mas e a fotografia estereoscópica (3D)? Idêntica em essência ao atual cinema 3D, e disponível desde o século XIX, simplesmente não pegou. Passou de brinquedo de adulto a brinquedo de criança, mas não criou uma dinâmica convincente para a fotografia. Nesse caso, pesaram mais os rituais consolidados em torno de uma imagem simples, que pode ser manipulada livremente, que pode estar num álbum, no meio de um livro, impressa no jornal, pendurada na parece, no blog, no Flickr…

Gostei da brincadeira de Avatar, mas não consigo imaginar meus filmes preferidos em 3D. E apostaria que os próximos filmes da minha vida vão continuar como sempre estiveram. Mas, se esse for o caminho da indústria como andam dizendo, a ponto de não fazer sentido ter um filme de alto investimento em tecnologia tradicional, talvez o abismo entre o cinema de arte e o cinema de entretenimento fique um tanto maior (mesmo que diretores geniais possam fazer experiências inusitadas e complexas com as novas tecnologias, mesmo que a indústria possa surpreender com produções comerciais de grande profundidade).

Não será fácil. A produção de um filme convencional deverá assumir desde o início uma baixa expectativa de bilheteria. Por sua vez, manter uma sala convencional poderá se tornar um luxo sem sentido, para a alegria das igrejas evangélicas. Tanto uma coisa quanto outra vai depender ainda mais de patrocínios e políticas públicas. Aí as coisas ficam definitivamente imprevisíveis. Se essa for a tendência, talvez esse cinema como conhecemos passe a ser exibido em espaços que tem mais a ver com a dinâmica das galerias e museus, ou em mostras ainda mais alternativas do que as atuais. Sem problemas, estaremos lá!

Saindo do iMAX e, depois, almoçando no América do mesmo shopping, fiquei pensando nessas coisas todas, até que recebi uma mensagem iluminada… Encontrei ali mesmo Carlos Moreira, fotógrafo que viu muita coisa mudar e que permanece ativo, fotografando e ensinando, meditando quando necessário e indo ao Shopping quando conveniente. Quando eu fiz algumas de suas oficinas, há 20 anos, ele já discutia os benefícios das novas tecnologias, assim como nos convidava a tirar de vez em quando a bateria da câmera para desligar o fotômetro. Então, entendi que não importa o que se tornará hegemônico: estará tudo bem enquanto houver alguma brecha de escolha e um pouco de coragem. E nos divertiremos muito também se não houver grandes preconceitos com o que há pela frente.


A fotografia e a gravidade

Em algum momento de nossa história, a fotografia foi assimilada de tal modo que tanto suas imagens quanto suas dinâmicas de produção parecem ter se naturalizado. Isso significa que lidamos com ela da mesma forma com que lidamos com a gravidade: ela está dada, ela é como deve ser, e participa de nossas vidas de modo fluido, sem que precisemos nos perguntar como funciona.

Seria incrível (se não durasse séculos) viver esse momento em que uma tecnologia nasce e se difunde, algo que poderia ser lúdico como caminhar na lua ou desconfortável como andar com um escafandro, situações em que a gravidade ganha espessura.

Em todo caso, a relação ideal com a tecnologia se dá numa situação em que ela já produz sentido mas ainda soa como artifício. Quando está aquém disso, ela pode ser violenta: por exemplo, quando a ciência positivista usa a documentação para justificar a educação do selvagem, a assepsia dos hábitos, a cura dos loucos etc. Quando está além, pode ser alienante, porque aceitar a técnica como natural é igualmente perigoso: é quando nós mesmos passamos a posar espontaneamente como pessoas civilizadas, sadias e normais, sem pensar o que isso significa.

Deveríamos guardar um pouco da curiosidade corajosa das crianças quando desmontam seus brinquedos, mesmo que, depois, eles nunca mais funcionem. Porque o pragmatismo adulto impõe o contrário: não compreender as coisas é uma condição para seu bom funcionamento. Daí o recado de Vilém Flusser, quando nos provoca a abrir a “caixa preta”, lembrando que o que ele pensa sobre a fotografia vale também para outros aparelhos (os administrativos, os políticos…).

Nunca vimos tanto a fotografia como imagem, mas vale o esforço de enxergar também a fotografia como procedimento, como performance, ritual, experiência. Sem saudosismos: não falo necessariamente de carregar a câmera com o filme, sair à “caça”, ampliar a foto. Também há gestos, manias e questões mobilizadas pelas imagens captadas pelo celular, processadas no photoshop, postadas nas redes sociais, compradas nos bancos de imagem etc.

O desejo de olhar um pouco mais não apenas para o plano e o instante das imagens, mas para o seu entorno, sua espessura, sua duração é algo que tem aparecido muito nas conversas recentes com os amigos.

No meio disso, lembrei de um filme encantador: Ping-Pong da Mongólia. É a história de um menino que vive no meio do nada e que encontra uma bolinha de ping-pong. Com curiosidade e coragem, ele cria fantasias sobre a origem e a razão desse objeto estranho. A aventura que surge a partir disso funciona bem como metáfora desse momento perigoso e fascinante, em que sentimos o presente se movendo entre o peso da tradição e a força do progresso. Essa instabilidade é tanto mais interessante do que a sensação de que o passado é algo resolvido e o futuro é algo necessário.

E para apresentar o contexto em que se dará essa aventura, o filme começa com uma experiência que nos interessa particularmente: a performance de um retrato de família, aqui, tão deslumbrante quanto desajeitada.

*Video:ping-pong da mongólia, hao ning, 2005
Ping-Pong da Mongólia, Hao Ning, 2005


Históricas Revistas de Fotografia

Casa Stolze

Casa Stolze

Há mais de três décadas venho colecionando tudo o que se relaciona ao mundo da fotografia. Comecei separando artigos interessantes sobre fotografia, algumas revistas, artigos esporádicos sobre técnica e estética fotográfica. Depois vieram os cartões postais, as câmeras de fole (já desfeita), o material efêmero (envelopes de laboratórios, caixas de fósforo anunciando estúdios, propagandas etc.), e finalmente as fotografias propriamente. Para ficar atento ao que está disponível em sebos, brechós e livrarias interior afora, fui montando uma rede de amigos e fornecedores que hoje sabem exatamente o que eu gosto e compro. De tempos em tempos a sorte acena para mim.

No início deste ano recebi um telefonema de um desses meus fornecedores informando que estava diante de um material que nunca tinha visto e que provavelmente interessaria para minha pesquisa. Sim, eles entendem que seus compradores são pesquisadores temáticos e assim fica mais fácil para eles procurarem material de interesse para os diferentes clientes que atendem, já que a diversidade de interesses é enorme. Bem, como sempre, informei que precisava ver o material antes da aquisição, inclusive para ter segurança em termos de qualidade e procedência. A surpresa, diante do material, foi saber que este material estava disponível desde o início de dezembro do ano passado no sebo e que ninguém havia visto nem se interessado até então.

Era um grande número de revistas de fotografia que foi deixado naquele sebo por alguém da família do antigo proprietário. Imediatamente comecei a checar os exemplares e emocionado dei início à negociação. Tratava-se de revistas que pertenceram a Eduardo Salvatore, advogado, fotógrafo e presidente durante décadas do Foto Cine Clube Bandeirante, a quem tive oportunidade de encontrar diversas vezes e de entrevistar. Os envelopes que guardavam parte do material já informavam seu precioso conteúdo, pois Salvatore teve o cuidado de escrever “revistas históricas de fotografia”. Mesmo com estas anotações elas foram descartadas e, por uma sincronia divina, chegaram para mim. Acredito no acaso e nessa possibilidade de conspiração dos deuses que tornaram possível que estas revistas ficassem com alguém que valoriza e preza as informações nelas disponíveis.

O lote (infelizmente essas raridades foram tratadas assim) continha a coleção completa do Boletim do Foto Cine Clube Bandeirante, entre maio de 1946 e dezembro de 1981; dezenas de catálogos de salões internacionais de fotografia dos quais Eduardo Salvatore participou; revistas técnicas de diversas nacionalidades; a revista Artforum de fevereiro de 1976 e Popular Photography de novembro de 1976, ambas publicando textos e fotos sobre Hercule Florence e a descoberta isolada da fotografia no Brasil, tese apresentada nos Estados Unidos pelo professor Boris Kossoy, em março desse mesmo ano.

Revista Photográphica e Revista Brasileira de Photogaphia

Revista Photográphica e Revista Brasileira de Photogaphia

Afora isso, também incluía raridades tais como quatro edições da Revista Photographica, de 1909, “primeiro e único jornal de photographia no Brasil”, com 8 páginas, editada em São Paulo à Rua Lopes de Oliveira, 5; as sete primeiras edições da Revista Brasileira de Photographia, de 1926, “mensário consagrado ao estudo e divulgação da photographia em todos os seus ramos e applicações”, com 32 páginas, de propriedade de Frischkorn, Will & Cia, e na redação Renato Corvello, editada em São Paulo, à Praça da Sé, 46; cinco edições da revista Photogramma, de1926,  “órgão official e propriedade do Photo Club Brasileiro”, com 30 páginas, que tinha como redator-chefe F. Guerra-Duval e secretario Nogueira Borges, conhecidos fotoclubistas na época, editada no Rio de Janeiro, à Rua República do Peru, 35, e que em sua primeira edição traz estranhamente o nome Photogramma colado em diversas páginas internas e uma curiosa folha avulsa informando que o fotoclube foi obrigado juridicamente a alterar o seu nome pois o nome Photographia já estava registrado; e finalmente, doze edições da Photorevista do Brasil, de 1925, “órgão official do Photo Club Brasileiro – revista mensal illustrada de photographia e de cinematographia para amadores e profissionaes”, cujo Director Proprietario Emilio Domingues não era do fotoclube, mas um empresário interessado por fotografia (daí no ano seguinte o mesmo fotoclube criar a revista Photogramma anteriormente citada), editada no Rio de Janeiro, à Rua Treze de Maio, 35, Rio de Janeiro.

Photogramma e Photorevista do Brasil

Photogramma e Photorevista do Brasil

Mais uma vez, a memória foi descartada e cumpriu seu ritual de sorte e acaso. Fico pensando o que seria do conjunto acumulado por Eduardo Salvatore se alguém, fora do interesse da fotografia, adquirisse parte deste material. Faço o registro porque quase todas as revistas estão grifadas e comentadas por Salvatore, principalmente quando o assunto é fotoclube no Brasil, em que ele destacava todos os dados quantitativos sobre a produção e a circulação fotoclubista. Salvatore tinha consciência da importância deste material para a história da fotografia, mas nunca comentou (pelo menos comigo) sobre a existência deste conjunto e suas respostas sobre o movimento fotoclubista estavam sempre associadas às experiências dele, vivenciadas em profundidade.

Estas revistas contêm um rico e diversificado material – textos, fotografias, nomes de profissionais atuantes, anúncios e endereços, que muito poderão colaborar em pesquisas e elucidações desse imenso iceberg que ainda é a história da fotografia brasileira. Por alguma força estranha, que acredito ser uma sincronicidade de objetivos e responsabilidade, de desejos e sonhos em ampliar o conhecimento fotográfico, o conjunto não se dispersou e acabou chegando as minhas mãos. Pretendemos torná-lo público aqui no blog Icônica assim que for higienizado (alguns exemplares precisam de restauro), catalogado e digitalizado.


Gordon Matta-Clark: o registro como obra

Gordon Matta-Clark (1943-1978) pertenceu a uma geração de artistas que, a partir dos anos 60 e 70, rompeu com as linguagens tradicionais para realizar ações cujo valor está sobretudo na experiência e nos debates que propiciam. Seus trabalhos mais importantes são intervenções em espaços urbanos, às vezes sutis como a compra de propriedades minúsculas e inúteis que restaram da especulação imobiliária em Nova York; às vezes grandiosas, como orifícios e recortes gigantescos feitos em edifícios que estavam prestes a desaparecer da paisagem.

Para nós, é uma boa oportunidade para discutir uma questão mal digerida pela história da fotografia: o registro da obra elevado, ele próprio, à condição de obra de arte. Esses mesmos anos 60 e 70 abriram espaços para todo um universo de obras efêmeras ou, às vezes, inacessíveis ao público: performances, processos criativos sem produtos efetivos, instalações provisórias ou sujeitas a uma rápida deterioração, ações de pequeno ou grande porte mas que aconteciam em lugares privados ou muito distantes do olhar do público. Assumindo-se como provisórias, essas experiências foram documentadas através da fotografia, cinema, vídeo e de outros rastros que eventualmente deixaram. Tornando-se reconhecidas, as imagens que geraram passaram a ser expostas em galerias e museus e, ainda, arquivadas, vendidas e colecionadas, ganhado uma aura que ultrapassa seu valor informativo.

Gordon Matta-Clark, splitting, 1974

Gordon Matta-Clark, splitting, 1974

No caso de Matta-Clark, uma rápida pesquisa na web permite verificar que essas fotografias são vendidas com certa regularidade em leilões. Ainda que a noção de originalidade aplicada a fotografia seja sempre discutível, trata-se cópias assinadas diretamente pelo artista, ou acompanhadas de certificados de autenticidade emitidos por ele ou, no mínimo, legitimadas por um histórico de exposições que incluem grandes retrospectivas e bienais.

Para aqueles que tiveram o olhar formado pelo espírito transgressor das últimas décadas, essa assimilação dos registros documentais pelas instituições de arte não chega a ser um problema. No máximo, é uma ocasião para refletir sobre o quanto o mercado exige, mesmo das experiências mais desmaterializadas, que a arte produza algum tipo de objeto colecionável. Para os críticos específicos da fotografia, para a história específica da fotografia e para os fotógrafos, a questão soa mais desconfortável, porque a imagem é aqui apenas um meio, não um fim. É instrumental, periférica, submissa a um processo de criação que não tinha a fotografia como centro de suas questões.

Matta-Clark não é o caso mais problemático. Quem for à retrospectiva perceberá que muitas vezes a documentação em fotografia, cinema ou vídeo estava planejada. As ações eram passageiras, mas já consideravam em suas poéticas os meios para falar à posteridade. Mesmo assim, ainda é irrelevante discutir se os registros foram feitos pelo artista ou por terceiros. Uma vez que tanto se lutou para construir a noção de “fotografia de autor”, essa submissão e esse anonimato podem se tornar dolorosos.

Yves Klein - Salto no Vazio - 1960 - foto Harry Shunk

Salto no Vazio (1960) de Yves Klein, em foto de Harry Shunk

É sintomático o caso do fotógrafo Harry Shunk, que fotografou vários artistas dessa geração irrequieta em plena ação. A diferença é que ele teve autoridade para manter seu nome em evidência e sua coleção reunida (adquirida em 2008 pela Fundação Roy Lichtenstein). Não confundimos, por exemplo, a performance de Yves Klein com a documentação feita por Shunk. Cada um tem seu trabalho, cada um tem seu valor.

Portanto, as alternativas são: ou o fotógrafo desaparece de cena ou reivindica um lugar próprio e exclusivo. Uma terceira possibilidade, mais adequada à complexidade dessa situação, tem surgido com força no contexto da arte contemporânea: a possibilidade de assumir a criação como um processo coletivo. Mas, acostumados ao trabalho solitário, ensimesmado, silencioso, zen, ainda temos dificuldes de fazer tais parcerias. Também temos limitações na hora de contruir o diálogo com uma outra arte. O vídeo, que nasceu sob esses clima de ruptura, soube buscar rapidamente categorias que respondessem ao desejo de hibridização. É, por exemplo, o caso da vídeo-performance, que está efetivamente mais preocupada com a integração do que com a hierarquia entre as linguagens.

Georges Rousse, Dravert, 2007

Georges Rousse, Dravert, 2007

No caso da fotografia, as experiências estão aí, mas não é fácil discuti-las abertamente. Conhecemos artistas que realizam ações exclusivamente para a câmera fotográfica, como Georges Rousse, Cindy Sherman, Vik Muniz, Sophie Calle. Mas os olhares formados pela fotografia tendem a minimizar os aspectos de performance, cenografia, arquitetura, instalação dessas experiências, para resolvê-los como etapas de uma “pré-produção” que não deixa de ser tipica e essencialmente fotográfica. Nosso olhar conservador se orgulha de saber que a fotografia é aqui um fim (não um meio), que é a razão de ser da obra, e que as outras ações estavam a seu serviço.

O problema está colocado. Para os espíritos mais abertos, deixo algumas ponderações:

1. Antes de responder se o registro é ou não uma obra de arte, temos que pensar o que essas mesmas experiências nos propõem a respeito da noção de “obra”. Não é nossa concepção tradicional de criação fotográfica que irá nos ajudar a resolver o problema, assim como, isoladamente, as noções de pintura, escultura, arquitetura, teatro tampouco ajudariam.

2. Independentemente do tipo de arte que adoramos ou abominamos, vale a pena pensar o valor social dessa experiência de difusão e de socialização que se dá pela imagem técnica, mesmo quando ela não soa tão nobre, difícil e singular quanto outras obras tradicionais. Como sugeria Benjamin ao discutir o possível papel revolucionário da “reprodutibilidade técnica”, não lhe interessava naquele momento a “fotografia como arte”, debate tão recorrente quanto infrutífero, mas “a arte como fotografia”.

3. Qual nome responde pela autoria quando um registro fotográfico ascende à condição de obra? Não haveria orgulho em ver o nome do fotógrafo na ficha técnica, por exmeplo, junto aos pedreiros e motoristas de tatores que ajudaram Matta-Clark a rasgar suas paredes. A obra, sobretudo a obra conceitual, é de quem a pensa. Nesse sentido, falta ao fotógrafo construir esse lugar de alguém que pensa a relação de sua imagem com outra obra, ou que a faz junto com outro artista. Atrapalha muito um preconceito que vem de dentro, a vergonha de se supor “apenas registrando”, sobretudo quando há um grande nome diante da câmera. Melhor que isso, seria assusmir o trabalho fotográfico como “releitura”, como “tradução” e, quem sabe, como parte de uma ação coletiva.

4. A possibilidade de algo só “existir por meio da representação” é um fenômeno tipicamente contemporâneo, que toca a arte recente, mas também nossa história, nossa vida social, nossos valores, enfim, tudo daquilo que chamamos de realidade. Por exemplo, para aqueles que amam viajar e fotografar, como separar a viagem em si da viagem que foi construída para a fotografia? É verdade que há excessos e distorções, situações em que a imagem toma completamente o lugar da experiência. Mas, de modo geral, a imagem em si é também uma experiência. Por vezes achamos que a fotografia é um instrumento submisso a uma realidade exterior a ela, por vezes, pensamos que a realidade foi totalmente engolida e substituída pelas imagens (nestes casos, chamadas pejorativamente de simulacros). No meio dessas posições radicais, existe uma medida mais interessante, que é pensar a realidade como resultado de uma interação entre as coisas e suas representações. Se a imagem puder ser vista como algo que não tão alheio à realidade, as documentações, os debates da crítica, os projetos curatoriais poderão ser pensados como elementos não tão exteriores à obra.

Esse é um problema nosso, Matta-Clark sobrevive a isso, é maior do que isso. Com ou sem essas questões, vale a pena ver a exposição. 

Gordon Matta-Clark: Desfazer o espaço está em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (no Parque do Ibirapuera), até 04/04/10.

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PS.: acabo de ver que nosso amigo Eder Chiodetto dará um curso no Espaço Saber do Clube Hebraica:

SABER VER A ARTE CONTEMPORÂNEA

Saber ver a arte contemporânea fará uma abordagem geral da Arte hoje em dia sob visão do mestre Eder Chiodetto com foco no trabalho do fotógrafo Gordon Matta-Clark, um dos artistas mais importantes para a história da fotografia além de estudar os trabalhos de artistas brasileiros como Vik Muniz e Rosângela Rennó.

Às terças-feiras, das 20h30 às 22h30.
Início: 16/03
3818-8888/3818-8812
espacosaber@hebraica.org.br


O olhar e as paixões: sobre o novo filme de J. J. Campanella

Soledad Villamil, Ricardo Darin e Juan José Campanella, durante filmagens de O segredo de seus olhos

Soledad Villamil, Ricardo Darin e Campanella, durante filmagem de O segredo de seus olhos

Neste final de semana, fui ao cinema ver O segredo de seus olhos, dirigido por Juan Jose Campanella e um dos mais bem cotados para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Para quem gosta do cinema argentino, a nova produção pode soar um pouco grandiloqüente, afetada pelos anos em que o diretor esteve a frente de seriados norte-americanos como Law & Order. Mas o filme é ótimo e, mesmo com uma complicada trama policialesca, não perde sua capacidade de introspecção.

Muito de passagem, a fotografia está presente na história. Durante a investigação de um assassinato, o escrivão Benjamín Espósito, personagem interpretado por Ricardo Darin, chega ao nome de um suspeito depois de observar atentamente um álbum de família. Ali, um amigo de infância da vítima aparece em diferentes momentos, sempre com um olhar encantado sobre ela.

Lembrei de Blow Up. No clássico de Antonioni, o fotógrafo Thomas chega também à hipótese de um assassinato quando segue a direção do olhar da suposta criminosa. Num exercício de associações livres, fui um pouco mais longe: tanto o fotógrafo Thomas quanto o escrivão Espósito são figuras entediadas com a rotina de seus trabalhos. Ambos se descobrem enredados pela imprecisão dos registros técnicos com que lidam, sejam os do aparelho fotográfico, sejam os do aparelho judiciário (aparelhos sempre pregam peças, vejam também a máquina de escrever de Espósito, que fala uma língua própria). Nos dois filmes, uma fixação pelos supostos crimes é construída pelos personagens como uma forma de preencher suas vidas “cheias de nada”, como é dito por Espósito.

O filme é sobre as “paixões” humanas, num sentido amplo: aquilo que se manifesta mesmo quando se tenta esconder. E o olhar de Espósito é uma espécie de narrador silencioso da trama, que ora tenta desvendar essas paixões, ora finge inutilmente que não as percebe. Por vezes, tenta dissimular as suas próprias. O olhar está em destaque no título, mas também num tipo de câmera subjetiva que Campanella inventa: subjetiva em termos técnicos, porque mostra o mundo pelos olhos do personagem, mas também em termos simbólicos, porque os sentidos das imagens podem ser contundentes ou tateantes, nítidos ou obscuros, conforme as paixões que movem esse olhar.

Há aqui o exercício daquilo que o professor Alfredo Bosi chamou de “olhar expressivo”, composto pelo fluxo imagens que o mundo dirige ao corpo, mas também pelo fluxo de sentidos que o corpo dirige ao mundo: “esse novo olhar é o que, desde sempre, exprime e reconhece forças e estados internos, tanto no próprio sujeito, que deste modo se revela, quanto no outro, com o qual o sujeito entretém uma relação compreensiva. A percepção do outro depende da leitura dos seus fenômenos expressivos dos quais o olhar é o mais prenhe de significações” (Bosi, “Fenomenologia do Olhar”, 1988).

Voltando à fotografia, olhar para os olhares é um exercício que deveríamos fazer com mais freqüência. É algo que o antropólogo belga Albert Piette chega a propor como método, convidando o etnógrafo a observar a realidade através de seus “modos menores” que se manifestam nas fotografias. Dentre, esses modos menores, destaca os gestos, movimentos, relações, posturas corporais e, explicitamente, os “tipos de olhar” (Piette, Le Mode Mineur De La Realité: paradoxes et photographies en anthropologie, 1992).

Para terminar, uma foto de Doisneau. Sempre achei que essa é uma imagem sobre os olhares (incluindo alguns que não aparecem). Quando você estiver vendo a foto, haverá pelo menos 6 olhares implicados por essa imagem. Quais são eles?

Robert Doisneau, Le Peintre du Pont des Arts, 1953.

Robert Doisneau, Le Peintre du Pont des Arts, 1953.


Fotografia Digital. Breve! Você não pode perder!

É sempre perigoso falar em evolução quando estamos no território da arte. No que diz respeito aos estilos, não é nada correto dizer, por exemplo, que a arte renascentista superou a arte românica medieval, ou que a pintura neoclássica superou a pintura barroca, mesmo que umas tenham sucedido as outras em termos de cronologia. Não podemos pensar a cultura em termos de funcionalidade, portanto, não se trata de dizer um estilo se torna melhor ou mais eficiente que outro. As estratégias da arte dialogam com valores, hábitos, crenças, pensamentos de uma dada época, e todas essas coisas se constroem e se transformam mutuamente. Não é uma questão de eficiência, mas de adequação entre um modelo estético e a cultura.

E se pensarmos em tecnologia, não em estilo? O assunto continua delicado. Sabemos que foram precipitados os prognósticos sobre o fim da pintura diante da fotografia, sobre o fim do cinema diante da televisão, sobre o fim de todas as artes diante das tecnologias digitais. Bobagem!

Mas, sem tom apocalíptico, podemos relembrar alguns episódios. Mesmo que haja quem a utilize ainda hoje, a têmpera (pigmentos com base em gema de ovo), hegemônica noutros tempos, perdeu quase todo seu espaço para a tinta a óleo entre os séculos XV e XVI. Mais próximo da gente, inegável que a câmera analógica está perdendo quase todo seu espaço para a câmera digital, mesmo que daqui a um século, haverá quem utilize uma velharia qualquer ou fabrique artesanalmente o próprio equipamento. Enfim, algumas tecnologias podem efetivamente desaparecer, ou sobreviver apenas como “experimentalismo”.

A pintura a óleo continuou sendo pintura, ninguém discute. E a fotografia digital continua sendo fotografia? Eu diria que sim. Aliás, se essa pergunta me fosse feita de surpresa, diria que não faz sentido. Mas não podemos ignorar o discurso recorrente da “revolução digital”.

Há autores de peso que sugerem uma ruptura. André Rouillé diz logo nas primeiras páginas do recém-traduzido A fotografia (La photographie, 2005): “a mal denominada ‘fotografia digital’ não é de modo algum uma declinação digital da fotografia. Uma ruptura radical às separa: sua diferença não é de grau, mas de natureza”. Ele não aprofunda a discussão, mas retoma essa afirmação em algumas passagens e na conclusão do livro: “do universo analógico ao universo digital, a passagem não é simplesmente técnica; ela toca a natureza mesma da fotografia. A ponto de que não é certo que a ‘fotografia digital’ ainda seja fotografia”.

Num debate no Rio de Janeiro (Projeto Subsolo, 2009), eu esboçava timidamente minha desconfiança quanto a essa revolução, quando Maurício Lissovsky atravessou de modo mais corajoso: “A fotografia digital não existe!” (e não vamos ignorar as inúmeras ponderações que ele certamente é capaz de fazer, mas que, em nome da provocação, não se deu ao trabalho de fazer).

Não podemos deixar de ouvir o recado de Benjamin, que nos ensina que a mudança no modo de produzir as imagens muda a percepção que temos dela. Ele é muito convincente quando fala da fotografia e do cinema: por mais que essas artes permanecessem presas por algum tempo aos cânones da pintura ou do teatro, algo havia mudado pra valer na relação com público.

Benjamin – assim como Marx – não poderia imaginar algumas sutilezas do capitalismo, que sabe colocar o novo a serviço da conservação das estruturas. Assim se diluem muitas das grandes e pequenas promessas de revolução. Somos convidados a renovar nossos gadgets, mas continuamos em boa medida produzindo nossas imagens do mesmo modo e vendo as mesmas imagens nos mesmos lugares.

Fotografia analógica e fotografia digital de Paris

Fotografia analógica e fotografia digital de Paris

No final das contas, pode ser que a resitência às mudanças tenha sobretudo razões mercadológicas. Mas, ao contrário do que sugere  as correntes menos dialéticas do marxismo, é preferível pensar a economia como um elemento dentro da cultura, e não como sua determinante. Isso significa que uma resistência mercadológica é também uma resistência cultural.

De todo modo, não vejo razão para usar outro termo que não “fotografia”. Do ponto de vista teórico, entendo perfeitamente a mudança de natureza de que fala Ruillé, mas ainda não posso senti-la pra valer. É mais ou menos como a física quântica, quando nos convence de que há toda uma dimensão da realidade que não se submete à mecânica de Newton. Acreditamos, mas continuamos regidos pela mesma gravidade. Gravidade da qual, aliás, já muito pouco nos lembrávamos.

Enfim, reconhecemos que o processo de codificação da imagem digital é radicalmente diferente e isso se desdobra em inúmeras possibilidades e promessas. Mas, na prática, a dinâmica de utilização das imagens produzidas pelas novas câmeras tem sido submissa à tradição. A gente fotografa os amigos, as festas, as viagens, as coisas inusitadas do cotidiano. O estado, a ciência, os meios de comunicação continuam documentando com a câmera digital as coisas importantes para a ordem do conhecimento e da sociedade. Vez ou outra, nos assustamos com episódios de manipulação da imagem. Antes, idem.

Isso acontece em outros campos também: com medo de ficar de fora do jogo tecnológico, comprei um LCD e mudei o plano da minha TV a cabo. Mas ainda estou esperando para ver do que se trata a tal da TV digital. É incrível como as mudanças são rápidas, é incrível como as mudanças são lentas.

Para mim, a passagem da máquina de escrever para o computador foi uma experiência mais radical que a da câmera analógica para a digital. Comecei a escrever minha dissertação de mestrado numa Olivetti e terminei num Word para DOS. Ao final do processo, não sabia mais lidar com os rascunhos que havia feito a mão, quando ainda pensava na datilografia. Aqui sim as possibilidades de manipulação foram imediatamente sentidas e adotadas, mesmo pelo público leigo. Antes, o texto passava mais abruptamente de pensamentos desconexos para a versão final. Agora o texto vai sendo construído, lapidado, revisado, reorganizado, enfim, editado. Mesmo assim, quem usa essa ferramenta para fazer arte, continua fazendo literatura.

É certo, alguns grandes impactos ainda estão por acontecer ou por serem assumidos. Boa parte da mudança ainda é quantitativa (fotografamos mais, mais gente fotografa, manipulamos mais), não de natureza. Eu imaginava que o acesso às novas tecnologias traria maior consciência dos códigos (em outras palavras, do caráter construído da imagem), do modo de funcionamento do aparato. Mas até isso a fotografia digital ainda está devendo. O mesmo usuário que usa softwares para tirar olho vermelho, para deixar o céu mais azul ou para fazer pequenas montagens ainda abre o jornal e acredita na fidelidade da fotografia aos fatos.

Paris vista pelo Google Maps

Paris vista pelo Google Maps

Se vejo uma mudança importante, é aquela que ocorre nas brechas. Tem a ver com os celulares, com as redes sociais, e mesmo com a pirataria, coisas que ainda estamos aprendendo a digerir. Nesse contexto, as fotografias são feitas e publicadas de um modo surpreendente: as imagens passam das gavetas e para os pendrives, dos álbuns para redes; não há mais estruturas distintas (e nem delay) para a produção, a edição e a publicação; as imagens se tornam livres das legendas e dos textos ou, pelo menos, um tanto desconexas com relação a eles; o ciclo de interesse do olhar é mais curto, mas as imagens estão mais sujeitas à reciclagem e à recontextualização; a autoria se dilui… Essas sim são coisas que merecem torrar nossos neurônios, não tanto a passagem da película para o CCD.

Tem um lado ruim nisso: nunca olhamos tão pouco para as imagens que produzimos, em termos de intensidade e duração do olhar. Mas sem moralismos, tem também uma experiência boa acontecendo bem aqui ao lado com as fotografias veiculadas pelas redes. Basta olhar para os blogs dos colegas e para os projetos que nascem em torno deles.


Por onde andou Sebastião Salgado?

Esses dias, li uma entrevista com Sebastião Salgado na revista Serafina (disponível on-line apenas para assinantes), da Folha de S. Paulo, publicada no domingo passado. Aí fiquei pensando: porque paramos de falar de Sebastião Salgado? Pra dizer a verdade, nem tenho certeza de que paramos, mas tenho a impressão de não ter ouvido quase nada sobre ele nos últimos anos. Não tenho lido artigos, o nome dele não é citado nos debates e palestras dos colegas. Apenas vez ou outra ele aparece como notícia.

Engraçado que, nas minhas aulas, mais cedo ou mais tarde alguém sempre perguntava: o que você acha de Sebastião Salgado? Hoje, ninguém pergunta mais.

É uma questão honesta, não tenho idéia do que aconteceu. Como eu não tenho acompanhado muito o fotojornalismo, eu posso muito bem ter perdido alguma coisa. Mas, até que alguém me explique, vou especular:

– Talvez esteja tudo bem. Apenas se tornou muito óbvio falar de Sebastião Salgado: pra que falar dele se todo mundo fala dele? Aí, ninguém falou mais dele.

– Talvez as pessoas tenham se saturado dele por conta de um processo de celebrização. Cansamos de Sebastião Salgado, como cansamos de toda superexposição.

– Talvez ele tenha se tornado uma figura messiânica demais e, como somos céticos, temos a obrigação de desconfiar de alguém que aparece de repente para salvar o mundo.

– Talvez guardemos algum ressentimento. Nos anos 90, comemoramos seu sucesso. Mas o “bom filho” não tem retornado muito à casa, e passamos a assumi-lo como estrangeiro.

– Talvez as pessoas não gostem mais do seu trabalho. Talvez condenem o excesso de pose: Sebastião Salgado manipula a realidade através de sua fotografia!

E por aí vai. Talvez um pouco de cada coisa, e de outras tantas.

Êxodos

Quando Salgado lançou o livro Êxodos, eu gostei muito, e gostei mais ainda por uma circunstância muito pessoal. Eu tinha acabado de traduzir um livro de Pierre Lévy, filósofo franco-tunisiano, um dos primeiros a produzir um pensamento denso sobre as novas tecnologias. Mas a obra que me propuseram, World Philosophie (que virou A Conexão Planetária), representava um momento de deslumbramento de Lévy com o mundo. Ele falava da liberdade trazida pelas redes e pela economia globalizada. Era lindo poder ser um cidadão do mundo, trabalhar e pensar em colaboração com pessoas tão distantes, dormir num país e acordar em outro. O mundo começava a abrir suas fronteiras, era fácil ver como as pessoas se deslocavam e diluíam o mapa.

Aí chegou em casa o livro Êxodos, e foi fácil entender que esse grande fluxo de pessoas se deslocando pelo mundo não é necessariamente produto de uma liberdade, mas de um exílio. Para mim, a tese de Salgado era mais convincente do que a de Lévy. Gostei das imagens, gostei do choque de realidade e gostei principalmente de poder ver um pensamento ser desenvolvido por meio de imagens.

Mostrei esse trabalho em algumas aulas, falei um pouco sobre ele, mas passou. Os outros livros que ele lançou, cheguei a ver por aí, mas não comprei. Eu esqueci Sebastião Salgado. Portanto, dali até a leitura da entrevista na Serafina, tem uma história que eu não acompanhei.

Serafina

A revista se propõe a comentar Gênesis, o novo trabalho, mas começa de fato desenhando uma celebridade: avisa que levou um ano e meio para conseguir a entrevista e que, logo após o encontro com a reportagem, ele estaria lotado de compromissos. Dentre eles, uma viagem à África “para passar um tempinho com os Pigmeus”. Essa frase, entre aspas, deve ter sido dita por ele. Mas, colocada desse modo, soa como a Madona fazendo turismo social entre um show e outro. Em seguida, a jornalista descreve sua roupa e explica como ele consegue manter sua careca tão reluzente mesmo quando está na Patagônia ou em Galápagos.

Difícil saber de quem é a culpa, mas a revista aponta para um ecologismo estranho, com frases do tipo: “a iguana é minha prima”. Tudo isso soa menos complexo do que as grandes questões sobre a exploração da força de trabalho ou sobre os deslocamentos populacionais que víamos nas outras pesquisas.

Como todo romântico, Salgado é nostálgico: “busco terras que permanecem iguais desde o começo da criação, humanos que representam os seres que fomos há milhares de anos”. Mas, nas palavras da revista (a legenda de uma foto), isso vira um Darwinismo mal interpretado e desastroso: “Os mentawai consideram a natureza uma divindade. Estão no estágio evolutivo da domesticação das plantas e animais”. Qual estágio evolutivo? Assim, alguma coisa entre o Neanderthalensis e o Sapiens?

As imagens… Bem, mesmo que não seja o tipo de fotografia que mais me interessa, as imagens são exuberantes. Alguns certamente dirão que são muito publicitárias: a foto dos tais “mentawai” até parece ter sido feita com um fundo infinito. Mas, pra mim, esse é um problema menor. Não me incomoda a manipulação da cena, assim como não me comove o fato de que ele ainda produz negativos, contatos e ampliações, mesmo depois de adotar uma câmera digital. As imagens continuam lindas, humanistas, com cinzas profundos, como sempre foram. Sustentar todas essas características, assim por tanto tempo, é o que me surpreende sempre que o vejo, mas é provavelmente o que também me faz esquecer dele.

Mas um fotógrafo que tem uma tese e que passa anos desenvolvendo-a através de imagens, já merece nosso respeito. Eu estranho o pensamento que Salgado parece querer construir com esse trabalho: aparentemente, a defesa e a busca de um paraíso perdido. Mas é preciso dar todos os descontos. Se ele encontrou na fotografia uma forma precisa e poderosa de expressão, não poderíamos querer que seu discurso permanecesse íntegro numa entrevista apressada.

Nesse sentido, vale a pena esperar esse trabalho ser apresentado do modo como ele foi planejado. E vale a pena esquecer entrevistas como a de Serafina e posts como este, que pouco ajudam a lembrar de Sebastião Salgado.


Por que ver os clássicos

Capa do Livro Fotografias, de Maureen Bisilliat, editado pelo IMS.

Capa do livro "Fotografias", de Maureen Bisilliat, editado pelo Instituto Moreira Salles.

Visitar a exposição de Maureen Bisilliat no espaço da Galeria de Arte do Sesi, em São Paulo, é adentrar numa rara experiência sensorial, na qual imagens de um Brasil profundo articuladas com objetos de produção artesanal, textos literários e poéticos, vídeos e sonoridades, permitem uma comunhão única com a raiz da cultura brasileira e com a essência da criação fotográfica. Depois de tamanho êxtase, somos tomados por uma espécie de orgulho vaidoso pois, diante desta grandeza fotográfica, acreditamos que realmente é um privilégio conviver com estas imagens e estar diante de uma artista cuja produção sintetiza de forma tão contundente o melhor da fotografia brasileira das últimas décadas do século passado.

Tomado por esta emoção, fiquei pensando que todos deveriam ver esta exposição – aqueles que tiveram a oportunidade de acompanhar a trajetória de Maureen Bisilliat e os jovens fotógrafos que poderão se inspirar numa trajetória marcada pelo profissionalismo, pela ética e pela permanente invenção. As cópias em prata e os cibaprints, que foram produzidas por Silvio Pinhatti, são também uma respeitosa homenagem à fotografia, já que penetramos num mundo de tons e de texturas, de sombras e luzes, de brilhos, opacidades e transparências, e recuperamos uma experiência única: a de olhar uma cópia fotográfica. Um impacto para nossos olhos já acostumados com a imagem digital, mais “flat” e entintadas por pigmentos comandados por softwares e não impressos pela ação da luz num suporte sensível.

Imediatamente lembrei-me do livro Por que ler os clássicos, de Italo Calvino. Logo na introdução, como se isso fosse necessário, o autor se justifica: os clássicos são aquelas obras de formação para qualquer indivíduo; constituem uma riqueza ímpar àqueles que têm acesso; exercem influência particular quando se impõem como inesquecíveis; toda releitura de um clássico é na realidade uma redescoberta; entre muitas outras observações preciosas. Através dessa associação, a exposição com as diferentes séries de Maureen Bisilliat torna-se obrigatória, adquire uma dimensão histórica e imprescindível para a compreensão da fotografia brasileira.

É interessante perceber como os visitantes ficam imbuídos de uma deferência com as imagens. Estas são, em sua maioria, um registro colado num referente conhecido, mas tratado com dignidade diferenciada. Não buscam o exótico nem o folclórico, mas tratam a identidade cultural brasileira como fato significativo do saber e do conhecimento humano. Maureen foi buscar inspiração a partir da perspectiva da literatura e em sua fotografia predomina a consciência e a lucidez de uma opção voluntária e política. Ela acredita que sua paixão pelo país, que escolheu para viver depois de tantas outras passagens, a aproxima de ser Oxumaré. Segundo depoimento para o crítico Leo Gilson Ribeiro, “Oxumaré é aquele misto de arco-íris e serpente, que não é divindade, mas um ponto de ligação entre fragmentos de um mundo plural que espelha em outros fragmentos os seus equivalentes”.

Maureen Bisilliat, Caranguejeiras, 1968.

Maureen Bisilliat, Caranguejeiras, 1968.

Essa conexão entre literatura e fotografia é que tornou a inglesa Maureen Bisilliat, naturalizada brasileira em 1963, uma das principais artistas do país. Seu processo de trabalho é quase sempre detonado a partir das referências que buscou para compreender o povo brasileiro e a ancestralidade de suas manifestações culturais de raiz. Por exemplo, seu clássico ensaio As Caranguejeiras, publicado pela editora Abril, matéria de capa da revista Realidade, nasceu de sua curiosidade por vestígios encontrados em outras linguagens. Depois disso, eles passam por uma cuidadosa elaboração e foram transformados em imagens que trazem uma incrível dimensão poética, até então inédita na fotografia brasileira. Veja o fragmento do vídeo-depoimento que me foi dado em 2009, e entenda o processo criativo, que teve a participação do acaso, mas foi sua consciência crítica e histórica que a permitiu potencializar politicamente o ensaio.

Maureen Bisilliat inscreveu seu nome na fotografia brasileira com um percurso bastante incomum. Trabalhou na editora Abril entre 1964 e 1972, para as revistas Quatro Rodas e Realidade, publicando ensaios que hoje são referências para o fotojornalismo inteligente e diferenciado. Editou livros de fotografia sobre as obras de Euclides da Cunha, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Adelia Prado, João Cabral de Mello Neto, e ensaios sobre o Xingu, Romeiros, O Turista Aprendiz, de Mario de Andrade, Pele Preta, China, Japão, entre outros.

A exposição sintetiza os 50 anos de intensas atividades de Maureen Bisilliat e oferece uma possibilidade ímpar para refletirmos sobre a fotografia, sua importância histórica, documental e artística. Ainda traz uma série de informações sobre o processo de produção dos livros, pois reúne fotolitos, chapas de impressão, provas de máquina, cartas de críticos, escritores e intelectuais de todo o mundo. Isso só reforça e reflete sua importância no trabalho de edição de imagens e sua preocupação em publicar e democratizar, através da fotografia, a cultura e o conhecimento.

Atualmente, seu acervo de fotografias pertence ao Instituto Moreira Salles que não só participou ativamente do projeto da mostra, como se esmerou em produzir um livro que documenta toda a trajetória criativa de Maureen Bisilliat. O exercício de revisão de sua produção e de edição de imagens para a exposição permitiu a Maureen pensar sobre seu trabalho e seu percurso. Ela declarou: “a catalogação do meu acervo fotográfico obrigou-me não só a preservar meu material, mas a organizar e refletir como sou hoje, aquilo que fui ontem. É muito interessante e rico esse exercício”. Essa retrospectiva traz uma imersão da artista no próprio trabalho em busca de algumas respostas para sua experiência profissional e existencial através da arte. O que podemos auferir pelas imagens é sua capacidade de dar visibilidade à exuberante paisagem brasileira e a tornar pública a dignidade nem sempre visível do nosso povo.

Maureen Bisilliat – Fotografias
de 02/03 a 04/07/2010
Galeria de Arte do SESI-SP
Av. Paulista, 1313 – São Paulo


O triste fim de Sophie Calle

Primeira página do UOL, 21/03/2010.

Primeira página do UOL, 21/03/2010.

Ao acessar o portal UOL na manhã de ontem, reconheci numa pequena foto que ilustrava a seção “Comportamento” as figuras da artista Sophie Calle e de seu ex-namorado, o escritor Gregoire Bouillier. Ao lado da foto, um link em destaque: “Você muda de personalidade quando está namorando?”. Trata-se de um teste que, ao final de algumas perguntas, define o perfil da mulher em seu relacionamento. Até onde pude ver, nada sobre Sophie Calle.

Para os que não acompanharam as notícias recentes (se é que isso foi possível), uma pequena apresentação da artista: no ano passado, Sophie Calle chegou ao Brasil a convite do VideoBrasil, já como um dos mais importantes nomes da arte contemporânea mundial, trazendo para São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro a exposição “Cuide de Você” (Prenez soin de vous), destaque da Bienal de Veneza de 2007. Trata-se de uma espécie de performance na qual uma centena de mulheres interpretam o e-mail com que Bouillier, então seu namorado, pôs fim à relação entre eles. A história pode parecer um tanto estranha, mas a exposição foi incrível.

Cuide de Você, no Sesc Pompéia (imagem do blog do VideoBrasil

Cuide de Você, no Sesc Pompéia, em 2009 (imagem do blog do VideoBrasil)

Estranha mesmo foi a participação da artista na Flip (Feira Literária International de Paraty), pouco antes da exposição, dividindo a mesa exatamente com Boullier, que havia escrito um livro (O convidado surpresa) sobre a relação entre eles.

Sophie Calle deixa um mal estar que é o valor mesmo de sua obra: impossível dizer se o que vemos é um relato sobre sua vida pessoal ou uma ficção construída para o trabalho. Na verdade, essas duas situações se sobrepõem na medida em que ela transforma em jogos suas experiências afetivas, assim como vive intensamente os rituais que elabora como projeto artístico.

Quem acompanhou um pouco das minhas últimas pesquisas, sabe que gosto do trabalho dela. Também gostei muito da exposição que veio ao Brasil. Mas essa superexposição tem seu preço: ela se tornou uma celebridade. Dos mais sofisticados cadernos de cultura às mais populares revistas de fofoca, o assunto era Sophie Calle, que chegou a se irritar o assédio da imprensa, apesar de permanecer muito receptiva às questões do público. Foi uma febre interessante: enquanto alguns tomavam partido na briga do casal, outros se manifestaram de modo passional e performático, brincando, eles próprios, de Sophie Calle.

Ao contrário de muitas exposições de arte contemporânea, a de Sophie Calle teve público e foi capaz de reunir nos mesmos espaços figuras muito heterogêneas, de acadêmicos a leitores de revistas femininas. E não importa o que as tenha levado à exposição, chegando lá, viram uma obra importante e tiveram a oportunidade de refletir sobre os limites da arte, com um belo trabalho feito pela equipe de educadores.

Ser lembrada por todos, indiscriminadamente, é uma conquista. O problema é o que sobra quando o assunto sai de pauta e começamos a esquecê-la. A imprensa funciona por impulso, cria debates importantes, mas não é capaz de sustentá-los por muito tempo. E muito rapidamente Calle passa de um fenômeno artístico à ilustração de um teste de personalidade.

Até haveria o que dizer, mas nenhum novo espetáculo, nenhum novo escândalo, apenas fatos: Calle voltou recentemente ao Rio, creio, sem o estrondo daquele primeiro momento na Flip e em São Paulo. Há algumas semanas, venceu o Hasselblad Award 2010, notícia que correu quase que exclusivamente pelos blogs. Deve integrar nos próximos meses a coletiva Haunted: Contemporary Photography/Video/Performance no Guggenheim, ao lado de nomes como Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Jeff Wall, Cindy Sherman e o casal Becher.

Há duas questões muito distintas que podem nos interessar:

Primeiro, sobre a arte: temos lutado muito para ampliar o alcance da arte contemporânea. Mas o artista, ao atingir o grande público, torna-se alvo da voracidade que marca toda experiência de consumo de massa: ele se transforma em objeto de culto com a mesma velocidade com que desaparece de cena. Aqui, um desafio para os educadores: há um trabalho a ser feito para garantir a compreensão das exposições, isoladamente. Há outro trabalho a ser feito para formar efetivamente um público para a arte contemporânea. Este último é muito mais difícil e, para ele, não se pode contar tanto com a imprensa. É preciso formá-la também.

Segundo, sobre os usos das fotografias: podemos nos divertir tentando imaginar quais eram as duas ou três palavras chaves que indexavam a fotografia de Calle e Boullier no banco de imagens, e que os trouxeram até essa situação. Mas a questão é séria. A produtividade que se alcança com os bancos de imagem é incrível, mas precisamos distinguir entre “acúmulo de informações” e “produção de conhecimento”, entre “ilustração” e “memória”. A questão agora é pensar em como dar sentido a todo o material acumulado nas redes privadas ou abertas. Quanto maior a disponibilidade de imagens, mais complexas e difíceis se tornam suas possibilidades de recuperação, de análise e de uso.


Turismo em casa

Neste final de semana, eu e a Katia vimos algumas exposições no centro de São Paulo, e nos perdemos um pouco entre a Praça da Sé e o Anhangabaú. A cidade estava especialmente vazia, porque era domingo, nenhum comércio aberto e um temporal prometia chegar. Às vezes, achamos um pedaço de natureza que parece inexplorado, como se fossemos os primeiros a existir num mundo recém-inaugurado. Uma metrópole deserta é algo ainda mais surpreendente: parece que o mundo acabou e que somos os últimos a permanecer. É isso: se um dia experimentamos o paraíso e abrimos mão dele, uma alternativa ao desejo de resgatá-lo é a fantasia de sobreviver ao fim do mundo.

Centro de São Paulo, 1989.

Centro de São Paulo, 1989.

Meu turismo preferido é urbano, coisa de gosto, difícil explicar. Nos últimos anos, tenho ido com alguma frequência ao centro de São Paulo. Tento ir também quando não preciso ou tento ficar além do necessário. Muda tudo.

Uma coisa é ir para trabalhar, ou pior, ir a uma repartição pública resolver uma pendência… É normal que nosso espírito crítico nos obrigue a duvidar da idéia de que o progresso joga a nosso favor. Mas tem horas em que a modernidade decide nos humilhar, escancarando nosso fracasso: o metrô lotado e quente, multidões que andam em bloco independentemente do movimento das pernas, a fumaça dos carros, funcionários que vendem nas calçadas crédito aos desesperados. E, como se não fosse o bastante, às vezes, a guia de um imposto atrasado que você precisa retirar na prefeitura. Nessa hora, a cidade encara você com dentes afiados e olhos vermelhos, sem nenhuma piedade. Por isso, nós a evitamos, ou andamos nela sem encará-la.

O segredo é revidar: permanecer no centro ou retornar a ele sem nada pra fazer. Aí a cidade olha pra você com olhos acolhedores. Na cidade, só a burocracia pode dar o que você precisa, mas você simplesmente não precisa de nada. A metrópole é resultado da produtividade moderna e voraz. Mas, nesse momento, essa barbárie deixa o corpo da metrópole e se dirige a cotragosto para o lugar para onde vão os demônios exorcizados. O que fica é uma paisagem incrível e um movimento que, ainda em plena desordem, é capaz de desenhar alguma beleza.  Baudelaire já sabia de tudo isso, mas só lembramos dele quando pensamos em Paris.

É possível ir à Europa e não ver nada, porque se cumpre o roteiro como quem vai de guichê em guichê atrás de uma guia de imposto, porque o olhar só busca as imagens que já foram vistas, porque se espera das férias a mesma produtividade dos dias de trabalho.

Ao contrário, é possível ficar onde sempre se esteve e ter surpresa. O prazer de fazer turismo não tem tanto a ver com a distância do lugar que se escolhe. Não tem a ver com certo tipo de viagem, mas com certo tipo de olhar, que não espera nada além de imagens.

É uma pena que não termos sempre uma câmera  quando vamos ao centro, porque ela sabe construir esse olhar como nenhuma outra coisa. Com a câmera, a cidade se desfuncionaliza, não buscamos nada por meio dela, apenas ela própria, e qualquer coisa pode virar experiência. Nesse domingo, eu não estava com a câmera, mas a surpresa foi encontrar a cidade ali parada, como numa fotografia.

Eu ia falar das exposições, falarei depois. A escrita, assim como a cidade, é um lugar bom para se perder.


Irina Ionesco: imagens de um tempo sem data

Estereótipos

Até ver sua exposição na semana passada (Espelho de Sombra e Luz, na Caixa Cultural da Sé, SP), eu mal tinha idéia de quem era Irina Ionesco. Em geral, isso não é problema, temos um mapa de experiências históricas que nos permite situar bem um artista, mesmo quando é desconhecido. Tentamos captar na obra o espírito de seu tempo, coisas que transpiram no estilo, na composição, no tratamento do tema, no uso de certas técnicas e materiais. Às vezes isso funciona, às vezes não.

Irina Ionesco, Dracula, 2006

Irina Ionesco, Dracula, 2006

Quem chega como eu desavisado na exposição de Ionesco, vê sua erudição fazer algumas piruetas: sentimos ali um ar histórico, os excessos e as alegorias do barroco, o tom metafísico do simbolismo, a sofisticação ornamental do art nouveau, o glamour e o erotismo de uma primeira fotografia de moda, construções oníricas do surrealismo, algo do cinema expressionaista. E, ao lado dessas referências imprecisas, datas mais recentes do que podemos imaginar (1968 a 2006).

Sendo assim, podemos apelar para uma categoria mais acolhedora: a “fotografia contemporânea”. Igualmente fiel ao espírito de um tempo que refuta todo tipo de coerência, ela nos permite lidar relativamente bem com uma produção que tende a ignorar fronteiras históricas, investe na descontextualização e combina referências de diferentes épocas.

Não é tão simples. O trabalho é escorregadio, deslocado, mas uma imagem após a outra nos mostra uma coesão forte, amarrada por uma tradição que parece não estar denominada nos livros, algo que não se sustentaria se a questão fosse apenas o desejo de atropelar categorias.

É tão desconfortável quanto prazeroso ver nossa erudição se tornar inútil. Quando abandonamos o  mapa de estereótipos que trazemos de casa é que começamos a ver de verdade a obra que temos diante do olhar. Em princípio, tudo o que precisamos está ali na exposição, mesmo que de uma forma problemática: um texto mais sucinto do que a exposição merecia, um vídeo em francês com legendas em inglês (Irina Ionesco, Nocturnes Porte Dorée, de Delphine Camolli) e, acima de tudo, nosso olhar que é rapidamente encantado pelas imagens, mesmo que o corpo esteja impaciente com o calor da sala.

Arquétipos

Irina Ionesco, s/d.

Irina Ionesco, s/d.

Irina Ionescu nasceu em Paris mas passou sua infância na Romênia, terra natal de sua família. Filha de uma trapezista e de um músico, trabalhou no circo como bailarina e contorcionista. Após um acidente e um longo período de convalescência num hospital, passou a se dedicar à pintura e à fotografia. Apesar da tragédia, foi uma feliz mudança de rota, algo que Ionesco explica como um “acaso objetivo”, conceito que toma emprestado dos surrealistas: uma espécie de encontro entre um fato da natureza e um desejo subjetivo.

É sempre perigoso querer explicar a obra pela biografia do artista. Esse cenário oferece não uma explicação, mas uma metáfora que ajuda a entender o tempo deslocado em que seu trabalho encontra.

A Romênia de onde imigra sua família no início do século XX é, em si, um lugar de encontro de tradições do ocidente e do oriente, também de uma Europa moderna e outra apegada à tradição de seus mitos.

O circo é uma dessas experiências míticas, lugar de formas próprias que remetem a um passado sem data. Não se trata de um estilo, mas de um arquétipo, e arquétipos não são simplesmente antigos, são originários. Representam uma experiência reconhecida por todos, mesmo que não tenha sido transmitida por ninguém.

É uma coesão semelhante a essa que permanece evidente nas fotografias de Ionesco, mesmo quando as categorias históricas falham. O ar antigo que não conseguimos situar nas imagens é, na verdade, igualmente sem data, é arquetípico.

Irina Ionesco, Eva, s/d.

Irina Ionesco, Eva, s/d.

As imagens de uma de suas primeiras séries, Eloge de ma fille, estão na exposição e mostram sem ingenuidades o corpo de Eva, sua filha, quando ainda era uma criança. Não se trata do nu como estado anterior ao pecado, metáfora da pureza, mas de um corpo que foi despido (nude e naked, categorias definidas pelo historiador Kenneth Clark). Em nosso tempo marcado pelo pragmatismo, esse pode ser um trabalho que expõe de modo perigoso o corpo infantil. Para o tempo sem data em que o trabalho se situa, é o erotismo de um corpo idealizado, portanto, igualmente sem idade.

Em princípio, o vídeo que acompanha a exposição soa um pouco triste. Ionesco parece querer conter a decadência de sua beleza por meio da maquiagem carregada e do apego aos objetos do passado. É o mesmo ar decadente que fica para quem vê o circo pelo lado de fora, montado provisoriamente num terreno esquecido entre um prédio e outro da cidade.

Mas é preciso entrar no circo. Os excessos, seja o da maquiagem, seja o do cenário, estão ali também como elementos de cena, numa teatralidade que se realiza por vocação. Trata-se, ainda, de um palco. A beleza que representa, assim como o erotismo de sua filha, está situada fora da idade do corpo. Basta retornar às fotografias para entender que é possível mostrar no arcaico o lugar para onde nosso desejo nos convida a avançar. Ionesco se equilibra sobre palavras tão bem quanto sobre os ornamentos e alegorias das imagens. É um prazer escutar seu depoimento. Mas é preciso ver o vídeo do mesmo modo que vemos as fotos, como criação, como encenação do mito com o qual sua vida se confunde.

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Lamento demorar a comentar. A exposição Espelhos de Sombra e Luz fica em cartaz na Caixa Cultural da Praça da Sé, em São Paulo, só até o dia 11 de abril. Não encontrei informações precisas, mas o realease  promete que a exposição irá também para Bahia e Brasília. A exposição esteve também no Sesc Copacabana, em 2007.

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Estou aqui no processo de descobrir essa artista, procurando imagens e textos. Encontrei uma bela entrevista de Ionesco dada ao psicanalista carioca Antonio Quinet, em 2003. Infelizmente, só está disponível em francês. Se alguém conhecer outros artigos disponíveis, adoraria ter as referências.


Teatro e fotografia

Cena de Policarpo Quaresma, Foto de divulgação de Emidio Luisi.

Cena de Policarpo Quaresma. Foto de divulgação de Emidio Luisi.

Durante o espetáculo Policarpo Quaresma, criação e direção de Antunes Filho a partir do texto de Lima Barreto, pude perceber dentre as muitas cenas do espetáculo, imagens que são pura fotografia. Sabemos que o diretor é um mestre em congelar cenas para atrair nossa atenção (influências claras de Bob Wilson) e, diante dessas cenas estáticas, vi que elas estavam prontas para serem fotografadas. Eu sentava na penúltima fileira do teatro Sesc Anchieta e, próximo dali havia um fotógrafo que confirmava minha intuição: a cada grande momento do texto e da encenação, o disparador era acionado com a finalidade de eternizar aquele instante.

Lembrei-me de algumas conversas que tive com Thomaz Farkas sobre a fotografia de teatro. Sua posição sobre este gênero de fotografia sempre foi muito clara: o fotógrafo de teatro registra cenas pré-visualizadas pelo diretor do espetáculo. Ou seja, diante de uma imagem teatral, incluindo aqui ópera e dança, estamos sob o domínio da luz e da ação dramática já planejada por alguém, e não propriamente buscando o acaso ou alguma eventual singularidade de uma performance. Aparentemente, isso coloca em cheque a possibilidade de haver algum trabalho criativo na fotografia teatral.

É uma dúvida que me assolou naquele momento. Quando estamos diante um conjunto de imagens de algum espetáculo, vemos um documento fotográfico de uma criação exterior à fotografia? Será que fotografia neste caso confirma a tese de Baudelaire em seu clássico texto O Salão de 1859: “… Que enriqueça rapidamente o álbum do viajante e restitua a seus olhos a precisão que faltaria à sua memória, que enfeite a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, até fortaleça com algumas informações as hipóteses do astrônomo, que seja, enfim a secretária e o bloco de notas de quem quer que necessite de uma absoluta exatidão em sua profissão, até aí nenhuma objeção. Que salve do esquecimento as ruínas pendentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma vai desaparecer e que exigem um lugar nos arquivos de nossa memória, se lhe agradecerá e aplaudirá. Mas se for permitido invadir o campo do impalpável e do imaginário, aquilo que vale somente porque o homem aí acrescenta algo da própria alma, então, pobre de nós!”

Cacilda Becker, em cena de A Dama das Camélias,  1951. Foto de Fredi Kleemann.

Cacilda Becker, em cena de A Dama das Camélias, 1951. Foto de Fredi Kleemann.

Na fotografia brasileira, temos experiências marcantes de fotografia de palco. O trabalho mais emblemático nesta área é sem sombra de dúvida aquele desenvolvido por Fredi Kleemann (Berlim, 1924 – São Paulo, 1974), um ator coadjuvante do Teatro Brasileiro de Comédia, desde 1949, que se notabilizou muito mais pelos seus registros fotográficos de inúmeros espetáculos do TBC e de outras companhias do que pela sua atuação teatral no grupo. Curiosamente, Fredi trabalhava como atendente nos Laboratórios Fotóptica localizado na Rua Major Diogo, a mesma rua da sede do TBC. Também era membro atuante no Foto Cine Clube Bandeirante, fotógrafo de still da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e produziu uma fotografia tecnicamente sofisticada, mas para alguns, limitada do ponto de vista da criação.

Fredi, judeu alemão que chegou ao Brasil em 1933, segundo relatos que ouvi da atriz Nydia Licia, também integrante do TBC, tinha a oportunidade de fotografar os atores no momento em que o espetáculo estava pronto para ocupar a cena, com os figurinos, a luz e toda a pontuação dramática ensaiada e finalizada. Ele fotografava os atores nestes momentos de plenitude, mas seus registros são muito mais o documento do resultado visual desejado pelo diretor do que uma possível leitura criativa do espetáculo. Para o crítico Décio de Almeida Prado, o trabalho de Fredi Kleemann tem “o impressionante grau de adequação que se observa entre as personagens de palco que retratou e o seu próprio ponto de vista fotográfico. Pertenciam todos, os que estavam além e o que estava aquém da objetiva, ao mesmo projeto estético, habitavam todos o mesmo projeto artístico”.

Os mais de 12.000 negativos produzidos por Fredi Kleemann no período de 1949 a 1973 foram adquiridos pela Secretaria de Cultura do Município, através do escritor e crítico de teatro Sábado Magaldi por ocasião da formação do IDART, em 1976, e por sugestão da atriz Cleide Yáconis. Diga-se de passagem, uma atitude louvável já que estes negativos hoje possibilitam não só uma compreensão da estética teatral do TBC, como do grupo de teatro Cacilda Becker e da Vera Cruz.

E eis o paradoxo: uma fotografia tecnicamente perfeita, certamente difícil de fazer, mas questionada em seu valor criativo, validada apenas como registro necessário para a compreensão daquele momento histórico dos movimentos mais significativos do teatro e do cinema.

Este espaço de reflexão nos permite levantar esses questionamentos e abrir a discussão. A fotografia nasce sob o signo da representação fidedigna do mundo visível e, à medida que o domínio técnico invade o fazer, inicia sua trajetória como linguagem. Será que quando pensamos neste tipo de experiência e na sua importância enquanto documentação, suas possibilidades expressivas se tornam uma questão secundária? Ou será que cabe pensar numa espécie de co-autoria, numa parceria entre um diretor que constrói  obra e um fotógrafo que escolhe um instante-síntese?

Ao término da apresentação do espetáculo Policarpo Quaresma o que detive na memória imediata foram as imagens criadas por Antunes Filho (sabidamente um diretor de imagens inesquecíveis do teatro brasileiro nas últimas décadas), a partir de um texto literário que foi capaz de incendiar a criatividade visual do diretor. Não vi as fotografias daquele fotógrafo que estava nas proximidades, mas seguramente, além daquelas imagens que me entusiasmaram, outras provavelmente foram escolhidas e registradas pelo fotógrafo em pleno êxtase – uma espécie de suspensão do tempo no espaço, nos interstícios do processo criativo.

Vale ainda pensar no trabalho de Maarten Vanden Abeele, fotógrafo nascido em Bruxelas, em 1970, que registrou exaustivamente os espetáculos de Pina Bausch, além de realizar documentações sobre os grandes teatros europeus e japoneses. No Brasil, mais recentemente, temos Emidio Luisi (autor da imagem acima da peça Policarpo Quaresma), Vania Toledo, Lenise Pinheiro, Gal Oppido, entre outros que se dedicam de corpo e alma a fotografar o teatro e a dança no Brasil. Mas isso já é assunto para outra reflexão.


"Pixo" na Bienal

(… entre um post e outro, um pensamento em voz alta, mesmo deslocado dos nossos temas…)

Mônica Bergamo noticiou na Folha Ilustrada de segunda-feira que o grupo de “pixadores” que fez um protesto na 28a Bienal de São Paulo foi convidado a integrar a 29a edição do evento. Naquela ocasião, o curador Ivo Mesquita criticou duramente a ação.

Deixo aqui algumas dúvidas.

O gesto de Moacir dos Anjos, atual curador, pode ser lido de modo ambíguo: pode representar a abertura do evento a manifestações não institucionalizadas, ou pode ser uma demonstração do poder das instituições sobre as manifestações que lhes são críticas.

Só pelas discussões que suscita, a iniciativa já é válida, como uma espécie de performance que visa refletir sobre os limites da arte contemporânea. Mas, caso o grupo aceite, como será a intervenção? Ou melhor, ainda será uma intervenção? Eles poderão decidir qual parede vão utilizar ou em quais obras vão interferir? É improvável, mas quem sabe…?

Em entrevista à Folha, o curador disse:

“O que realmente queremos incluir na presente edição da Bienal é a pixação, ou simplesmente o pixo, com ‘x’ mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em São Paulo das pichações político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do quão ‘limpa’ ela queira apresentar-se.”

Existe aqui algo curioso. Para organizar um processo de abertura que começou lá pelos anos 60, construiu-se a distinção entre o grafite e a pichação, em palavras da época, entre a arte de rua e o vandalismo. Neste momento, abrir a Bienal para as ruas exige, novamente, dividir suas experiências: existe então a boa e a má pichação. Soa um pouco maniqueísta.

Por enquanto, o curador pode estar dando um passo bastante razoável: se essa intervenção chegou até ali, ali é um bom lugar para discuti-la. Mas ainda é preciso entender o que significaria a presença dos pichadores na Bienal, para ambos os lados.

Para que o debate não se dilua precocemente, tendo a pensar que a coisa mais interessante neste momento seria a Bienal fazer o convite e o grupo não aceitá-lo. Os pichadores continuariam sendo um fantasma que assombra a curadoria, a curadoria seguiria tentando lidar com as forças desse além-da-arte. E agente seguiria discutindo.


Multimídia tensa e multimídia relaxada

Na semana passada tive uma boa conversa com o pessoal do Garapa, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes. Eles contaram que, numa apresentação de seus trabalhos, alguém esbravejou afirmando que o que eles faziam não era multimídia, era apenas vídeo.

http://vimeo.com/1784464

A arte e a comunicação têm vivido nas últimas décadas um momento muito fértil, que convida a atravessar as fronteiras que separam uma linguagem da outra, uma técnica da outra. Daí vem a vocação para as produções que chamamos de multimídia. Reconheço nesse processo dois momentos distintos, um que tem a ver com o desejo de transgressão e outro, com a liberdade de transgressão. É sutil, mas é diferente.

De um lado, há uma geração de artistas que deu a cara para bater enfrentando as tradições das várias artes, que trabalhou duro nas experimentações com a tecnologia, que testou as possibilidades de aproximação entre as linguagens. Essa geração fez disso uma bandeira, levou muita bordoada, mas soube construir as justificativas para produções que tinham um pouco de pintura, vídeo, fotografia, literatura, música, game, que explorava novos suportes, que convidava o público a interagir com suas obras. Temos que agradecer a essa geração por suas conquistas e pela herança deixada aos artistas mais jovens.

Do outro lado, há exatamente essa turma mais jovem, que foi contaminada pelo ar com esse espírito transgressor. Essa geração ainda é capaz de enxergar tanto o que fazia a tradição quanto os resultados das novas rupturas, mas a diferença é que podem ter uma postura mais leve diante de ambas. No exercício das liberdades que receberam de herança, sua produção simplesmente transborda em direções várias, por exemplo, da fotografia para o vídeo, da galeria para a internet. É uma geração privilegiada, porque teve a oportunidade de assistir à luta que foi travada, porque conhece a crise que se instaurou, e sabe discutir esse processo quando é convocada. Mas já não é preciso levantar uma bandeira, identificar o inimigo. Ao contrário, pode fazer o que quer, com uma radicalidade que nasce mais como despojamento do que como esforço. E podem ainda admirar trabalhos feitos à velha maneira, película, fine art, moldura etc.

Vale ainda considerar uma geração que estará produzindo em breve, e que não saberá o que é o mundo sem câmera digital, sem internet, sem celular, sem celular com câmera digital e internet. Contei ao pessoal do Garapa sobre o filho de um amigo que explicou um coleguinha que “carta é igual a um e-mail, só que se escreve a mão”. O Paulo Fehlauer respondeu com outra anedota: uma criança vê uma máquina de escrever e diz “pai, olha, um computador que já vem com impressora!”. Essa garotada vai fazer muita coisa boa, mas vai ter que estudar nos livros essa passagem que vivemos há pouco, se tiver alguma paciência para olhar para a história.

Retomando, há portanto uma multimídia tensa, que se configurou em meio a uma revolução, e uma multimídia relaxada, que se realiza no exercício da liberdade conquistada. A primeira tinha coisas a provar. Precisava mapear e demonstrar as possibilidades de conexão entre as linguagens. Ser multimídia era ser poderoso, ágil, amplo, eloquente, era ser de tudo um pouco ao mesmo tempo. Com isso, nossa concepção de multimídia nasceu um tanto barroca, marcada pelo excesso. Alguns dos pioneiros já haviam feito essa ponderação: Julio Plaza lembrava frequentemente de um antigo princípio da cibernética que diz: quanto maior a quantidade de informação, menor a probabilidade de produzir uma mensagem. Carlos Fadon Vicente também me disse uma vez: “botão demais é igual a interatividade nenhuma”.

A outra multimídia, essa mais relaxada, atravessa as fronteiras sem ter de pedir licença. Como disse o pessoal do Garapa, o vídeo estava lá na Mark II (vejam um post no Olhavê sobre a Mark II), a internet estava aí pra todo mundo…  Não foi preciso enfiar o pé na porta, foi só aceitar o convite. No que diz respeito às tecnologias, essa geração só se sente transgressora quando confrontada à história, situação que também enfrenta com desenvoltura.

Uma analogia: lembram do esperanto? Um dia alguém percebeu que o mundo estava cheio de conexões e decidiu aprofundá-las criando uma língua universal, que contivesse um pouco de todas as línguas. Foi um belo pensamento, mas passamos dessa fase. Hoje, é mais legal chegar num país sem grandes medos, sem uma causa, e descobrir que dá pra ter uma boa conversa em portuñol, ou num francês cheio de invenções, ou num inglês bem gesticulado. Não é preciso mixar todas as palavras e gramáticas, só é preciso flexibilizar o idioma quando necessário.

Conflitos ainda existem, não tanto no uso das tecnologias, mas nas dinâmicas dos mercados. Como o jornalismo pode absorver um trabalho multimídia? Como as galerias podem absorver obras que estão na internet em Creative Commons? A vida não ficou necessariamente fácil, não faltam bandeiras pra levantar, nem bordoadas pra levar.

Mas não tenho dúvida de que há coisas simples que merecem hoje a denominação de multimídia. Na conversa com o Garapa, lembramos que há outros fotógrafos fazendo vídeo, como o pessoal da Cia de Foto. Ou, ainda, Gustavo Pellizzon, com uma experiência radical em sua simplicidade, que chamou de Fotografias que respiram. Se a multimídia implica atravessar uma fronteira, trata-se aqui de tentar se equilibrar em cima dela.

http://vimeo.com/11936154

O que faz o Garapa, a Cia ou Pellizzon quando recorrem ao vídeo ou à internet é multimídia. Só não é uma multimídia ansiosa em testar todas as conexões, nem barroca, nem panfletária. É multimídia, e o que é importante: é também fotografia, porque essa é a formação deles.  Porque a fotografia ainda é o “lugar conceitual” a partir de onde pensam sua produção. Aliás, não seria multimídia, seria apenas vídeo se esse fosse ao mesmo tempo o lugar de partida e de chegada. Mas, não, eles estão em pleno atravessamento.


Dois filmes sobre fotógrafos

Nesta semana, assisti a dois filmes sobre fotógrafos. Gostei muito de um deles, do outro, nem tanto. Um pouco sobre cada um:

A fronteira do alvorecer

http://www.youtube.com/watch?v=A6aN5o2PBUk
Trailer de Portugal, onde o filme recebeu o título de “A fronteira do amanhecer”.

A fronteira do amanhecer (2008) é dirigido por Philippe Garrel, cineasta com olhar formado pela Nouvelle Vague, que alcançou um bom reconhecimento a partir dos anos 80, obtendo prêmios em Cannes e Veneza. O filme está centrado na vida amorosa do fotógrafo François (interpretado por Louis Garrel, filho do diretor) que vive uma paixão súbita e intensa pela linda Carole (Laura Smet), uma estrela de cinema que ele fotografa para uma publicação. A profissão do personagem é pretexto para Garrel – ele próprio, um excelente fotógrafo – mostrar no filme luzes e composições belíssimas, a começar pelas cenas do ensaio, que já são como uma sucessão de fotografias. É um início promissor, mas que não se sustenta. Como cinema, estamos diante de uma história pretensiosa e uma estética repleta de maneirismos.

No primeiro post deste blog (Fotógrafos não são normais), eu brincava com o fato de que os personagens fotógrafos do cinema são sempre introspectivos, complexos, profundos, enigmáticos e perturbados. Garrel desmonta esse estereótipo: desta vez, o personagem não é coisa alguma, além de belo. Mesmo que o roteiro peça uma personalidade forte e anti-burguesa, em si, o que o personagem mostra é alguém psiquicamente plano, que não tem história, que não pensa nada, não acredita em nada, e que reage às suas tormentas sempre com a mesma expressão de vazio.

Por sua vez, o filme abusa das citações ao velho cinema francês: preto e branco, grandes silêncios, olhares perdidos no infinito, diálogos truncados e poéticos, fragmentos de história quase aleatórios, locações improvisadas, um violino estridente para traduzir emoções intensas. Certamente, o diretor não faz isso ingenuamente, ao contrário, brinca explicitamente com o tempo: efeitos cinematográficos datados, personagens que escrevem e mandam cartas, um sanatório que trata seus pacientes com eletrochoque, uma cidade que lembra a Paris de Doisneau, muitos objetos didaticamente vintage (as câmeras, por exemplo), tudo isso ao lado de algumas pistas que remetem à atualidade (incluindo o ano “2007”, que aparece de modo claro numa cena). Nada está ali ingenuamente, mas é difícil fazer tantas citações sem cair na paródia. Em termos de nostalgia, Garrel está para o cinema intelectualizado, como Tarantino está para o cinema popular. Mas Garrel tem a desvantagem de se levar muito a sério.

Vi o filme no Espaço Unibanco numa seção especial para professores, deve entrar em cartaz em breve. Vale a pena assistir se as expectativas estiverem ajustadas. Pela fotografia, será uma bela experiência se for tomado como uma espécie de Roman Photo.

Jan Saudek: preso por suas paixões, nenhuma chance de resgate

O documentário Jan Saudek (2007) é dirigido por Adolf Zika, um fotografo comercial que se aventurou no cinema. Para quem não se lembra, Saudek é um artista Tcheco, pioneiro e um dos grandes nomes daquilo que temos chamado de fotografia contemporânea, com um trabalho inconfundível: retratos carregados de teatralidade, com temas que oscilam entre o erótico e o abjeto, às vezes com um tratamento artesanal que remete às fotografias pintadas do século XIX (algumas de suas imagens estavam na exposição “A invenção de um mundo”, organizada pelo Eder Chiodetto no Itaú Cultural, em 2009).

Escrevendo esse post, eu me perguntei: qual é a diferença entre as citações de Garrel ao cinema francês dos anos 60 e as de Saudek, à fotografia do século XIX? O primeiro me parece apenas saudosista, o segundo desenvolve uma estratégia muito firme a partir da liberdade que a arte contemporânea lhe dá de tornar presentes tempos distintos.

Esteticamente, o documentário não traz grandes inovações, apenas lida de modo competente com a história e a personalidade marcante de Saudek. Num movimento contrário ao do filme de Garrel, Adolf Zika começa tateante e, devagar, vai alcançando uma boa profundidade. No princípio, o diretor simula uma espontaneidade pouco convincente (por exemplo, quando finge chegar de surpresa à casa do fotógrafo, enquanto a gente sabe que as câmeras já estão lá dentro). Ele também acredita rápido demais no personagem que Saudek constrói diante da câmera: sobrevivente de um campo de concentração, artista excêntrico, sedutor incorrigível que perdeu as contas de quantas mulheres teve.

Ao longo das filmagens, que inclui um mês de desaparição de Saudek, eles começam a construir uma intimidade mais sincera. O resultado disso é que o fotógrafo passa a ser desconstruído, enquanto o diretor passa a explicitar melhor as estratégias de seu documentário. Em algum momento, começamos a ver um Saudek verdadeiramente complexo, sobrevivente não de uma guerra, mas de toda uma longa história de fracassos: a desastrosa política soviética na Tchecoslováquia, um mercado que lhe rendeu mais fama que dinheiro, e uma errância afetiva que o conduziu à solidão. Parece não ter nenhum contato com seu irmão gêmeo Kaja Saudek, de quem era inseparável até os anos de juventude. Não teve coragem de visitar sua filha na prisão, mesmo que a defina como a mulher que gostaria que sobrevivesse, se só restasse uma no mundo. Sua atual namorada – com quem teve um bebê – parece participar menos de sua vida do que a memória de suas relações antigas. Nesse sentido, é muito perturbadora a presença no documentário da fotógrafa Sara Saudková, sua ex-namorada, atual empresária e suposta responsável por suas dificuldades financeiras, mãe de seus netos (ela começou um relacionamento com Samuel, filho de Saudek, enquanto ainda viviam juntos) e, um fantasma afetivo que permanece mais próximo do que parece. Assim vamos desarmando suas defesas e enxergando suas fragilidades, no mesmo ritmo em que compreendemos a força de seu trabalho.

Jan Saudek, fotos feitas no porão em que viveu entre 1970 e 77.

Jan Saudek, fotos feitas no porão em que viveu entre 1970 e 77. Algumas dessas imagens aparecem como obras nos anos 80.

O documentário já valeria pelas fotos e pela contextualização de seu trabalho. Mesmo que soe um pouco encenado, é emocionante rever algumas locações, sobretudo o pequeno porão em que permaneceu praticamente trancado, durante o período mais duro de dominação soviética. Foi ali, num espaço minúsculo e diante de uma janela sem paisagem, que ele “inventou um mundo” e produziu algumas das imagens fantásticas que conhecemos hoje. É aí que entendemos que seu trabalho é também político.

Saudek tem no filme mais de 70 anos, mas é ainda um homem em boa forma física e criativa. É o que parece querer demonstrar na performance de um auto-retrato que produz junto a uma jovem modelo. Mas, por trás de seu corpo malhado e de seu reconhecimento, chegamos a uma figura bastante humanizada, sujeita a decepções, fracassos e uma postura autocrítica às vezes dura quanto ao trabalho que hoje realiza.

Ao final, Saudek volta a atuar para a câmera, com situações e falas que parecem ter sido negoiadas. Mas, desta vez, com um nível de entrega surpreendente. Parece ser essa a vocação de Saudek: tocar mais a profundamente a realidade quando assume a ficção.

Vi o filme numa cópia em DVD que passou pela minha mão. Não há previsão de estréia no Brasil, mas é possível garimpá-lo por aí.


Um ano sem Otto Stupakoff

Dia 22 de abril fez um ano que Otto Stupakoff (1935 – 2009) nos deixou. Quem o conheceu sabe que era um homem culto, que dominava vários idiomas, um gentleman que articulava como ninguém esse seu saber com inteligência e perspicácia. Fiquei pensando como poderia prestar uma homenagem sem ser piegas e sem deixar de registrar sua ausência sentida. Com certeza, a mídia não faria menção alguma a ele, como não fez, e muito menos se lembraria daquilo que já passou.

Diante disso resolvi compartilhar e aqui registrar uma das nossas muitas conversas sobre arte, vida e influências. Ele sempre me disse que em seu trabalho, a principal referência foi a pintura de Balthasar Klossowski de Rola, ou melhor, Balthus (Paris, 1908 – Rossinière, 2001). Em diversas ocasiões tentei fazer essas aproximações e confesso, em algumas delas constatei a influência e em outras não. Vi Balthus no Moma e no Metropolitan, em Nova York, e percebi semelhanças e diferenças, mas jamais refleti sobre isso. Só agora fica mais ou menos claro. Balthus criou várias situações visuais e algumas delas se tornaram as principais referências e estão presentes parcialmente nas fotografias de Stupakoff.

O crítico Robert Hughes, por ocasião de uma exposição retrospectiva de Balthus no Beaubourg, em Paris, e depois no Metropolitan, em 1984, registrou que ele criava “a superfície calma e a inocência envenenada”, querendo insinuar que sua pintura era conservadora, mas a temática instigante é que talvez fosse detonadora da potência de sua obra. De qualquer forma é interessante perceber como Stupakoff repetiu alguns gestos mais insinuantes e alguns movimentos que são congelados como espontâneos. Na verdade são estudos precisos e calcados no mestre. Vejam estas imagens. Estabeleçam os possíveis confrontos.

Otto Stupakoff e Balthus (Therese sonhando, 1937)

Otto Stupakoff e Balthus (Therese sonhando, 1937)

Só agora, quando me deparo mais pontualmente com a obra de Balthus, é que percebo com mais clareza o vigor da citação. O mundo de Balthus estava longe dos movimentos artísticos síncronos com os quais conviveu, longe do surrealismo por exemplo, mas muito próximo de Freud e da psicanálise. Aparentemente, um paradoxo. Sim, mas o que seria da arte se não fossem essas descontinuidades que correm paralelas ao mundo que gira e produz um esforço coletivo, bem como muitos pequenos esforços individuais nos quais pulsam uma diferença. Assim é o trabalho de Balthus. Corre paralelo à arte que se produzia e se buscava nos anos 30 e 40.

Outro aspecto presente na fotografia de Otto Stupakoff  e também presente em Balthus é um aparente relaxamento da cena. Na verdade, esse aparente flagrante é de uma incrível teatralidade, cujo controle é absoluto, quase obsessivo. Stupakoff sabia muito bem como dirigir suas modelos e tirar delas o melhor momento para sua fotografia. Elas estão quase sempre numa recorrente posição provocativa, no limite, entre o belo e o vulgar, expressando e despertando a libido do Outro. Na fotografia parece que tudo se harmoniza – o movimento, as pernas e os braços desconexos, o corpo que se contorce na representação. Um controle total naquilo que é aparentemente incontrolável, ou seja, a sensualidade que aflora na cena. Nesse sentido, as fotografias de Stupakoff se aproximam fortemente da pintura de Balthus e eu compreendo melhor o que ele queria me dizer.

Ao mesmo tempo, são personagens solitários, imersos em silêncios, confinados em espaços limitados, em que apenas tem importância essa luminosidade que incide sobre os corpos e os movimentos que estes desenham, estejam sentados em cadeiras com seus braços e pernas desajeitados, sejam relaxados nas poltronas, enclausurados no espaço do quadro fotográfico. Uma sensualidade fugaz que mais se parece com momentos de puro tédio. As imagens provocam nossa imaginação porque somos capazes de empreender a cena seguinte insinuada pelo movimento, criando narrativas imaginárias. São como que fossem retratos da incompletude da própria vida que nos atiçam e nos forçam a prosseguir dando vida ao aparentemente inanimado. O que interessava a Otto Stupakoff era produzir uma fotografia que despertasse uma inquietação sutil e provocativa. E nisso ele se tornou um mestre e a melhor das referências para a fotografia brasileira contemporânea.


A retórica de um fotógrafo, as retóricas da imagem

Meu primeiro álbum de fotografia foi feito por um fotógrafo itinerante de uma tal Cia. Fotográfica Euclydes, de Lins, interior de São Paulo. Não havia câmera em casa, mas a fotografia já tinha seu papel na construção da imagem de uma família e de uma infância feliz.

Os tempos eram outros, uma periferia de São Paulo quase interioriorana, a casa simples da minha avó, ingredientes de uma inocência que não existe mais. Tocavam campainha e simplesmente abria-se a porta. Podia ser pesquisador, vendedor, evangélico, e logo a pessoa estava no sofá de casa.

primeiro_album_01Certo dia, era um fotógrafo que batia à porta. Perguntava se havia na casa alguém que pudesse servir de modelo para uma exposição num tal Salão Fotográfico da Criança. Minha avó, que cuidava de mim e de minha irmã enquanto minha mãe trabalhava, disse que dispunha ali dos dois exemplares mais lindos da espécie.  Eu tinha uns três anos e minha irmã, uns cinco.

Deve ter sido emocionante. Foto era algo que se fazia só nas férias e nos aniversários, quando algum amigo da família levava a câmera, ou no Foto Moderna, melhor estúdio do bairro. Desta vez, minha avó não apenas acolheu o fotógrafo como participou da produção ajudando a escolher os objetos e locações.

primeiro_album_02 Semanas depois, o sujeito retornou e explicou a injustiça: infelizmente, as fotos não foram escolhidas para o Salão. “Mas as fotos ficaram tão lindas…”.  Ele disse que as imagens iriam pro lixo, morreu de pena. Pelo preço de custo, só pra cobrir o filme e a revelação, as fotos seriam nossas. O álbum era de presente.

Dessa vez, minha mãe estava em casa. E o que minha avó tem de inocência, minha mãe tem de desconfiança. Enquanto uma se derretia com as imagens, a outra partia pra cima do fotógrafo. Minha mãe não botou fé na história do Salão, agarrou o álbum e avisou que, dali, essas imagens não sairiam. Enxotou o fotógrafo sem pagar um tostão.

Imaginando minha mãe enfurecida, tenho pena do nosso colega de profissão. Vida dura essa de vender álbuns de porta em porta. E, mesmo a lorota do Salão… Já não se fazem golpes como antigamente.

primeiro_album_03Esse foi nosso primeiro álbum de fotografia que, no final das contas, minha mãe adorou. Mas até hoje ela não perdoa minha avó, que caprichou na produção, mas me deixou aparecer com uma bota ortopédica tão esfolada e com a perna toda riscada de caneta.

Vinte anos depois, eu virei fotógrafo. Fazia outro tipo de trabalho, mas a vida não era lá tão mais fácil. Quantas vezes também eu precisei abusar da retórica pra conseguir me aproximar das coisas, fazer minhas fotos e vender as imagens. Depois, virei teórico, tentando entender como a fotografia participa intensamente das dinâmicas que definem nossos papéis e relações sociais.


O retrato de Zidane

Em época de copa do mundo, vale lembrar de um filme experimental sobre um jogador que se aposentou na última edição do evento: Zidane, um retrato do século XXI (Zidane, un portrait du 21e siècle, 2005).

Dirigido por dois artistas com boa presença na agenda européia de arte contemporânea, o escocês Douglas Gordon e o francês Philippe Parreno, o filme foi rodado durante a última partida de Zinedine Zidane pelo Real Madrid (em 2005, no estádio Santiago Bernabéu), com todas as câmeras focadas no jogador, independentemente do que acontece em campo. Não é, portanto, um trabalho sobre futebol, mas sobre um ídolo. O áudio alterna entre o som direto captado do campo, comentários do narrador da TV e a música da banda escocesa Mogwai. Em alguns momentos, legendas trazem frases do jogador:

“Quando criança, um comentário se passava em minha cabeça enquanto eu jogava. Não era propriamente a minha voz. Era a voz de Pierre Cangioni, um âncora da televisão dos anos 1970. Toda vez que ouvia sua voz, eu corria para a TV, o mais perto que eu podia, pelo tempo que eu conseguia. Não eram suas palavras que eram tão importantes, mas o tom, o sotaque, a atmosfera, era tudo…”

Apesar de sua estratégia direta, o filme não é simplista, nem na técnica de captação (17 câmeras super 35 mm sincronizadas e um som direto de incrível qualidade), nem no diálogo que reivindica com a tradição das artes plásticas. “Retrato do século XXI” não diz respeito apenas à datação do trabalho, mas à tentativa de verificar para onde se deslocam nossos objetos de culto, condição que permitiria, ainda hoje, a realização dos potenciais históricos do retrato.

Pelo mundo, essa obra fez sucesso entre os aficionados por cinema experimental e vídeo-arte. Mas é o fascínio do público por Zidane e pelo Real Madrid, respectivamente na França e Espanha, que permite melhor enxergar essa tradição com a qual os diretores dialogam. O modo como se concentram nas expressões e na gestualidade do jogador reivindica para ele uma aura semelhante àquela dos retratos religiosos ou históricos, que mostravam personagens divinos ou heróicos para um público devoto de seus feitos. Por vezes, lembra as esculturas dos jovens (kouros), que não escondiam o fascínio dos antigos gregos pelas aptidões físicas do corpo masculino. E, ainda, o desejo de enquadrar e deter na memória a expressão de Zidane em plena ação remete a uma maneira de lidar com o tempo que é própria da fotografia.

A idéia não é totalmente inédita. Os diretores assumem a inspiração em uma obra mais antiga: Futebol como nunca antes (Fußball wie noch nie), rodado em 16 mm, em 1970, pelo diretor alemão Hellmuth Costard, também centrado num único jogador, George Best, numa partida pelo time inglês do Manchester United.

Vale também lembrar de Garrincha, alegria de um povo, realizado em 1962 por Joaquim Pedro, filme que os diretores de Zidane conheceram posteriormente.

Zidane, un portrait du 21e siècle foi uma dica dada alguns anos atrás pelo amigo Fernando Oliva. Lançado mais recentemente no Brasil em DVD, passou totalmente despercebido. Pode ser encontrado por R$ 12,90 em lojas na internet.


O que é fotográfico na fotografia?

[Publicado no Sabático, do jornal O Estado de São Paulo, em 17 de abril de 2010]
Capa

Estética da Fotografia, de François Soulages.

Mesmo que tardia, a publicação do livro Estética da Fotografia – Perda e Permanência (1998), de François Soulages (Senac, 384 págs., R$ 75,00, tradução de Iraci D. Poleti e Regina Salgado Campos), é contribuição extraordinária para aqueles que se dedicam à pesquisa e à reflexão da fotografia no Brasil. O principal objetivo do autor, foi, independentemente do gênero – retrato, paisagem, fotografia de reportagem, nu, entre outros –, dar relevância tanto ao processo de construção da imagem fotográfica quanto à sua recepção.

François Soulages é professor da Universidade Paris VIII e do Instituto Nacional de História da Arte, em Paris, e autor de vários livros sobre arte contemporânea e, claro, fotografia. Neste trabalho, ele elabora uma surpreendente análise crítica, cuja intenção final é concretizar uma leitura da fotografia a partir dos vestígios encontrados na imagem. Isto lhe dá a oportunidade de trazer para o seu campo de reflexão conceitos e aproximações centrados não somente na estética, mas principalmente, na semiologia, na filosofia e na psicanálise. A associação entre diferentes fotógrafos, filósofos e psicanalistas lhe permite estabelecer novas relações entre fazer e pensar o espaço, o tempo e o real.

Considerando que a fotografia é o seu foco de preocupação, Soulages defende que fotos são objetos enigmáticos, pois habitam nossa imaginação e nosso imaginário. Se a fotografia for assumida como um “vestígio” para percepção, então cabe ao receptor elaborar as conexões entre o passado e o presente, o antes e o depois, o efêmero e o permanente.

O ensaísta enfatiza a relação entre o objeto fotografado e o real, pois nem sempre a foto promove esse tipo de aproximação. Imbricados, real, objeto e foto suscitam os problemas essenciais para uma estética fotográfica e revelam que a arte da fotografia é mais ampla e menos conhecida do que se pensa.

A discussão em torno da idéia de que a fotografia seja vestígio, traço, nasce das análises de Soulages a respeito do trabalho da crítica de arte Rosalind Krauss, desdobradas nas obras de Roland Barthes, Phillipe Dubois e Jean-Marie Schaeffer. Provocado sobre esse tema em entrevista concedida ao Estado, Soulages comentou: “O trabalho de Rosalind Krauss é interessante; renovou a análise da fotografia. Mas hoje não devemos reduzir toda a teoria da fotografia à teoria do traço e do vestígio.”

A melhor contribuição da abordagem teórica de Soulages talvez seja o conceito de fotograficidade, que designa “a propriedade abstrata que faz a singularidade do fato fotográfico”. Traduzindo: aquilo que indica o que é fotográfico na fotografia. Além disso, a fotograficidade, explica ele, se caracteriza por ser “a surpreendente articulação do irreversível e do inacabável; entendemos o irreversível como o negativo obtido a partir do ato fotográfico, que pressupõe interatividade entre o fotógrafo e o objeto e em seguida as operações químicas necessárias para sua obtenção; e o inacabável como a possibilidade de se conseguir diferentes (e numerosas) cópias a partir deste negativo, também considerando a sequência química de diferentes etapas de sua produção”.

O tempo. É nesse sentido que a foto, para Soulages pode ser definida como a articulação entre a perda e a permanência. O que se perde tem a ver com as circunstâncias que envolvem o ato fotográfico, pois o fotógrafo enquadra e registra uma possibilidade entre muitas, interrompe um fluxo de tempo entre muitos, e assim sucessivamente. O que permanece é o que fica gravado na matriz e na cópia. Apesar de o livro ser do fim dos anos 90 (o que dizer que ao escrever, Soulages se referia à fotografia fotoquímica), ele crê ainda ser possível compreendê-la do mesmo modo contemporaneamente. “Quando penso em fotografia, independentemente de ser química ou digital, estou refletindo sobre o tempo; não o tempo fotográfico, mas o tempo filosófico e psicanalítico. Não é o fotógrafo que é marcado pela perda e pela permanência; é a fotografia que permite você viver essa relação.” Para o ensaísta, a capacidade da foto de atiçar o inconsciente acaba por transformá-la em obra aberta.

Jean-Marc Lalier, La famille des Hybrides, 1984.

Jean-Marc Lalier, La famille des Hybrides, 1984.

As fotos que precedem cada capítulo exigem atenção especial. Por exemplo, o capítulo 4 traz uma foto de Jean-Marc Lalier, La famille des Hybrides (1984), reproduzida ao lado. Um olhar apressado sugere o retrato de duas pessoas, mas, ao mergulhar na imagem, o leitor descobrirá procedimentos levados a cabo na construção da foto que não estão explícitos no resultado apresentado.

Soulages insiste que devemos enfrentar o desafio e buscar entender o que caracteriza a fotografia. No caso da foto de Lalier, sua pesquisa é conceitual, pois cria uma ficção em foto – e depois fotografa a fabricação dessa proposta ficcional. Olhar para essa imagem convida a tentar entender o que é o objeto, o que é o real fotografado e sua representação. Olhá-la é, também, perceber que a foto não tem mais relação imediata com a realidade, já que resulta da relação de várias realidades. Ainda assim, a obra fotográfica remete sempre ao ato fotográfico e tudo que o cerca, mas nessa obra específica, os efeitos visíveis, nem sempre apreensíveis, nos oferecem a possibilidade de compreender a obra em seu processo de construção. No livro, Soulages busca a reflexão não só no processo criativo de construção da imagem, mas também em sua conexão com o real, questionando essa conexão e valorizando os processos de recepção. Como se nos lembrasse que o sentido da fotografia está, em todos os sentidos, no olhar.


Fontcuberta #2

O discurso de Fontcuberta é impecável. Ele tem erudição o bastante para descobrir deslizes cometidos por excesso de crença, mesmo em figuras inquestionáveis como Benjamin. Como se não bastasse, tem uma obra absolutamente coerente com sua teoria.

Mas, para não ficar apenas na bajulação, queria colocar um pequeno porém. Uma frase emblemática de El beso de Judas:  “a fotografia mente sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa”.

A relação que fazemos tradicionalmente entre fotografia e verdade é abusiva, sem dúvida. Espelhar essa relação, isto é, estabelecer uma relação entre a fotografia e a mentira é uma boa estratégia crítica, mas carrega os mesmos problemas.

Na definição mais elementar, verdadeiro é a correspondência entre uma afirmação e aquilo que uma coisa é. Essa é adefinição que o próprio Fontcuberta toma, citando o “adequatio intellectus et rei” (adequação entre conhecimento e coisa).  Se “a = b” e “b=c”, posso afirmar que “a=c”. Isso é verdadeiro. Ou mais simples: se digo que Platão é humano, ou grego, ou filósofo, não afirmo nada que Platão não seja, portanto, essas afirmações também são verdadeiras.

O que uma fotografia afirma?

Mesmo se acreditamos que há algum nível de analogia entre a imagem e o mundo fotografado, há uma grande diferença entre o verdadeiro da lógica e o semelhante da estética. Estamos em universos diferentes.

Mesmo quando um autor “realista” como Barthes afirma que tudo que a fotografia é capaz de dizer é que “isso foi”… Bem, essa é a mais precária das afirmações. Como ele sugere, é mais da ordem do “apontar o dedo” para algo de “dizer” algo. Vale dizer que “Ça a eté”, em francês, é ainda mesmo do que “isso foi”, porque nossas línguas exigem do verbo ser uma predicação “se foi, foi alguma coisa”. “Ça a ete “ é uma espécie de afirmação mínima, de constatação de existência, antes de que essa existência possa receber alguma qualificação. É como se a fotografia dissesse apenas, num português bem coloquial, algo como “ó!”

Se a fotografia não afirma nada, acredito, ela também não nega nada. Se não lhe cabe dizer a verdade, também não lhe cabe mentir. Há uma maneira simples de resolver a questão: a fotografia “representa”. Se representa bem ou mal, verdadeiramente ou falsamente, isso só poderá ser pensado depois que uma leitura da imagem for transposta a um campo de questões que não pertencem à fotografia.

Digo isso porque ainda gostaria de defender a idéia de que a fotografia ainda está apta a representar o mundo, mesmo que não lhe caiba dizer a verdade. É algo equivalente ao que eu disse em outra ocasião: o realismo não é um atributo da realidade, dizer que algo é reslita é assumir que se está no campo da representação, e não da realidade.

Enfim, a fotografia está aquém dessa relação entre a verdade e a mentira. Pensar a fotografia através de noções como falso ou verdadeiro é colocá-la num território que não é o seu: o da filosofia lógica ou ontológica.

Fontcuberta parece discordar. Diz ele: “apesar das aparências, o domínio da fotografia se situa mais propriamente no campo da ontologia que no da estética”. No final das contas, essa afirmação é uma constatação irônica. Tanto que ele irá demonstrar o absurdo do discurso científico através de experiências estéticas, parodiando a fotografia dos naturalistas, o jornalismo etc. Ou seja, ele mesmo responde com a arte às pretensões da fotografia ser científica.

Não há como não reconhecer coerência de Fontcuberta, numa espécie de estratégia radical em nome de uma  causa que ele assume. Como ele diz na apresentação irônica que faz de um outro livro de sua autoria (Contranatura):

“Este livro é um manual de auto-ajuda que propõe os princípios do ceticismo ativo®” … assim mesmo, com marca registrada… “Este método, concebido pelo Professor Fontcuberta, e que aqui se expõe mediante numerosos exemplos ilustrados e fáceis de seguir, revelou-se um sistema de eficácia comprovada para contestar a autoridade institucional da informação que recebemos e, definitivamente, não deixar-se levar pelas aparências”


Vou ao cinema, não escapo da fotografia

Tenho falado muito sobre cinema aqui no blog. Vejo filmes sem muita pretensão mas, onde houver uma brecha, acabo buscando a fotografia. E muitas vezes encontro.

Na semana passada, fui ver “Viajo porque preciso, volto porque te amo” sem ter a menor idéia do que se tratava. Fui por um motivo bom: gosto dos diretores Karin Ainouz, de “Madame Satã” e “O céu de Suely”, e Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirina e Urubus”. E um motivo não tão bom: num cinema de shopping, era a chance de encontrar uma sala mais tranqüila (não precisava tanto: exatas dez pessoas).

O pretexto é a história de um geólogo que, ainda muito preso ao amor por uma mulher, parte sozinho numa viagem de trabalho pelas terras inóspitas do sertão brasileiro. O que vemos é uma colagem de fragmentos de paisagens e registros quase etnográficos, boa parte deles filmados em super 8 (ou tratados para assim parecer), amarrados pela voz do personagem que conversa consigo mesmo sobre a solidão e o abandono. Numa espécie de roadmovie, os fins-de-mundo por onde ele passa servem como metáfora desses sentimentos.

O resultado pode ser frustrante pra quem busca um filme, mas é de encher os olhos pra quem gosta de imagens, numa perspectiva mais ampla. Um olhar formado pela fotografia tem, por exemplo, uma boa disposição para deter-se sobre imagens que perduram longamente, assim como para dar grandes saltos, coisa que essa obra exige. Das poucas pessoas na sala, algumas ficavam impacientes quando a história não fluia com a linearidade esperada. Pra mim, bastaria o pensamento construído pelas imagens. Aliás, era a narrativa que às vezes sobrava, como um esforço para arrancar uma trama de algo que nasceu despretensioso.

Mas o texto é cuidadoso. Como as imagens, as falas são uma coleção de pensamentos fragmentários. E mesmo quando o filme assume um ar documental, sabe evitar juízos de valor que, no cinema nacional, quase sempre resulta num tom de denúncia ou de deslumbramento.

A fotografia está lá, muito presente. Em algumas passagens, a história se constrói efetivamente a partir de imagens estáticas. Em outras tantas, a cena é tão imóvel e pregnante que o olhar se assume facilmente como diante uma fotografia. E alguns movimentos são tão sutis e delicados, que parecem “fotografias que respiram” (emprestando o termo de Gustavo Pellizzon).

Lembrei logo de alguns pioneiros do que exploram a fotografia no cinema. Lembrei de Marcelo Tassara, principalmente de Abeladormecida, pelo sotaque da fala e das imagens (no caso de Tassara, uma única imagem, com texto adaptado de James Joyce), pela forma como a câmera passeia sobre uma cena estática, e pelo modo como o título surge: “A Bela Adormecida” e “Viajo porque preciso, volto porque te amo” são frases que a câmera descobre em algum canto do filme (para conhecer esse cineasta, vale ler o artigo de Érico Elias, na Studium). Claro, lembrei também de Chris Marker, pelo despojamento – ou falta de purismo – técnico, pela mescla de documentário e ficção, pela forma como as imagens e as palavras se descolam e se reencontram, pelo modo como um pensamento se articula na apropriação de imagens desconexas.

Foi uma boa surpresa sair de casa sem expectativas e encontrar um filme como esse. É um trabalho que poderia estar numa galeria ou numa mostra de vídeo. Mas seria mais óbvio, porque já encontraria olhares bem adaptados. Vale o desafio de colocá-lo no cinema, de formar um público lentamente, mesmo que seja de dez em dez pessoas.


Futebol e fotografia

Em semana de Copa do Mundo é inevitável falar de futebol. Há algumas semanas, fiz um comentário sobre Teatro e Fotografia, quando defendi que o fotógrafo tem uma participação diminuta na construção da imagem fotográfica teatral, já que há a direção de cena, a iluminação, a expressão corporal, entre outras variáveis que não são de seu controle e responsabilidade. No caso de um jogo de futebol, em que supostamente predomina a imprevisibilidade, a atenção do fotógrafo é fundamental para o registro do instante decisivo e efêmero da partida.

Afora o estilo dos técnicos e dos jogadores, nada num jogo de futebol pode ser previsto. É exatamente isso que move inúmeros profissionais que se dedicam a flagrar os momentos mais fascinantes de uma partida – exatamente aqueles que mudam o rumo da história do jogo. E não precisa ser necessariamente o momento do gol. Aqui entra uma questão interessante, pois os jogadores sabem de antemão que estão sendo registrados em vídeo e fotografia. Será que, diante disso, não poderíamos supor alguma previsibilidade gestual?

Roland Barthes, em seu clássico A Câmara Clara defende que “a partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem”. No caso de um jogo de futebol é quase impossível prever ou pré-visualizar algum lance, sendo assim, como poderia o jogador “fabricar” alguma pose ou anunciar algum gesto?

Bicicleta de Leônidas da Silva, autoria não identificada

Bicicleta de Leônidas da Silva, autoria não identificada

Por exemplo, esta fotografia ao lado (infelizmente não encontrei a autoria) teria sido a primeira imagem flagrada do consagrado lance criativo – uma bicicleta – de Leônidas da Silva, o “Diamante Negro” do futebol brasileiro, no Estádio do Pacaembu, em 1942. Seria inimaginável alguma combinação prévia entre o jogador e o fotógrafo. Na realidade, ao olharmos admirados para esta fotografia, o que devemos valorizar é a perspicácia do fotógrafo que atento ao jogo documentou um lance até então inédito no futebol mundial. O jogador de costas para o gol tenta surpreender o goleiro com um movimento imprevisível. O que vemos na fotografia é o instante detido no inexorável fluxo de tempo. E a imagem consagra o lance e o jogador.

Domicio Pinheiro

Alberto Ferreira, bicicleta de Pelé

Anos mais tarde, Pelé repete a cena com uma precisão milimétrica. É uma bicicleta mais elaborada, do mais puro virtuosismo, mas tão surpreendente como a do Leônidas. Esta fotografia é de autoria de Alberto Ferreira, que trabalhou por 30 anos no Jornal do Brasil, sendo por 25 anos editor de fotografia. Essa imagem foi realizada no Maracanã, num jogo entre Brasil e Bélgica, em 1965. A precisão que podemos observar na fotografia, não é a mesma das informações disponíveis. Mas não fosse esta fotografia, como poderíamos descrever esse movimento, esse ângulo reto entre a perna direita e o corpo paralelo ao gramado, o zagueiro atônito e ao fundo a arquibancada do estádio? Palavras insuficientes para a grandeza da imagem.

O fotógrafo coloca-se no campo de futebol e, quase sempre, acompanha o jogo através da sua teleobjetiva, registrando os momentos que acredita ser detonadores de percepções singulares. No livro Máquina de Esperar – origem e estética da fotografia moderna, Mauricio Lissovsky propõe uma ampla reflexão sobre a questão do tempo no instantâneo fotográfico e traz uma contribuição diferenciada para a análise da fotografia. Vale a pena conferir.

Sabemos que a representação fotográfica associa-se ao tempo. Quando revisitamos algumas fotografias da história do futebol é perceptível o controle excessivo do tempo da cena, claro, sem descaracterizar a beleza do registro. Sabemos que as câmeras mais antigas eram desprovidas de foco automático e de dispositivos técnicos que pudessem garantir o documento fotográfico, daí a necessidade de estar atento e manter o rígido domínio das variáveis. Barthes não apreciava esses fotógrafos justamente pelo excesso de controle. Mas o que seria do futebol caso não tivéssemos esses fotógrafos que acompanham atentamente a bola e o movimento dos jogadores a fim de documentar para a posteridade o momento extático (de êxtase) de um jogo?

Para lembrar alguns dos grandes nomes da fotografia futebolística, citamos Domício Pinheiro (1922-1998) que acompanhou Pelé em todos os seus grandes momentos; Reginaldo Manente, repórter-fotográfico do Jornal da Tarde que publicou em 1982 o menino chorando após o Brasil perder a Copa da Espanha; o saudoso fotógrafo gaúcho J. B. Scalco (1951-1983) em suas memoráveis fotografias publicadas na revista Placar na década de setenta; e mais recentemente temos Ricardo Correa e Alexandre Battibugli (lembra-se da fotografia do campo de futebol com uma árvore no meio dele?), ambos da editora Abril.

José Medeiros, Maracanã, 1950

José Medeiros, Maracanã, 1950

Mas, dentre todas as fotografias de futebol, a que mais me comove é a de José Medeiros, realizada no Maracanã, na Copa de 1950, na final entre o Brasil e o Uruguai, em que perdemos o título. José Medeiros disse-me sobre esta fotografia numa entrevista feita na cidade de Ouro Preto, em 1987, por ocasião da VI Semana Nacional de Fotografia: “quando encerrou o jogo, todos buscavam fotografar o desespero dos jogadores brasileiros; então resolvi inverter a prioridade e fotografar os fotógrafos que buscavam registrar as mesmas cenas”. Ao inverter o centro de atenção naquele momento, Medeiros demonstrou sensibilidade e colocou em evidência os profissionais preocupados em registrar o desespero dos nossos jogadores derrotados, mas também emocionados demais para pensar numa imagem que não fosse o senso comum.

Hoje, mesmo com as câmeras cada vez mais automatizadas e a gravação do jogo em diferentes mídias, a fotografia continua a atrair os olhares de todo o mundo. É ela quem consagra o momento espetacular, que exalta o gesto fenomenal, que inspira e entusiasma os amadores, que traduz a emoção do lance e dá autenticidade ao instante evanescente. Nossa expectativa é que nesta edição da Copa do Mundo de Futebol, na África do Sul, novas fotografias sejam incorporadas à história. Vamos aguardar.


Direito autoral: propriedade hereditária x cultura

Acompanhamos nas últimas semanas o debate em torno das restrições para exposição e publicação de obras de artistas importantes como Volpi, Lygia Clark e Hélio Oiticica, impostas por seus herdeiros. Nos bastidores, descobrimos ainda que as autorizações, quando dadas, podem incluir condições a respeito dos textos e debates que discutem os artistas.

Vale lembrar também de restrições que instituições culturais privadas impõem à pesquisa de seus acervos, mesmo quando são adquiridos por meio de renúncia fiscal e, portanto, com dinheiro público.

Esbarrei em algo parecido quando tentei publicar minha tese de doutorado. Cheguei a assinar um contrato com a Hucitec, mas empaquei exatamente nas autorizações para publicação das imagens. Depois de uma longa pesquisa, foram 16 cartas enviadas a artistas e instituições de vários países, explicando que se tratava de um trabalho acadêmico, cuja publicação me renderia apenas um percentual em exemplares. Os dois únicos artistas vivos, o brasileiro Carlos Fadon e o inglês Harold Cohen, responderam diretamente autorizando a publicação. Os representantes de artistas falecidos me enviaram tabelas com preços que variavam entre US$ 50 e US$ 700. Conheço uma dezena de episódios semelhantes que ocorreram com outros pesquisadores.

Na prática, vemos que o direito autoral protege de modo precário os artistas que estão batalhando o dia a dia em seus mercados, e vira um dogma quando se está diante de uma grande instituição ou de um nome consagrado.

O direito autoral não é em si um valor, é uma espécie de mal necessário. O que ele regula não é a natureza da produção intelectual e estética, mas os efeitos colaterais gerados pelo esforço de encaixá-la num lugar que não lhe é o mais confortável: o da coisa, o da propriedade privada. Não se trata de moralismo. Nada mais digno que um artista sobreviver e lucrar com sua produção. Também não é pecado haver um mercado para a arte. Mas o direito autoral não é a ferramenta criada para socorrer os artistas em suas necessidades. Ele é a própria imposição de uma existência jurídica sobre o objeto estético, inevitável no mundo moderno, mas que pode sim resultar em algumas contradições.

É fundamental perceber que a obra de arte não é um bem como outro qualquer. Se você construir um predinho, não parece natural que, depois da sua morte, seus filhos mereçam receber o aluguel pelo uso dessa propriedade? Agora, se você não constrói prédios, mas faz arte, não é a mesma coisa? É preciso ter clareza sobre os limites de uma comparação com essa. Por exemplo: como negócio, pode ser interessante e legítimo que os herdeiros reformem, modifiquem ou mesmo derrubem o imóvel. A propriedade não é questão absoluta no direito autoral, e a lei já tenta fazer uma distinção. Ela fala num “direito patrimonial” que diz respeito à posse do objeto propriamente dita. Esse direito pode ser transferido, vendido, doado, herdado. Mas, mesmo que de modo vago, fala também um “direito moral”, irrenunciável, dentre eles, a obrigação de garantir a integridade da obra.

Ainda falta alguma coisa. Ao lado de um direito patrimonial negociável e um outro moral inalienável, deveria existir também um direito cultural, inapropriável pelos herdeiros, que é o direito de ter a obra submetida à exposição, à análise, ao debate, à pesquisa, à crítica, aquilo de que obra se alimentou para se tornar valiosa e sem o que ela teria se tornado uma matéria morta, sem sentido.

Se você encontrar ouro no seu quintal, talvez você tenha obrigações fiscais a cumprir. Mas pode decidir não fazer alarde sobre sua nova riqueza, que se valoriza enquanto permanece escondida, secreta, trancada num cofre. Isso porque o valor simbólico de um recurso natural, assim como das ações de uma empresa ou de um terreno é algo genérico, abstrato, que se mede pelo peso, pelo lote, pelo metro quadrado.

Quando você descobre que tem algum talento artístico, você não o esconde, você o expressa. Porque uma obra de arte não é apenas matéria, mas é também um sentido singular que apenas se realiza diante de um olhar, de um corpo sensível, de uma consciência. Nesse mesmo contexto moderno, é em sua exposição ou circulação como objeto cultural que uma obra de arte poderá se tornar também um patrimônio valioso. Por isso, é uma grande contradição renegar o interesse cultural quando foi exatamente em função dele que algum interesse mercantil foi constituído. Se é de uma experiência coletiva que esse objeto se alimenta, ela não deixa de pertencer também à coletividade.

Existe hoje uma pressão para a reformulação da lei do direito autoral, que convida ainda a pensar os potenciais tão promissores quanto assustadores das novas tecnologias. Mas é importante que o assunto seja tratado no plano da política cultural, não apenas do direito civil. As razões e dinâmicas da arte são complexas demais para serem debatidas apenas na esfera jurídica. Como patrimônio, aquilo que um artista deixa é importante demais para ser hereditário.


Desorientações momentâneas ou estranhas serenidades

Antonio Saggese, Pittoresco.

Antonio Saggese, Pittoresco.

Na contemporaneidade, quando tudo parece conhecido e banalizado, o fotógrafo A. Saggese propõe uma nova reflexão sobre a imagem fotográfica. Ao contrário dos seus trabalhos anteriores, quando a discussão era sobre uma fotografia tecnicamente precisa e exageradamente perfeita, exigência de sua visão binocular, imperfeita, agora ele trabalha a partir de uma imagem digital gravada na memória da câmera. Isto significa que o registro não tem mais o compromisso com o referente.

Saggese especula sobre a possibilidade da imagem representar mais do que nela está registrado. Relaciona intencionalmente natureza e beleza para evidenciar que a primeira continua criando formas extravagantes que ainda nos surpreendem pela espetacularização do belo. Suas fotografias são singelas, algumas comoventes, que perturbam exatamente por serem óbvias demais. Mas afinal o que vem a ser esta provocação?

A nova série, produzida nos últimos três anos, denominada Pitoresco trabalha exatamente nesta brecha desprotegida entre as variações do imaginativo e do fantástico. A própria denominação do conjunto já é provocativa, ou seja, uma espécie de sutileza crítica a fim de mostrar que o trabalho foi criado para atiçar os questionamentos e as dúvidas, e não para cristalizar conceitos. Afinal, a idéia primeira do Pitoresco nasce no movimento romântico, final do século XVIII (Ver Ensaios sobre o Pitoresco, de Uvedale Price, de 1795; Um inquérito filosófico sobre as origens das nossas idéias do sublime e do belo, de Edmund Burke, de 1757).

Richard Payne Knight (1750 – 1827, autor de Principles of Taste, de 1805) defende que o Pitoresco está baseado em valores de luz e cor; isto equivalia a uma antecipação teórica da dissolução da matéria temática concreta em puros efeitos coloristas, que seriam colocados em prática de forma excepcional por pintores ingleses como William Turner (1775 – 1851) e John Constable (1776 – 1837). Já Edmund Burke (1729 – 1797) entende o termo Pitoresco como essencial para a compreensão daquele momento, pois considera a paisagem como a “arena do sublime” e a natureza selvagem e indomável como o “palco para ocorrências emocionantes”.

Essa denominação surgiu com o amadurecimento da idéia inicial e as diversas discussões que Saggese teve comigo e com vários outros interlocutores. Num primeiro momento o conjunto de fotografias denominava-se Natureza e Cultura, e buscava não só relacionar os conceitos como também entender o próprio processo de trabalho. Ele constatou que as imagens técnicas de natureza produzida nas últimas décadas não trazem mais o mistério nem a fascinação que tanto perturbavam os artistas e os escritores.

Nesse sentido, seu trabalho foi concebido na direção oposta, ou seja, criar imagens que recuperasse a força do espanto provocado pelo registro da natureza. Ele aprofundou a excitante experiência de olhar e ver. Ver e registrar. Dar existência perpétua a algo efêmero através de uma fotografia que capta esse universo indistinto em que luz e sombra não tem limites definidos.

Antônio Saggese, Pittoresco

Antonio Saggese, Pittoresco

A atenção de Saggese está voltada para as águas e pedras, para os céus e para as árvores. Para ele, a fotografia torna-se a imagem mais adequada para apreciar esta natureza ‘selvagem’ em seu estado bruto, pois há uma penetrante intensidade e transitoriedade naquilo que é registrado. Um mundo de sonhos e devaneios que emerge da misteriosa luminosidade da qual ele traduz com o máximo aproveitamento. Essa natureza flagrada em seu esplendor vigoroso e caótico permite agora este intrigante e harmônico conjunto que provoca uma estranha serenidade.

Nessa ‘primitiva’ atmosfera encontrada por Saggese, em diferentes tempos e em diferentes lugares os volumes são envoltos por suaves penumbras. A brancura ofuscante das nuvens ou das espumas das águas turbulentas que explodem nas pedras cria efeitos mágicos de luz, equilíbrios de tons e cores, texturas difusas, desintegração das formas. Uma espécie de aparição instantânea que gravadas tecnicamente na matriz digital, para análise e tratamento posterior denotam a incessante experimentação do artista.

As fotografias, enquadramentos e registros dentre muitas possibilidades, interrompem o fluxo temporal. A intenção do artista foi retirar todas as referências possíveis de lugar para permitir que a imagem fosse soberana. Os fluxos de águas, o movimento, as forças que atuam constantemente no cotidiano, as pulsões naturais, tudo registrado para que a imagem traga a verdadeira beleza que se revela ao acaso. Saggese quer oferecer para o espectador a possibilidade de estender o visível perceptível para o visível transformado, ou seja, o que ficou gravado na matriz e posteriormente tornado visível novamente, é o registro da ação espontânea da natureza.

As imagens impressas nos transportam para outra dimensão do tempo. Não é fácil deixar de interagir, pois elas se tornaram concepções visuais poéticas que remetem invariavelmente à nostalgia do passado. Mas temos que considerar que o artista procurou se posicionar num local específico, e atribuir importância ao seu ponto de vista para criar a distância adequada em relação ao objeto e harmonizar a escala. Essa construção visual permite que a fotografia gravada na câmera seja singular exatamente pela sua literalidade descritiva.

Saggese também desenvolveu na pós-produção uma meticulosa pesquisa para poder dar à impressão das imagens um acabamento que a aproximasse do registro visível da tela luminosa. E durante o processo levantou inúmeras questões. Uma delas, parte da idéia de que a impressora pinta, pois é uma espécie de aerógrafo computadorizado. Diante disso, o artista questiona: o resultado é uma fotografia ou uma pintura?

Outra questão importante discutida pelo artista é sua compreensão da fotografia digital como o império do artifício. Não à idéia de artifício enquanto processo artesanal; mas artifício como um recurso engenhoso, uma artimanha. No caso da fotografia digital, o registro de luz e sombra é eletronicamente traduzido em código (0/1). A consequência é que cada pixel individual pode ser transformado pela simples alteração do código. E as eventuais alterações não deixam rastros na imagem final. Portanto, ao vermos um ensaio como este, produzido digitalmente, não sabemos quantificar o quanto de intervenção foi necessário. E se isso realmente acontece, o que pode significar?

O fim da fotografia documental, aquela associada à idéia de verdade, não nos permite concluir que toda a produção contemporânea é falsa e fantasiosa. Roland Barthes defende que toda fotografia está colada no seu referente (A Câmara Clara, 1981). Claro está que os vários teóricos que defendem a indexicalidade da fotografia, diante da nova produção digital, há de se questionar. Afinal, parte significativa da produção contemporânea é digital e isso implica em tratamento de imagem e visualidades transformadas. Nesta série Pitoresco o referente, segundo Saggese, deixa de ser o mundo visível, o real existente, e passa a ser as gravuras japonesas, a obra do artista venezuelano Armando Reverón, os céus de Hercule Florence, as nuvens de Alfred Stieglitz na série Equivalentes, e tudo o que essa temática detona em seu repertório imagético.

Saggese, por seu conhecimento técnico na fotografia fotoquímica e na digital, por sua reflexão constante sobre imagem e seus desdobramentos, dá relevância a essas questões. Mas tem consciência que como artista quer aprofundar a discussão da questão cultural da fotografia e neste trabalho em particular teve a clara intenção de ir além do assunto ao desterritorializar a imagem. Ele buscou um enquadramento que não nos permite identificar com clareza a linha do horizonte. Estamos à mercê de imagens que invadem nossa percepção e nos deixa perplexos, desorientados momentaneamente.

A fotografia de Saggese, sintonizada com a produção contemporânea e neopictorialista, produz visualidades singulares, claridade e transparência, opacidades e riqueza de detalhes, aparente neutralidade e alterações tonais, texturas difusas e luz, cor, profundidade. E também provoca uma série de estranhamentos que instiga nossa compreensão de divino na natureza. Fotografias que foram concebidas para exaltar o extraordinário no cotidiano banal, só para provar que tornar visível é muitas vezes provocar a vertigem necessária para conferir beleza à realidade imediata.

A exposição Pittoresco, de Antonio Saggese está no Instituto Tomie Ohtake, de 15 de junho a 25 de julho – de terça a domingo, das 11 às 20 horas. Este texto integra o catálogo da exposição.


Intercom em Caxias do Sul

Até 17/07, estão abertas as inscrições para envio de trabalhos para a Intercom, o encontro da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, que acontecerá em setembro, em Caixas do Sul. Desde 2004, temos lá um GP (Grupo de Pesquisa) chamado Fotografia: Comunicação e Cultura. Criar e manter um Núcleo num congresso tradicional como esse exige do coordenador alguns esforços: de um lado, competência política para sobreviver num embate que, a cada ano, envolve a criação, a extinção, a junção e de Núcleos, conforme interesses e desempenhos de cada área; de outro lado, a capacidade de garantir a regularidade e a qualidade das pesquisas apresentadas.  Foi o Fernando de Tacca, da Unicamp, quem batalhou o GP em 2003 e o segurou nos primeiros anos, com uma ajuda importante de Ana Maria Schultze e da Denise Camargo. Após o encontro de 2008, a coordenação foi assumida por outra colega, Dulcilia Buitoni, da Cásper Líbero. Já passamos por Porto Alegre (2004), Rio de Janeiro (2005), Brasília (2006, neste eu não pude ir), Santos (2007), Natal (2008) e Cutitiba (2009). Nas duas últimas edições, o Rubens, meu companheiro de blog, se juntou ao grupo. O GP de Fotografia começou tímido e é hoje um dos mais produtivos do evento.

Paulo Cesar Boni (Londrina) e Rubens Fernandes Junior, em Natal. Foto de Afonso Jr.

Paulo Cesar Boni (Londrina) e Rubens Fernandes Junior, em Natal. Foto de Afonso Jr.

Pessoalmente, não gosto de congressos, essa é uma das partes mais fracas do meu currículo, mesmo que seja uma obrigação para quem está no mundo acadêmico. Não gosto da parte política, das formalidades, e da multidão que se aglomera num evento desse porte: em 2009, foram inscritos cerca de 1200 trabalhos nos 28 Núcleos de Pesquisa, com um total de 3400 participantes. Mas aprendi a gostar da atividade mais intimista dentro do GP de Fotografia, que tem qualidades raras: o clima é muito bom, sem disputas de território, sem culto às formalidades, com muita abertura para os pesquisadores mais jovens. Alguns deles começam a se tornar leitura obrigatória para mim: Claudia Linhares Sanz, Victa de Carvalho, Wagner Souza e Silva, entre outros.

Milton Guran e Dulcilia Buitoni, em Natal. Foto de Afonso Jr.

Milton Guran e Dulcilia Buitoni, em Natal. Foto de Afonso Jr.

Temos lá uma turma de amigos que só se encontra nessas ocasiões, de modo que as boas conversas sempre continuam nos botecos locais, para compensar a correria da agenda oficial. Pela natureza do encontro, as pesquisas devem ter uma formatação acadêmica, mas as apresentações não precisam ser burocráticas. Há espaço para os relatos de experiência informais de fotógrafos, assim como para intuições ainda não muito científicas, coisa que se deve garantir quando se está com um pé no território da arte. A cada ano, um artista ou pesquisador é homenageado: até aqui foram Luiz Eduardo Achutti, Antônio Fatorelli, Luis Humberto, Boris Kossoy, Milton Guran. E seja num anfiteatro, seja num espaço improvisado a céu aberto, sempre há uma noite de projeção de imagens, sem a obrigação de qualquer papo cabeça.

Quem quiser ir, passe pelo site com alguma antecedência: há algumas formalidades que devem ser resolvidas antes do dia 17/07, quando se encerram as inscrições.

Os trabalhos selecionados para o GP de Fotografia: Comunicação e Cultura nas quatro últimas edições da Intercom podem ser acessados pela internet: Brasília (2006)Santos (2007)Natal (2008)Curitiba (2009).


Sofrimento em slow motion: a plasticidade das faltas no futebol

Daniel Alves, foto de GABRIEL BOUYS, AFP/Getty Images

Daniel Alves, Brasil x Costa do Marfim. Foto de Gabriel Bouys. AFP/Getty Images.

Nesta copa, me chamou a atenção a performance dos jogadores que sofrem falta. São incríveis as quedas: com a potência de uma corrida, um pequeno toque do adversário pode gerar um salto acrobático, uma cambalhota no ar, ou um vôo com braços e pernas projetados, terminando com uma sequência incrível de rolamentos no chão. Claro, também o grito e a expressão de dor no rosto e, por algum tempo, a contorção ou a agitação desesperada. Talvez tenha sido sempre assim no futebol, a diferença está na nas tecnologias disponíveis, nas nossas TVs maiores, na qualidade da transmissão, na quantidade e na posição das câmeras, no super slow motion, e nas câmeras fotográficas com super fast burst, que registram num único segundo, e em alta resolução, mais imagens que uma câmera de vídeo, de modo que o detalhe decisivo sempre está lá.

Imagino que essas performances envolvam duas coisas complementares, o sofrimento em si e a comunicação do sofrimento. Não se trata da questão do fingimento, da simulação, situações que as câmeras também flagram, e que se tornam particularmente cômicas (o Youtube tem vídeos muito divertidos sobre isso). Vamos nos deter sobre os casos em que a falta existiu, em que o movimento é ao mesmo tempo verdadeiro e plástico, de modo que o atleta se torna um poeta: “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

O que me chamou a atenção para essa performance da comunicação é alguma coisa bastante explícita: a maneira como as regras ainda são lembradas em meio à irracionalidade da dor, quando o jogador se contorce e grita, ao mesmo tempo em que acena freneticamente com a mão estendida, num gesto que pede claramente a atenção, seja do juiz, dos colegas, talvez das câmeras. Ele não esquece que seu sofrimento tem uma função no jogo, pode explicar o gol perdido, e render uma nova chance de gol, pode garantir a punição do adversário, serve para gastar o tempo e segurar um resultado. Como há tempos as câmeras fazem parte do jogo, elas estão ali para garantir a adesão das massas a essas pequenas causas.

Na vida, deve existir todo tipo de sofrimento, talvez seja um traço de personalidade, há os que sofrem de modo mais contido, os que xingam (mesmo os seres inanimados, como a quina do móvel), há os que sofrem escandalosamente. Raramente vemos no futebol o sofrimento silencioso, retraído, aquele que, por uma resposta instintiva à dor, contrai e imobiliza todos os músculos, cessa toda ação.

Susan Sontag, que perguntava sobre como nos portamos “diante da dor dos outros” (ensaio de 2003), percebeu também que a presença das câmeras nas situações de conflito e sofrimento agem sobre o fato. A questão se inverte: “como a dor dos outros se manifesta diante do nosso olhar?”, pergunta válida não apenas para as guerras, para o sofrimento coletivo que se desdobra em causa política, mas também para situações mais efêmeras. É nítido o fato de que nossos rituais íntimos de sofrimento também assimilam as estruturas de comunicação e a constante presença das câmeras.

Uma mãe sofre honestamente a perda de seu filho. Ela chora como tem que ser. Precisa ser amparada para se manter em pé. Uma câmera de TV chega para mostrar de perto um sentimento universal que já compreendíamos de longe. O repórter pergunta com voz solene aquilo que já sabemos: como você se sente? O sofrimento irracional não impede a mulher de lembrar o que é a TV, ela sabe que tem um papel a cumprir, sabe que não basta sentir a dor, deve comunicar a dor. Ali ela encontra energia para um choro mais vigoroso, um grito angustiado, um pedido desesperado de justiça.

Essas situações inevitavelmente levam à pergunta: o sofrimento é real? Ou é uma encenação (um espetáculo, um simulacro)? Creio que as duas coisas ao mesmo tempo. É fundamental discutir os limites dessa “existência como imagem”, mas a polarização entre realidade e representação é sempre limitante. Somos seres simbólicos, pertencer a uma sociedade é representar papéis. Se não sabemos viver de outro modo, se isso é da “natureza humana”, somos verdadeiramente os papéis que cumprimos. Sabemos que faz parte disso um conjunto de rituais consolidados que chamamos de cultura: a maneira como nos vestimos, como nos portamos, com quem andamos, como nos organizamos em coletividade, os lugares que frequentamos etc.

A questão agora é pensar o quanto as tecnologias da imagem passam a ser assimiladas pelas estratégias inconscientes dessa auto-representação. Incorporamos aquilo que elas são capazes de mostrar, nossos papéis passam a ser constituídos de detalhes, essa verdade da representação se torna mais plástica, já considerando a possibilidade de ser vista de vários ângulos, ampliadas, dissecadas, congeladas, ou em slow motion.


Gabinete de Curiosidades

Bob Wolfenson, Apreensões.

Bob Wolfenson, Apreensões.

A exposição Apreensões, de Bob Wolfenson, no Centro Universitário Maria Antonia, me surpreendeu. Por inúmeras razões, que tentarei colocar em discussão, mas principalmente pela força das imagens que me tocaram tão profundamente. Como sabemos, Bob Wolfenson tem inegável reconhecimento na produção fotográfica associada à Moda, ao Retrato e ao Comportamento, com qualidade e originalidade incomuns. Mas, desde sua primeira exposição Minhas Amigas do Peito, realizada na Galeria Fotóptica, em 1989, demonstra uma disposição criativa para ampliar sua esfera de atuação.

Para isso, basta lembrar suas últimas exposições – A Caminho do Mar, na Galeria Milan, 2007, e Cinepolis, no MAM-BA, 2008 – para perceber que seu trabalho com a imagem extrapola os limites da fotografia aplicada e ocupa significativamente outros espaços, como os destacados acima. Agora, com Apreensões, propõe-se a refletir sobre as imagens midiáticas e como estas são ineficientes tanto do ponto de vista da informação, quanto do impacto que poderiam provocar em sua recepção.

Como a exposição me provocou certo desconforto, procurei entender melhor o trabalho a partir do seu título. A palavra ‘apreender’ se insinua como signo potencialmente mais amplo e, claro, tem conexão com o universo da fotografia que ‘apreende’ o mundo visível ao registrar ou documentar um fragmento qualquer no tempo. No Dicionário Aurélio, apreender significa “apropriar-se judicialmente de alguma coisa”. Já apreensão, é “ato ou efeito de apreender”. Em contrapartida, para a Filosofia, é o “conhecimento imediato (por meio de percepção, julgamento, memória ou imaginação) de um objeto relativamente simples, e que resulta na pura presença desse objeto à consciência”. Ou ainda, “conhecimento imediato de um objeto relativamente simples, em oposição a processos mais elaborados, como, por exemplo, a compreensão, o julgamento, o raciocínio”.

Bob Wolfenson, Apreensões.

Bob Wolfenson, Apreensões.

Bob Wolfenson opera uma espécie de metalinguagem a fim de provocar o espanto. Enquanto as imagens midiáticas são efêmeras no noticiário político-policial, as fotografias apresentadas no Centro Universitário Maria Antonia pulsam na memória do visitante. A sala da exibição, de formato retangular, foi tomada por fotografias de grandes e diferentes formatos e de um realismo perturbador. São registros captados digitalmente das apreensões policiais que, organizadas aleatoriamente nos locais de destino, simulam assemblages cujas texturas e arranjos denotam nossa impotência diante do crime organizado e nossa incapacidade de reação.

Assim como nos ensaios anteriores, em que o drama de Cubatão e da Metrópole era, paradoxalmente, questionado por imagens assustadoras e belas, mais uma vez, Bob Wolfenson dá mostras de sua indignação diante do intolerável. Chama nossa atenção para assuntos cotidianos e aparentemente insolúveis, ao criar uma fotografia tecnicamente bem resolvida, dissociada de seus suportes convencionais e efêmeros, e potencializada como a imagem do still life contemporâneo. No limite, a apreensão fotográfica de uma realidade que nos cerca pode nos cegar quando massificada pela mídia, mas é sempre uma possibilidade de conscientização quando resignificada pelo artista.

Bob Wolfenson, Apreensões

Bob Wolfenson, Apreensões

Nossa intenção não é elucidar o processo artístico ou as próprias obras (estas são suficientemente fortes e especulativas), muito menos edificar um sistema de leituras ou de decifração. Mas não podemos deixar de destacar a ação técnica e o pensamento do artista que norteou este trabalho. Bob Wolfenson nos lembra: “o aparato técnico empregado para capturar aquilo que vemos diariamente na mídia foi novo para mim. Cheguei a ele na busca de um procedimento que substituísse os sistemas analógicos tradicionais possibilitando mais agilidade no set fotográfico e também na pós-produção. Foi utilizado o sistema de varredura digital, ou seja, um fracionamento da cena no momento da tomada fotográfica para que a imagem final alcance uma definição alta, salvo nas fotos de animais, pelo fato de se moverem e impossibilitarem o uso dessa técnica”.

Com essa nova série denominada de Apreensões, Bob Wolfenson se mostra mais contundente em seus temas. Um inventário de objetos, materiais e animais silvestres que permite ao artista especular sobre a questão e, ao mesmo tempo, tentar compreender o insólito mundo do qual somos parte e pouco questionamos. Uma das experiências mais radicais realizada por Bob Wolfenson que mostra maturidade artística diante desta tragédia anunciada e insolúvel.

Centro Universitário Maria Antonia, Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, Tel. 3255-7182; exposição Apreensões – de 17 de junho a 10 de outubro.


Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte I

Anônimo. Walter Reed Hospital, 1918

Anônimo. Walter Reed Hospital, 1918

Sabemos que, desde sua invenção, recaiu sobre a fotografia uma confiança exagerada. A ideia de que ali havia uma reprodução fiel da realidade garantiu sua imediata aceitação como instrumento de memória e documentação, no entanto, atrapalhou seu reconhecimento como arte.  Nos últimos 30, talvez 40 anos, muitas teorias se empenharam em desconstruir essa confiança, denunciando as bases ingênuas que legitimavam muitos dos usos da fotografia. Para combater um século de pensamento enviesado e garantir uma postura mais crítica diante do meio, foi preciso afirmar a ideia de que a fotografia é artifício, é codificada, construída, subjetiva, ideológica, eventualmente mentirosa. Em contrapartida foi necessário policiar o uso de certas palavras e expressões emblemáticas dessa confiança cega e ultrapassada: real, realidade, objetividade, documento, analogia, mimesis, verossimilhança se tornaram heresias, e tal vocabulário só podia ser requisitado para caracterizar o inimigo que se combatia.

Pois bem, uma vez que o corretivo foi bem aplicado, que estamos conscientes dos limites da representação fotográfica, podemos tentar reconhecer nesse inimigo esfacelado alguns valores que merecem ser preservados. Para ser mais claro, vale revisitar esses conceitos renegados, vale entender suas sutilezas e fazer também deles instrumento da consciência que reivindicamos.

Para aqueles que têm paciência para a teoria, algumas tentativas de resgate:

Realidade: Existe essa coisa? Se estamos falando da natureza física, percebida empiricamente, pode não ser algo unânime. Para uma filosofia idealista dogmática, como a do filósofo irlandês George Berkeley, é problemático afirmar que existe mesmo um mundo fora do pensamento. Deixado de lado esse radicalismo, vou então admitir, por exemplo, que você é real, que está aí sentado lendo meu post, e que não existe apenas no meu pensamento. A segunda questão é saber se é possível a uma consciência acessar diretamente essa realidade, ou apenas uma representação dela. Isso merece ser discutido, sem a necessidade de radicalismos. Charles Sanders Peirce admite que toda nossa relação com o mundo está mediada por signos, mas assume também que existe uma realidade fora do signo, que também participa do processo de representação (semiose). Ou seja, existe seu nome, sua foto, suas poses, seu jeito de se vestir, seus discursos, e eu só posso alcançá-lo por meio de  signos como esses. Mas você também tem uma existência para além dessas representações e essa realidade determina em maior ou menor grau os signos que o representam. Por isso, a ideia de representação não precisa ser pensada como um avesso da realidade. Podemos ir mais longe. Se a “natureza humana” é essencialmente simbólica (isto é, para nós as coisas nunca são puras, nunca são apenas elas próprias, sempre representam algo), podemos admitir que aquilo que representamos é uma parte constituinte de nossa realidade, uma realidade psíquica, social, cultural.

Representação da realidade: A fotografia representa a realidade? Estupidez! Heresia!!! Quem ainda afirmaria uma coisa dessas? Bem, já admitimos que existe algo que podemos chamar de realidade. O que é representar? É apontar para algo, fazer referência, partir de uma relação entre duas coisas, tomando uma delas para fazer pensar na outra. Basta qualquer definição razoável de “representação” para saber que ela não se confunde com “duplicação”, “reprodução fiel”, com “ser idêntico”. Afinal, seu nome o representa, o desenho que seu filho de quatro anos fez de você o representa, aquele perfume que você usa sempre o representa, até o numero do seu PIS que você nunca decorou o representa, e nada disso se confunde com a totalidade do que você é. Até mesmo uma imagem distorcida, uma informação fragmentada ou uma mentira também são representações, pelo simples fato de que fazem referência a um objeto. Ou seja, quando se diz que a fotografia representa a realidade, isso já equivale dizer que ela não é a realidade. É apenas uma representação da realidade: em certas condições, para certos fins, e sempre provisoriamente, ela se coloca no lugar de alguns de seus aspectos.

Realismo: a fotografia é realista? Ela pode ser, e pode não ser. Realismo e realidade não são a mesma coisa. O realismo é um modo de se portar diante da realidade. Admitir que existe uma realidade fora do pensamento e atribuir a ela alguma relevância para o conhecimento já é o suficiente para uma filosofia ser caracterizada como realista. Na história da arte, encontramos movimentos denominados realistas que se referem ao desejo de produzir uma arte comprometida com a vida social, com as possibilidades de conhecê-la e de transformá-la. Esse é o caso da pintura realista de Courbet ou da literatura realista de Balzac, no século XIX. E, no século XX, é o caso do cinema neo-realista italiano de diretores como Vittorio de Sica ou Rosselini. No caso da fotografia, entra em jogo uma questão herdada da pintura renascentista, que diz respeito ao desejo de extrair da própria natureza os critérios para representá-la. A perspectiva, baseada na mesma matemática que explicava tão bem o mundo, parecia então produzir uma imagem realista. Assim como a câmera: objeto técnico que supostamente apreende um comportamento natural da luz para produzir também uma imagem realista. Aqui sim existe algo de problemático que valeu a pena questionar. Mas hoje está suficientemente claro para todos que o realismo não é mais que um conjunto de procedimentos escolhidos dentre outros possíveis, e devidamente legitimados pela tradição. Quando utilizados, produz para a cultura que elegeu tais procedimentos uma comunicação compreensível sobre a realidade. Ser realista é, portanto, produzir uma imagem segundo um modelo considerado válido. Nesse sentido, podemos bem dizer que a pintura de Salvador Dali é realista, porque constrói todo tipo de fantasia, mas respeita os artifícios de convencimento adotados pela tradição da pintura ilusionista. É certo que a fotografia seguiu nas últimas décadas uma postura anti-realista, em vários sentidos. De um lado, essa fotografia se mostra pouco interessada pela realidade, priorizando uma discussão sobre o próprio meio, sobre aquilo que a própria fotografia é capaz de forjar.  De outro, ela recusa e desconstrói deliberadamente esses modelos tradicionais, inclusive – e sobretudo – aqueles  programados na câmera. Esse é um movimento legítimo da fotografia contemporânea. Mas é equivocado pensar a imagem realista como o contrário da imagem ficcional. Todas as aplicações do termo pela arte nos levam a concluir que o realismo é um certo modo de se portar da ficção, da imagem ilusionista. Como eu disse em outra ocasião, cabe à ficção ser realista, não à realidade. Podemos dizer que uma fotografia é realista porque localizamos certas expectativas da imagem perante a realidade. Mas só é possível pensar a relação entre duas coisas quando elas não se confundem. Ou seja, ao dizer que a imagem é realista, já fizemos a devida distinção entre a fotografia e a realidade.

Em posts futuros, podemos tentar resgatar outras vítimas, conceitos como documento, analogia, mimesis, objetividade, verossimilhança


Fotógrafo não é dedo-duro, meritíssimo!

Há 20 anos, fui processado pela universidade em que estudava, a PUC-SP, por causa de algumas fotos que fiz. Mais precisamente, porque eles queriam essas fotos.

Folha de S. Paulo, 8/4/1990. Fotos de Fernando Santos.

Folha de S. Paulo, 8/4/1990. Fotos de Fernando Santos.

Eu estava numa aula, no meu último ano do curso de jornalismo, quando correu a notícia de que um grupo de alunos ocuparia a reitoria em protesto contra o aumento das mensalidades. Fotografei tudo: a articulação do grupo, o arrombamento da porta, a entrada dos alunos que ficaram ali acampados durante 16 dias, com direito a show do Tom Zé.

Vendi algumas imagens e também cedi duas delas para um jornal que era editado pela própria PUC, mas independente a ponto de cobrir as ações do movimento estudantil. Invasões ocorriam ali quase todos os anos, isso era parte da história do lugar. Dessa vez, a reitoria decidiu endurecer: escolheu duas lideranças estudantis, o rapaz que aparece junto comigo na foto acima e outra menina, e pediu a eles uma indenização de 10 salários mínimos, muito dinheiro para um aluno de lá naquela época (a mensalidade equivalia a menos de um salário).

Folha de S. Paulo, 8/4/1990.

Folha, 8/4/90. No fragmento, a reitora da PUC.

Um dia recebo em casa uma carta do advogado da PUC solicitando minhas fotos para que fossem anexadas ao processo como prova. Mandei às favas. Meses depois, chega uma intimação: eles abriram contra mim um processo chamado “ação de exibição”. O parágrafo da reportagem da Folha ao lado resume um pouco a história. Uma das fotos publicadas mostrava um aluno arrombando a porta com um pé de cabra, mas seu rosto não aparecia. Como a foto foi publicada em formato quadrado, a PUC imaginou que o corte teria sido feito na edição para poupá-lo.

Jornal da PUC feito por alunos de jornalismo, nov/1989.

Jornal da PUC com as minhas fotos, nov/1989.

Procurei uma boa advogada que fez a seguinte sugestão: “Simples, você diz que jogou fora os negativos”. Para mim não era simples. Eu queria garantir o direito de decidir como minhas imagens seriam ou não usadas. E a briga não deixava de ser excitante para um estudante de jornalismo cabeludo que ainda tinha marcas de espinha no rosto. Comecei a receber apoios de todos os lados, alunos de outras universidades se posicionaram, o Sindicado dos Jornalistas antecipou meu registro profissional, já que, durante o processo, a PUC não me permitiu sequer participar da colação de grau. A União dos Fotógrafos de São Paulo (Iatã Canabrava era o presidente) também ofereceu suporte, e recebi muitos recados solidários de colegas da imprensa. Daí surgiu a matéria no caderno de Educação da Folha sobre movimento estudantil na PUC e os processos movidos pela Universidade.

A audiência aconteceu quase um ano depois da invasão da reitoria. O advogado da PUC fez um discurso inflamado sobre a necessidade de preservar o patrimônio de uma instituição de ensino tradicional, mantida pela Igreja. O juiz foi pragmático. Disse que o caso parecia simples e que gostaria de me ouvir. Perguntou se eu havia participado do movimento (ninguém é obrigado a produzir prova contra si). Não era essa a questão. Eu também desfilei meu discurso dramático: imagine um ditador requisitando fotos da imprensa para perseguir subversivos; empresas fazendo o mesmo para identificar grevistas; grupos de extermínio identificando seus inimigos. Fotógrafo não é dedo-duro, uma coisa dessas poderia destruir a profissão! O advogado da PUC disse e o juiz concordou que nada disso estava em discussão. Com o rumo das perguntas do juiz, eu senti que ia perder.

Comecei a dizer coisas do tipo: “mas e os direitos autorais, e a lei de imprensa?!” Minha advogada me interrompeu e disse exatamente assim: “você me deixa trabalhar?” Foi a vez dela fazer seus malabarismos retóricos. Argumentou que esse processo não permitia especular sobre provas possíveis, isto é, a PUC só poderia exigir evidências que sabia existir, portanto, deveria especificar exatamente quais imagens estava solicitando. Com isso, ela conseguiu limitar a demanda às três únicas fotos que eram conhecidas, o que evitou que outros alunos fossem comprometidos. As discussões se estenderam por duas horas. O acordo assinado me garantia o direito de permanecer com os negativos, mas exigia que eu ampliasse as fotos no laboratório da PUC, na presença do advogado. Ainda conseguimos que a PUC pagasse uma pequena indenização por uma informação falsa na petição, sobre um pagamento prévio que alegaram ter feito para que eu fotografasse o episódio.

Houve um recesso enquanto tive que buscar os negativos em minha casa para conferência. Quando apresentei os três fotogramas, o advogado tentou desfazer o acordo: a foto do arrombamento não mostrava o rosto do aluno, o corte tinha sido feito na largura, não na altura. Claro que sabíamos disso, até o jornal da PUC sabia, mas o advogado não. O juiz manteve o acordo e encerrou o caso.

Restava uma preocupação. Uma segunda foto que seria entregue, feita dentro da reitoria ocupada, mostrava o rosto desse mesmo aluno e, por conta da roupa, um microfone no bolso e um botton na camiseta, era possível identificá-lo na cena do arrombamento. Minha advogada garantiu que isso jamais seria aceito como prova, mas a emoção se estendeu mais um pouco.

No dia combinado, fui à PUC fazer as ampliações. Foi cinematográfico. Com medo que houvesse manifestações de alunos, o advogado isolou a área e colocou seguranças na porta. Mas aí vem a parte mais divertida, graças a uma sugestão dada por um ex-laboratorista da própria PUC: um fixador batizado com a ajuda do velho “Formulário Fotográfico” da Editora Iris deixou um cheiro insuportável de amoníaco no laboratório. Eu fui devidamente paramentado com máscara e luvas. Depois de alguns minutos, o advogado preferiu sair. Uma queimadinha aqui outra ali, e ninguém seria reconhecido. Os processos foram arquivados. A história do laboratório virou piada entre alunos e funcionários.

Deixando de lado minha aventura pessoal, duas questões para pensar:

A atual lei do direito autoral emperra vários usos culturais das obras, mas não impede seu uso judicial mesmo contra a vontade do autor. Diz o texto: “Não constitui ofensa aos direitos autorais (…) a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa”.

A Lei de Imprensa protege o jornalista em situações análogas: “será (…) assegurado e respeitado o sigilo quanto às fontes ou origem de informações recebidas ou recolhidas por jornalistas, radiorrepórteres ou comentaristas”. Ou seja, se você entrevista alguém que é considerado criminoso, se tem anotações ou gravações, nada o obriga a disponibilizar seus registros e informações à justiça. Mas essa lei ignora a fotografia: se você fotografou um acusado, pode ver o resultado de seu trabalho ser colocado à serviço da caguetagem.


Imagem, memória e coerência

Dzi Croquettes

Dzi Croquettes

Esta semana assisti a dois documentários: Dzi Croquettes e Uma noite em 67. Para mim, uma experiência visceral, pois participei ativamente desses dois momentos históricos. Históricos? Sim, pensei muito para assumir isto, mas é inevitável perceber que o tempo passou. Uma noite em 67, centra-se no Festival de Música da TV Record de 1967, num momento em que Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Roberto Carlos e Sergio Ricardo disputavam o prêmio de melhor música do festival. Já Dzi Croquettes revela como este grupo de 13 homens a partir de 1973 perturbou não só a ditadura, mas incluiu e trouxe a discussão da contracultura para o Brasil ao colocar em cheque as crenças consolidadas sobre família, sexualidade, religiosidade e política.

http://www.youtube.com/watch?v=kQVo7h3M-2E&feature=results_main&playnext=1&list=PLF1562C3837619014

Mas, o que basicamente me interessa discutir é a importância das imagens técnicas para a recuperação da memória e sua força inquestionável enquanto documento histórico. Os documentários assistidos ganham em expressividade graças às essas imagens gravadas pela fotografia, pelo cinema e pela televisão. Não fossem esses registros que ficaram arquivados durante décadas, as novas gerações não poderiam experimentar o frescor libertário desses dois momentos significativos para a história recente do país.

Em seu famoso On Photography, Susan Sontag escreveu que “a fotografia é a guinada essencial na história da percepção. É difícil imaginar um mundo sem imagens, elas ficaram cada vez mais essenciais”. As últimas experiências do cinema documental, particularmente no Brasil, estão centradas em imagens de arquivo, de toda ordem, e tem nos brindado com momentos de êxtase ao reavivar e resignificar informações que ficaram esquecidas durante longos anos. Isso mostra que estamos procurando o passado para entender melhor o presente.

Dzi Croquettes

Dzi Croquettes

As imagens dos documentários acima citados foram resgatadas da televisão, do cinema e da fotografia. Para lembrar alguns fotógrafos podemos citar Madalena Schwartz (Dzi Croquettes), David Zingg, Jean Solari, entre outros que registraram os movimentos da MBP do período. É incrível como estas imagens estão indissoluvelmente associadas à nossa vida cotidiana, e é isso que nos possibilita compreendê-las como instrumentos de conhecimento e de libertação. Quando as vemos hoje, com admiração e certo fascínio, algumas questões merecem reflexão. Afinal, o registro e a conservação desse material, seja pelas empresas ou pelos artistas, representam a necessidade que temos de preservar nossa existência.

Vilém Flusser defende a idéia que nós humanos, criamos a comunicação porque somos o único animal que tem consciência da morte e também porque sabendo disso, para evitarmos a solidão, criamos artifícios que ajudam a prolongar nossa existência na vida dos outros. Ou seja, a comunicação humana é um processo artificial e as máquinas semióticas (de produção sígnica) são responsáveis pelas imagens que gravamos cotidianamente para em algum momento, por exemplo para quando quisermos olhar o que fomos. Basta recuperar o que foi registrado. Lembro-me de uma fala intuitiva do grande fotógrafo José Medeiros: “o que vemos é o que somos; e o que somos é aquilo que vemos”.

Mas quando se trata de resgatar um período de intolerância política, um momento em que o Brasil vivia uma ditadura militar sem precedentes em nossa história, fica mais difícil encontrar disponível algum material de relevância estética e política para as novas gerações. O que podemos ver nos documentários e nas suas granuladas imagens históricas projetadas na tela do cinema é que aquelas informações arquivadas e guardadas estavam disponíveis na esperança de que alguém pudesse, a qualquer momento, reorganizá-las numa nova informação. Para evitar seu esquecimento, aparecem de tempos em tempos esses novos olhares que trazem novas sintaxes que, ao serem compartilhadas publicamente, recuperam sua importância e sua potência revolucionária.

Na verdade, podemos inferir que a história vista por imagens é mais amigável para o conhecimento. É exatamente essa idéia que Flusser defendia há mais de trinta anos quando afirmava que nossa civilização é das imagens, denominada por ele como pós-histórica. No caso dos documentários, os arquivos das imagens resignificados permitem emergir uma consciência histórica e crítica. Com ela, aqueles acontecimentos tornaram possível reativar a memória de alguns e informar gerações que sequer imaginavam a quantidade e a qualidade dos detalhes da nossa história.

A ética da civilização exige a árdua tarefa de preservar a memória, que para alguns sempre pode parecer desconfortável. Uma coisa é reverenciar despudoradamente a memória, outra coisa é sua vivência e sua politização. Talvez hoje o verdadeiro problema da civilização seja a responsabilidade da preservação da memória, que contrariamente quer viver esquecendo, como ordena a mídia e os apelos da contemporaneidade. Mas, como escreveu Luis Buñuel em seu livro Meu Último Suspiro, “uma vida sem memória não seria uma vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de exprimir-se não seria uma inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada.”

Não sabemos hoje como trataremos os gigantescos arquivos de imagens que estamos selecionando e produzindo. O exercício de voltar para nossas imagens é mais ligeiro e menos freqüente que antes, mas o mais importante é olharmos para frente com a certeza de que nosso tempo está gravado e de que nosso futuro estará garantido por aquilo que produzimos.

“Uma arte que tem vida não reproduz o passado; ela dá continuidade a eles” – Rodin.


Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte II

Depositamos sobre a fotografia uma confiança exagerada. Como resposta, muitas teorias se voltaram contra antigos conceitos que pareciam impedir uma visão mais crítica sobre o meio. Mas, afirmada tal consciência sobre os limites da fotografia, é possível fazer as pazes com um vocabulário que, usado de modo mais preciso, pode nos ser novamente úteis. No primeiro post dessa série, tentamos resgatar as noções de “realidade”, “representação da realidade” e “realismo”. Para os que chegaram agora, fica o convite. Desta vez, recolocamos outros quatro conceitos: analogia, mimesis, verossimilhança e objetividade.

Dr. Rodman, Cirurgia, Filadelfia, 1863

Dr. Rodman, Cirurgia, Filadelfia, 1863

Analogia: a fotografia é análoga ao real? Analogia pode ser entendida como semelhança ou comparação. No campo de uma Semiologia, os teóricos já brigavam nos anos 70 para decidir se a fotografia e o cinema produziam ou não analogia com a realidade. A questão também era tomada de modo polarizado: essas imagens são idênticas ou totalmente diferentes daquelas que vemos com os olhos? Ora, quando se diz que algo é semelhante, isso já implica reconhecer alguma distinção entre o que está sendo comparado. Um desses semiólgos, Cristian Metz, num artigo de 1970 (“Além da Analogia”), já nos convidava a resolver a questão em termos mais sutis, pensando em diferentes “graus de analogia” que a imagem poderia manter com um objetos, mas convidando a perceber outras formas de referência que não passam apenas pela semelhança, mas que convivem com ela: conceitos, por exemplo, não tem forma física e não são imitáveis, mas podem ser representados pela imagem. Os adeptos da semiótica peirceana, fortes no Brasil, também denunciaram o caráter convencional da fotografia, desbancando sua pretensão analógica. Hoje, está mais do que claro que, em termos pragmáticos, um signo pode ser icônico (produzir semelhança com o objeto), indicial (ter conexão física com o objeto) e simbólico (relacionado ao objeto por uma convenção) ao mesmo tempo. Isso já bastaria para que o problema fosse colocado com menos radicalidades. Mas a questão poderia ter se resolvido com um breve olhar sobre os clássicos. Aristóteles usa o termo “analogon” no sentido matemático euclidiano, como sinônimo de proporção, para explicar o funcionamento da metáfora: se A está para B, como C está para D, A pode ser substituído por C numa sentença poética. No exemplo dele: “a taça é para Dionísio o que o escudo é para Ares, assim o poeta dirá da taça que é o escudo de Dionísio” (Poética, XXI). Ou seja, dizer que A é análogo (proporcional) a C é bem diferente de dizer que A é igual a C. A metáfora exige semelhança, mas exige também diferença entre as partes envolvidas. Ela simplesmente não funciona com sinônimos: “a fé é uma rocha” é uma metáfora, “a pedra é uma rocha” jamais será. Mas voltando ao nosso território, é Barthes quem deixa os espíritos armados, quando diz que a fotografia é um “análogon perfeito”, num texto de 1961. Dito assim, fica difícil defender. Poderíamos imaginar que, sendo Barthes um profundo conhecedor de Aristóteles, ele quis apenas falar de um alto poder metafórico da fotografia. Não é preciso forçar a barra. O que cabe lembrar em sua defesa é que, em “A câmara clara”, ele permanece um “realista” (ver verbete no post anterior), não abre mão da força de presença da realidade, mas coloca a questão com muito muito mais cuidado (e poesia). Outro autor mais jovem e pouco lido entre nós, Jean-Marie Schaeffer (de “A imagem precária”), também volta a defender com muita clareza que a analogia ainda é, em termos pragmáticos, o que melhor define nossa relação com as fotografias. Como ele diz, não uma analogia entre a fotografia e a realidade em si, que é muito mais complexa, mas entre a fotografia e uma certa forma de perceber visualmente essa realidade. Enfim, o que vale resguardar é que ser análogo nada tem a ver com ser idêntico.

Mimesis / Verossimilhança: a fotografia é mimética? Mimesis e verossimilhança precisam ser discutidas juntas. Traduzindo literalmente, mimesis quer dizer imitação. Já quanto à verossimilhança, ficamos tentados a entender como “semelhança com a verdade”, mas isso é totalmente insuficiente. De novo, a Poética de Aristóteles… Para ele, arte (techné) é imitação (mimemis), mas num sentido peculiar. Ele diz: “está claro (…) que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas que poderiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (Poética, IX). Isso quer dizer que, quando o poeta produz a mimesis não repete uma ação, constrói uma ação potencial respeitando certas exigências. Verossimilhança é uma das condições de existência dessa imitação poética. Umexemplo: quando o Hulk fica forte e verde, estamos diante de algo verossímil? Se a história está bem contada, sem dúvida. Não porque na nossa natureza existam pessoas assim, mas porque essa ação é coerente com a natureza intrínseca à narrativa. Ou seja, se a história cria condições para que isso aconteça, é verossímil. Alguns saltos dos filmes de kung-fu podem não ser verossímeis, mas o verde do Hulk sim. Então, verossimilhança é uma qualidade da obra inventiva que, sem repetir, sem reproduzir a natureza cotidiana, constrói uma outra tão coerente quanto ela. Sendo assim, vejam que interessante: a mais radical das “fotografias construídas” pode ser perfeitamente verossímil, porque mostra com coerência o mundo que inventa.

Objetividade: se por objetividade entendemos a possibilidade de eliminar de toda subjetividade, então, ela não existe em nossas relações com as coisas. Portanto, não existe na fotografia. Até é possível o exercício de resgatar sutilezas. Quando a ciência fala em conhecer algo, supõe existir um sujeito desse conhecimento, eu, e um objeto, aquilo a que o conhecimento visa. O resultado desse processo tem algo de subjetivo, porque está determinado por predisposições minhas (gostos, valores culturais, morais etc.). Mas se aceitamos o fato de que o objeto manifesta algo de si, se determina em parte esse conhecimento, poderíamos bem falar num “certo grau de objetividade”. No meu Dicionário de Filosofia (Nicola Abbagnano), talvez para evitar problemas com a tão desgastada noção de objetividade, esse reconhecimento da existência do objeto aparece denominada como “objetivismo”. Peirce, por exemplo, reconhece perfeitamente a possibilidade de uma determinação do objeto representado sobre o signo, sobretudo (não apenas mas) naquele tipo que define como “índice”, que é fisicamente afetado pelo objeto. Mas temos que admitir que foi necessário bombardear a ideia de objetividade seja para reivindicar maior consciência sobre os valores culturais e estéticos implicados em toda representação (como a fotografia), seja para construir uma crítica às pretensões da ciência positivista. O problema é que, para derrubar a crença nessa objetividade, caímos às vezes numa espécie de culto egocêntrico à subjetividade, em que as justificativas para todas as coisas se esgotam no sujeito (aquela história do “cada um é cada um”, “cada um com seu cada qual”, “vai da pessoa”…). Isso tem sido chamado de relativismo e, para alguns filósofos (L. F. Pondé), é o grande problema desta virada de milênio. Quando somos convidados a interpretar uma obra de arte, sabendo que não há objetividade, ficamos sempre tentados a dizer: “é subjetivo!”. Essa é a melhor forma de fugir da discussão, de não dizer coisa alguma. Falamos isso como se todo sentido da obra viesse de dentro de nós, como se não houvesse um autor, uma técnica, uma cultura fora de nós articulando também a matéria e os sentidos. Se cada um pudesse ver o que quisesse onde quisesse, não precisariamos mais ir ao museu, poderíamos olhar para a parede branca nosso quarto e ver Klee, Chagal, Robert Frank ou Mario Cravo Neto… Se recusamos a ideia de objetividade, melhor seria então visar uma “intersubjetividade”, algo que é humano, cultural, nada objetivo, mas que não inviabiliza o diálogo com algo fora do indivíduo. Afinal, a “comunicação” existe porque temos coisas em “comum”, porque os sentidos produzidos podem ser negociados, podem ser “coletivos”. Então, uma imagem não diz uma mesma coisa para todo mundo, mas o que diz pode ser interpretado, debatido e transmitido, senão com consenso, pelo menos com uma coerência compartilhável.

Num post futuro, e para encerrar a série, eu ainda gostaria de discutir o conceito de “virtual”. Ao contrário dos que foram apresentados até aqui, esse conceito tem sido alvo de forte tietagem, o que pode ser igualmente mutilante.


Luiz Braga – ruptura e contemplação

Luiz Braga é um fotógrafo diferenciado dentro da produção visual contemporânea brasileira. Primeiro, porque basicamente trabalha apenas na sua cidade, Belém, e no entorno; e depois, porque ao longo de mais de trinta anos, desenvolveu uma fotografia com características próprias, totalmente diversas daquela produzida em outras regiões do país. Suas raízes e seu conhecimento da cidade viabilizaram uma fotografia marcante, centrada na cor e na luz, elementos determinantes na construção de sua sintaxe. Ele acredita que o território do olhar é o seu espaço interior e isto potencializa sua fotografia como um esforço constante de expandir a imaginação e ampliar os seus limites.

Luiz Braga

Luiz Braga

A exposição Ensaio – Estrada Nova S/N, no Espaço Cultural Porto Seguro, traz especificamente os diferentes aspectos da cidade de Belém e da Estrada Nova, uma de suas vias públicas. São retratos e paisagens domésticas que remontam o olhar intimista e minimalista que Luiz Braga confere à sua fotografia. A edição das imagens abrange mais de três décadas de produção e evidencia que não se trata de um olhar distanciado, mas sim um profundo conhecedor do ambiente.

O que podemos inferir de imediato é que o caminhar pela cidade pode ser associado à memória e essa paisagem pode ser convertida em fotografia. Luiz Braga tem um olhar delicado que enfrenta o tempo todo o desafio de fugir do senso comum, para subverter a visualidade padronizada da região amazônica. Como ninguém, ele consegue transformar os ambientes ordinários através de seu olhar extraordinário. Sua fotografia está baseada na idéia de ruptura e repouso.

Luiz Braga

Luiz Braga

A ruptura fica mais evidente por conta da sua luminosidade especial. Ele trabalha a luz natural equatorial em harmonia com as fontes de luzes artificiais que, simultaneamente, estão presentes em suas fotografias. Luzes fosforescentes e fluorescentes dos espaços domésticos, e luzes de mercúrio da iluminação pública. Uma hibridização luminosa que se tornou uma espécie de marca registrada do seu trabalho, ou seja, ele cria uma lógica desconcertante que nos provoca uma incômoda sensação e nos faz indagar sobre a questão das fronteiras entre realidade e ficção.

Essas cores de Luiz Braga, praticamente impossíveis de serem registradas pelo olho humano é que desencadeiam estranhas emoções, pois se trata de uma luz misteriosa que estimula nossa imaginação. São instantes atemporais plasmados na inquietação da solidão da luz crepuscular. Podemos entender sua fotografia como exercícios de admiração do cotidiano popular, presente no centro e nas periferias de Belém.

O escritor Milton Hatoum ao comentar o trabalho de Luiz Braga lembra que “é esse cotidiano humilde que a lente de Luiz espreita com sutileza, fixando os gestos e atitudes de um pequeno mundo que ainda vive num tempo peculiar, não seccionado pela urgência. São imagens que nos remetem a outro tempo: o da demora e o do prazer na demora. É esse outro Tempo que nos convida a admirar sem pressa as imagens fisgadas no sonho mínimo de cada noite ou no breve devaneio de cada dia”.

A naturalidade de quem se reconhece nos personagens e nas paisagens que fotografa decorre de sua convivência profunda e diária com esse mundo que vemos em suas fotografias; na verdade, fragmentos de um todo que se completam em nossa imaginação. Isso é que possibilita seu olhar particular e poético. Poético no sentido de ser transgressor no momento da criação. Também é essa experiência que o faz trafegar com liberdade entre a objetividade do mundo visível e a possibilidade de criar abstrações a partir dele.

Luiz Braga

Luiz Braga

Outra característica da fotografia de Luiz Braga é que nos faz sentir abertos à surpresa de uma presença que se manifesta, ainda que escape às articulações possíveis da nossa memória. Em cada fotografia uma série de valores indicativos de uma cultura material, muitas vezes resignificada, que permite essa aparente proximidade que estabelecemos com as imagens.

Luiz Braga tem sua fotografia centrada em Belém. Raramente temos a oportunidade de ter contato com um trabalho de tamanha coerência e dedicação. Por isso mesmo é que ele vive transformando as artes visuais, pois consegue criar novas imagens e pesquisar novas possibilidades de expressão olhando para seu próprio cotidiano. Como Tolstoi imaginava – “fale de sua aldeia e seja universal” – Luiz Braga produz uma fotografia a partir de sua cidade, que guarda sua história e sua memória, e constantemente reinventa seu cotidiano e as artes do seu fazer com a astúcia sutil do criador e com táticas que inspiram novos saberes, que surpreendem a arte contemporânea.

***

A exposição Ensaio – Estrada Nova S/N, até 12 de setembro, no Espaço Cultural Porto Seguro, Avenida Rio Branco, 1489, São Paulo, de terça a domingo, das 10 às 17 horas.


Henri Cartier-Bresson - O século moderno

Capa do livro

Capa do livro

A editora Cosac Naify, num raro senso de oportunidade, publica o livro Henri Cartier-Bresson: o século moderno, simultaneamente à exposição que está em exibição no Museu de Arte Moderna de Nova York neste momento, dando nova visibilidade à importância da parceria estabelecida entre a editora e o MOMA.

O livro, organização de Peter Galassi, que também assina a curadoria da mostra, permite-nos ter acesso não apenas às imagens de Cartier-Bresson (1908 – 2004), um dos nomes mais emblemáticos da fotografia produzida no século passado, como possibilita ampliar significativamente sua esfera de atuação com informações inéditas de sua trajetória. Cartier-Bresson também foi cineasta, ator, editor, diretor de documentários e de filmes de publicidade, pintor e desenhista, entre muitas outras atividades desenvolvidas ao longo de seus 96 anos de idade.

O livro é ambicioso, pois quem imaginava conhecer Cartier-Bresson vai se deparar com uma quantidade enorme de novidades sobre sua vida, seus percursos e sua extensa obra. Com a abertura total dos arquivos, agora reunidos na Fundação Cartier-Bresson pela viúva Martine Franck, Peter Galassi soube articular uma enormidade de dados e valorizá-los com a finalidade de trazer à luz um conjunto expressivo de informações que seguramente abrirá novas possibilidades de investigação para outros críticos e pesquisadores.

Cartier-Bresson, Coffee Shop, Bosnia and Hercegovina, 1965

Cartier-Bresson, Coffee Shop, Bosnia and Hercegovina, 1965

Enfatiza sua ascendência familiar burguesa, sua relação com o ideário do Partido Comunista dos anos 20 e 30 que sonhava com uma sociedade mais igualitária, sua participação no movimento surrealista, seu engajamento em produzir informações sobre as colônias francesas e sobre a Ásia, sua conexão com os fotógrafos de seu tempo e, em particular, sua participação na Agência Magnum. Também valoriza seu relacionamento com os editores das revistas e jornais em que prestava serviços, e sua proximidade com Robert Capa – que foi decisivo para a carreira de Bresson e responsável por ele assumir-se como fotojornalista, já que não queria ser rotulado apenas como fotógrafo surrealista. Esse estímulo foi fundamental para seus inúmeros deslocamentos em busca de uma fotografia documental de qualidade e diferenciada.

Sua participação na Agência Magnum não significou abandonar a esfera artística coerente em favor de um trabalho estranho, pois para ele ser um fotojornalista significava ampliar sua atuação e ser também um diplomata, viajante, repórter e historiador. Para Peter Galassi, essa trajetória como fotojornalista é que se torna a essência do seu trabalho no pós-guerra – “a mais completa, variada, abrangente e convincente descrição do século moderno que um fotógrafo já nos deu”.

Cartier-Bresson, Simone de Beauvoir, Paris, 1946

Cartier-Bresson, Simone de Beauvoir, Paris, 1946

Além de defender a tese de que Cartier-Bresson, desde o início dos anos 1930, ajudou a definir o modernismo fotográfico, Galassi também mostra que ele soube como ninguém transitar com liberdade tanto pela fotografia artística quanto pelas publicações nas revistas ilustradas. O livro reflete na realidade o projeto curatorial e expositivo sobre a trajetória e a obra de Cartier-Bresson, dividido no texto crítico de apresentação em diferentes momentos – o fotógrafo, o prodígio, o artista, o idealista, o observador, o profissional e o historiador.

Daí sua temática ser a sociedade, a cultura e a civilização, pois para ele ser fotógrafo significava “envolver-se com a totalidade do mundo”. O livro também traz um quadro detalhado de como ele trabalhava – tanto sobre as especificações técnicas de câmeras e filmes, como a logística das viagens com seus colaboradores e os preciosos mapas desenhados por Adrian Kitzinger, que minuciosamente traçou todos os deslocamentos de Cartier-Bresson entre 1930 e 1960.

Muito já se sabia sobre Cartier-Bresson, mas poucos perceberam que de todos os grandes fotógrafos da primeira metade do século passado ele foi um dos poucos que floresceu e consolidou uma obra fotográfica após a Segunda Guerra. Peter Galassi nos mostra as estratégias que Bresson elaborou para continuar viajando, produzindo e publicando seu material nas revistas e jornais mais importantes do mundo, e iniciando seu circuito de exposições.  Por exemplo, sua primeira individual foi realizada em Nova York, em 1947, depois em Londres, em 1952. Já em Paris, isso só aconteceu em 1955.

Cartier-Bresson, Houston, Texas, 1957

Cartier-Bresson, Houston, Texas, 1957

Outra novidade do livro é tornar público algumas cópias contato, procedimento de produzir um copião para selecionar as melhores tomadas. No caso de Bresson avaliado pelo autor, ao se deparar com as cópias contato, desvenda-se parcialmente o processo de criação e edição das imagens. Pode-se verificar o quanto ele era econômico em sua produção. Para cada assunto em particular, com raras exceções, ele realizava de cinco a dez fotogramas para em seguida de concentrar em outro tema. Cartier-Bresson tinha um espírito independente e empreendedor e isso foi determinante para desenvolver sua fotografia centrada numa inteligência rápida e intuitiva, associada à sua vasta e sofisticada cultura.

Essa perspicácia e determinação provam que Bresson estudava atentamente seu objeto antes de fotografar, e ver agora sua cópia contato também possibilita perceber seus movimentos em torno daquilo que lhe chamava a atenção. Enquanto não conseguia enquadrar o assunto à sua maneira, “dançava” em torno dele. É incrível nesses casos ter a dimensão exata de seu trabalho, tanto que Galassi salienta que ele disparava o obturador da câmera somente após haver “traduzido o assunto em imagem”.

Cartier-Bresson desenvolveu dois ensaios – Gandhi e Pequim – que se tornaram seus pilares de reputação profissional. Ele apreendeu e registrou apenas o que era importante, descartando do seu enquadramento o que era insignificante. Essa atitude é que permitiu seu reconhecimento junto às revistas ilustradas que buscavam fotografias que fossem síntese e tivessem clareza e transparência, indispensáveis para dar respeitabilidade ao material publicado.

Cartier-Bresson, Preparations for the Baris Dance, Ubud, Bali, Indonesia, 1949

Cartier-Bresson, Preparations for the Baris Dance, Ubud, Bali, Indonesia, 1949

Suas atividades extra fotografia, explicitadas neste livro, só se viabilizaram graças à meticulosa sistematização de guarda e registro estabelecida pelo fotógrafo ao longo de sua vida, que soube organizar seu material para agora tornar-se público. Peter Galassi  valorizou e ordenou cada informação encontrada de modo que chega a surpreender o leitor pela farta documentação acumulada por Cartier-Bresson. Claro que não esgotou o assunto, mas com certeza abriu caminhos que ainda poderão revelar muitas outras surpresas.

Os números são impressionantes: em 1976, ele ultrapassou o rolo de número 14 mil, somando mais de meio milhão de fotografias em três décadas de trabalho. Como atesta Peter Galassi, “o trabalho de Cartier-Bresson é extraordinário não necessariamente por sua amplitude geográfica e cultural, mas também por seu alcance histórico ao largo das vastas transformações do século moderno”. O livro Henry Cartier-Bresson: o século moderno, da Cosac Naify, traz ainda uma listagem cronológica dos jornais e revistas que publicaram as fotografias de Bresson em todo o mundo; uma expressiva listagem das principais exposições fotográficas e livros publicados; e uma selecionada bibliografia e filmografia do autor.

[As imagens de Cartier-Bresson foram retiradas da apresentação da exposição no site do MoMA]


Invisibilidades, recalques e revelações

Na semana passada, tivemos no Senac Consolação o evento Estética do (In)visível, com a presença de Evgen Bavcar. Ele realizou uma palestra e integrou a exposição do projeto Alfabetização Visual, coordenado por João Kulcsár, que envolve deficientes visuais num trabalho de arte-educação com fotografia. Participei também da programação num debate com Fernando Fogliano. A provocação era falar do “invisível na fotografia”,  aí vai (mais ou menos) o que foi a minha fala.

João Maia, Passado e Presente

João Maia, Passado e Presente


O acaso como espaço de descoberta de um olhar descentralizado

A fotografia está marcada por um potencial com o qual sua própria história lida um tanto mal: aperta-se um botão e uma imagem simplesmente “acontece”. Isso parece fazer da fotografia uma arte menor. Se eventualmente uma “a imagem acontece” é exatamente por sua complexidade: além das intenções de um indivíduo, um universo de outras determinações participam dessa experiência. Mas é difícil enxergá-las, porque foram recalcadas pelo desejo de afirmar na fotografia uma noção um tanto egocêntrica de autoria. Como isso ocorreu?

A primeira propaganda da fotografia, de fato, abusou ao prometer uma imagem feita exclusivamente pela natureza. Aqui, o próprio ser humano se tornou um aspecto invisível da técnica. Para compensar o estrago feito por esse discurso, partimos para um caminho radicalmente oposto: tentamos afirmar a total submissão da imagem à autoridade do olhar. Quando reivindicamos essa autoridade para o indivíduo, tornamos invisíveis os movimentos da natureza e o pensamento da coletividade que participam da técnica.

Não comecei a pensar sobre isso por causa de fotografias feitas por cegos, mas por causa de algumas imagens minhas. Muitas vezes me perguntavam sobre a razão que guiava algumas decisões no momento da tomada, e eu simplesmente não tinha o que dizer. Meu problema não era então a cegueira, mas a mudez que eu assumia diante dessas perguntas. Isso virou o meu mestrado, “A fotografia e o acaso”. E o que chamo de acaso é o próprio universo de determinações que cruzam as decisões de qualquer artista, situação particularmente desconfortável no caso da fotografia, por conta de seus traumas históricos.

Vale pontuar alguns desses aspectos recalcados na fotografia:

A natureza: por arrogância, definimos a técnica como submissão da natureza, cujas forças seriam colocadas a serviço do homem. Apesar dos riscos assumidos pelos primeiros discursos sobre a fotografia, a natureza ainda têm seu papel na construção da imagem. A fotografia não é feita apesar das propriedades dos materiais (da luz, da lente, da prata ou das células sensíveis…). A fotografia é feita com eles. Nenhuma matéria é neutra ou amorfa. Em qualquer arte, a pesquisa de materiais envolve uma espécie de jogo de perguntas e respostas feito com a natureza, para descobrir o que é possível inventar por meio das qualidades que ela nos empresta.

O mundo diante da câmera: mesmo para a mais construída das fotografias, o mundo que se coloca diante da câmera também não uma massa disforme que aguarda a manipulação do artista para ganhar algum sentido. Em particular, a fotografia lida com coisas que, antes da tomada, tem seu próprios movimentos e suas histórias, além daquelas que a fotografia lhes acrescenta. Nesse sentido, o fotografo é uma espécie de bricoleur que faz convergir sua intenção com intenções preexistentes, que se apropria em seu discurso de sentidos já construídos no mundo.

A cultura: a forma e o modo de funcionamento de um objeto técnico (seja a câmera, o pincel, o arco e flecha) são moldados por expectativas e gestos dados ao longo de toda uma história. Se, quando apertamos o botão, uma imagem acontece é exatamente porque as possibilidades do aparelho foram orientadas para a produção dessa ordem. Nesse sentido, por mais que a decisão final pertença a um indivíduo, a coletividade sempre fala através de seu gesto. Curioso o tom de denúncia que assumimos quando se trata de lembrar que a fotografia é culturalmente codificada, como se fosse possível uma arte livre de parâmetros.

Particularmente, a obra de Bavcar ainda faz pensar em outras determinações que participam da fotografia:

O corpo: em grego, aesthesis diz é conhecimento permitido pelos sentidos do corpo, qualquer um deles, ou todos eles. A primazia do olhar, sentido que melhor responde à nosso desejo de racionalização, parece almejar uma anestesia (anulação da aesthesis) dos outros sentidos. Mesmo a pintura pode ser pensada como uma arte mais que visual (W. Mitchell: No existen médios visuales). A action painting sublinhou o caráter tátil e performático que toda pintura talvez tenha; Duchamp rompeu com uma tradição da arte que chamou de olfativa (pelo cheiro da terebentina que os pintores usam). Parte desse dialogo que um autor tem com os materiais, com a cultura, com o mundo é mediado por sentidos que um pouco arbitrariamente são resumidos sob o nome de olhar (o que Bavcar chamou de oculocentrismo).

A vida própria das imagens: assim como o mundo diante da câmera tem uma história, a imagem que ela produz terá a sua. Se um artista dominasse totalmente sua imagem, uma vez pronta, ele não precisaria retornar a ela. Incomoda pensar como um fotografo cego vê suas imagens? Podemos inverter o problema:  será que algum artista viu um dia a totalidade de suas imagens? Uma obra sempre estará em dialogo com outros tantos discursos que a envolvem. É só por isso que uma imagem ainda pode provocar surpresa, mesmo quando já foi vista tantas vezes, mesmo para aquele que a produziu.

Quando se trata de pensar a fotografia feita por um cego, algumas questões são recorrentes: como ele pode ter o controle sobre a imagem que produz? Mais ainda, como ele pode checar se a imagem produzida coincide com suas intuições? Em sua fala, Bavcar deixou claro que seu trabalho é mais o exercício de uma descoberta do que de uma certeza. E quando perguntado se a imagem que lhe descreviam coincidia com a que ele havia imaginado, a resposta foi curta:  jamais! É uma questão menor saber como um cego pode alcançar em seu trabalho o mesmo nível de controle que tem um fotografo vidente. A grande questão é como qualquer fotografo tem aí uma oportunidade de reaprender algo sobre as tantas determinações que são recalcadas pelo pretenso controle sobre suas imagens.

Evgen Bavcar, Imagem Quebrada.

Evgen Bavcar, Imagem Quebrada.

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Para quem ainda não passou por lá, sugiro uma visita ao Dobras Visuais, onde Lívia Aquino traz também uma reflexão sobre o trabalho de Bavcar.

No blog do Fórum Latinoamericano de Fotografia, comentamos TCC da mexicana Carolina Sepúlveda, que discute a fotografia feita por deficientes visuais.

A exposição “Estética do (in)visível” segue até o dia 17/09/10, no Senac Lapa-Scipião (R. Scipião, 67 – Lapa).


A fotografia segundo Jesus Cristo

Nesse fim de semana, tivemos o Intercom em Caixas do Sul. Houve algumas ausências,  como Fernando de Tacca, Cláudia Linhares e meu parceiro Rubens Fernandes Junior. Em compensação, chegaram novos integrantes, como Eduardo Queiroga e Lívia Aquino. O trabalho que apresentei nasceu de um post para o Icônica, que nunca foi publicado porque ficou grande (e talvez estranho) demais. Aí vai um resumo:

Acheiropoiesis: sobrevivência do valor de culto na imagem técnica

O cristianismo passou séculos discutindo se era ou não legítimo representar Deus por meio da imagem. Dentre toda a arte que produziu, um tipo de imagem-relíquia parecia mais competente do que as outras para essa tarefa, aquela que foi chamada de “acheiropoietos” (ou “achiropita”, numa grafia italiana). Literalmente, essa palavra grega se refere a uma imagem que não foi feita pela mão do homem (a=não; kheir=mão; poiesis=fazer). Ou seja, trata-se a uma representação que supostamente emana de Deus, impregnada de sua própria substância.

Representação do rei Abgar recebendo um acheiropoietos de Cristo, pintura do séc. X.

Representação do rei Abgar recebendo um acheiropoietos de Cristo, pintura do séc. X.

Algumas lendas cristãs apontam para essa situação: até desaparecer no final do século XVIII, cultuava-se na Europa uma imagem que Cristo teria feito aparecer num tecido para ser enviada ao Rei Abgar de Edessa, já que seu brilho ofuscava a visão do pintor que deveria retratá-lo; pelo menos duas imagens na Itália (uma no Vaticano e outra em Manoppello) são reivindicadas por alguns de seus devotos com sendo o pano que Verônica usou para enxugar o rosto de Cristo no Calvário (há a hipótese de que o nome Verônica seja oriundo de “Vero Icon”: verdadeira imagem); por fim, uma das mais comoventes relíquias do cristianimso, o Sudário de Turim, mortalha que teria envolvido Cristo em seu sepultamento, cuja imagem teria sido revelada com mais clareza, graças a uma fotografia do século XIX.

Não é difícil intuir a ligação entre a fotografia e esse tipo de imagem sagrada, pois há uma grande proximidade entre o que os teólogos medievais chamavam de “imagem consubstancial” e o que nossa semiótica contemporânea chama de “índice”. Barthes foi provavelmente o primeiro a explicitar essa relação:

“A fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia, mergulhe na substância religiosa de que sou forjado; nada a fazer: a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição: não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo impregnada no Sudário, isto é, que ela não é feita pela mão do homem, acheiropoietos?” (A câmara clara).

Com inspiração em Barthes, um pequeno e denso texto de Georges Didi-Huberman, “O índice da chaga ausente. Monografia de uma mancha” (L’image ouverte), retoma a ligação entre o Sudário e a fotografia. A partir de Barthes e Didi-Huberman, Philippe Dubois também se aproxima desse tema no ensaio “O corpo e seus Fantasmas”(O ato fotográfico).

É claro que pensar a fotografia como “imagem não feita pela mão do homem” significa retomar um equívoco propagado desde o século XIX. Não é preciso voltar a isso. A questão que coloco é: quando buscamos sentir na fotografia a presença de uma “substância” emanada do objeto representado, não repetimos as mesmas expectativas que os cristãos depositam no acheiropoietos? Em outras palavras, será que não sobrevivem nos rituais que praticamos diante das imagens técnicas resíduos de um olhar místico aparentemente sepultado pela modernidade?

O que buscamos não é tanto um “significado” presente na fotografia, mas aquilo que Didi-Huberman chamou de “sintoma”, uma fissura que surge na imagem e que escapa às determinações culturais que normalmente o historiador da arte busca. No final das contas, alguns gestos são reafirmados pela própria ação que visava negá-los: com todas as rupturas trazidas pelo Renascimento, a perspectiva ainda traz para a pintura as expectativas de que a natureza ofereça um método para sua própria representação. Ou seja, o que se deseja ainda é uma imagem espontânea, e a fotografia (o “Lápis da Natureza”) é o ápice dessa busca, uma espécie de acheiropoiesis racionalizada.

Esse resíduo místico na fotografia sugere a sobrevivência de um valor de culto exatamente nessa imagem que, conforme Benjamin, parecia superá-lo. Mas é ele próprio quem nos fala da resistência da uma “aura” na fotografia, sobretudo em certos retratos, cujo caráter mágico nem mesmo a pintura é capaz de superar.

O Sudário de Turim é um lugar de encontro de uma potência religioso e uma potência científica. Mesmo para os mais devotos, as manchas trazidas por esse tecido nunca mostraram exatamente uma figuração de Cristo. Foi preciso aguardar que ele fosse fotografado por Secondo Pia, em 1898, para que se pudesse ver no negativo a imagem que hoje conhecemos do corpo de Cristo. Trata-se de uma dupla revelação, no sentido religioso e técnico ao mesmo tempo.

Negativo fotográfico do Sudário de Turim (1898), e autorretrato de Secondo Pia (1890).

Negativo fotográfico do Sudário de Turim (1898), e autorretrato de Secondo Pia (1890).

Nada disso explica o que é a fotografia. Mas talvez ajude a entender o desejo de “ressurreição” que ainda depositamos em algumas imagens que mobilizam nossos afetos.

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Em breve, devo publicar o texto completo na forma de artigo. Mas os trabalhos apresentados no Intercom 2010 podem ser encontrados no site do evento.


Revista Nacional

Sou um apaixonado por revistas. Tenho uma coleção das mais diversas. Do começo do século passado gosto da Kosmos, da Illustracao Brasileira, da Frou Frou, Brazil Magazine, entre outras revistas ilustradas que buscavam mostrar o Brasil do ponto de vista político, social e cultural. Depois disso guardo alguns exemplares da revista O Cruzeiro, a coleção da Revista S. Paulo, os primeiros cinco anos da revista Senhor e a coleção da Realidade. Ah, também tenho alguns exemplares da revista Bondinho. Além disso, as revistas especificas sobre fotografia.

Revista Nacional

Revista Nacional

Mas confesso: a Revista Nacional me deixou perplexo. Passei mal! Não só pela qualidade da apresentação, da direção de arte, dos textos e, claro, das fotografias. O que me estarreceu foi a coragem de produzir na mesma edição um volume tão surpreendente de informação, em tese, comercialmente inviável. Mas a parceria de J R Duran com os gráficos Burti mostra uma excelência de trabalho conjunto raro e, ate mesmo, inédito em nosso país. E é isso que nos deixa cada vez mais otimistas em relação à fotografia.

São 144 páginas super bem impressas no formato 30X36,5 cm e papel Novatech 170g. Contabilizei 99 páginas dedicadas à fotografia, 3 ao desenho e 32 ao texto, num fundo branco tão impecável que impressionam nossa visão e cria instantaneamente uma atmosfera diferenciada. Ou seja, 70% da revista são imagens que deixam em êxtase qualquer mortal apaixonado que tem a oportunidade de percorrê-las livremente. Uma experiência que permite perceber a coexistência harmoniosa entre texto e fotografia, entre mancha gráfica e informação, entre a tradição e o frescor da novidade.

J R Duran é um fotógrafo que persegue apaixonadamente seus projetos. A publicação tem uma pegada contemporânea, mas está apoiada em vivências editoriais bem sucedidas. E fácil constatar que não se trata de uma aventura, e sim projeto de longo prazo, ambicioso que pretende produzir em dez anos um volume de informação que será síntese da década que se inicia. Iniciativas como essa – a materialidade do trabalho impresso e disseminado – e que nos dão ânimo para acreditar que o futuro pode ser diferente do que propaga.

As fotografias selecionadas para esta edição tem as características do trabalho autoral de J R Duran. Os retratos concisos em seus planos fechados ou médios atraem nosso olhar e concentram nossa atenção; as mulheres, quase sempre fotografadas com seus segredos e sensualidade, mostram que é inútil sondar o abismo do mistério interior; a documentação do cotidiano indígena tem um tratamento clássico e inspirado; e São Paulo vista do alto, ganha ares de metrópole espetacularizada pelo olho educado e sensível do artista.

Enfim, a Revista Nacional promete ser uma experiência editorial que fará história na mídia impressa brasileira. A seleção impecável dos colaboradores, associada às fotografias e à direção de arte de J R Duran, e a ousadia gráfica Burti garantem que o desafio da continuidade está assegurado. Um projeto requintado, merecedor de todos os elogios e de todos os vivas.


Muita fotografia e vídeo na Bienal

Fui procurar saber o que haveria de fotografia na 29a Bienal de São Paulo: Guy Veloso, Jonathas de Andrade, Rochelle Costi, Rosangela Rennó, Miguel Rio Branco, Alice Miceli, Alfredo Jaar, Nan Goldin são nomes que consigo identificar na lista oficial de participantes. Certamente, há outros fotógrafos que não conheço, e artistas menos óbvios que eventualmente podem se aproximar dessa linguagem.

Guy Veloso. Da séire "Penitentes", que será mostrada na Bienal.

Guy Veloso. Da séire "Penitentes", que será mostrada na Bienal.

Já se insinuou que a intensa presença da fotografia e do vídeo nas Bienais coincidia com a escassez de obras consagradas e com o fim dos “núcleos históricos”, sintomas de um empobrecimento do evento. Mas é fácil constatar que essas linguagens conquistaram seu lugar nos espaços e debates dedicados à arte contemporânea em todo o mundo.

Poderíamos investir no argumento de que foram superados os preconceitos históricos que emperravam o reconhecimento da fotografia como forma legítima de arte. Mas vale a pena refletir sobre o que pode haver de verdadeiro por trás desse suposto “empobrecimento”. De verdadeiro, e não necessariamente de negativo.

Acredito que essa presença da fotografia tenha sim algo a ver com o desejo dos artistas e principalmente dos curadores de dialogar com a cultura de massa, de aproximar a arte de expressões que são familiares ao público, de oferecer alternativas para a ideia arcaica de “gênio”, de deslocar o valor do objeto para o conceito. Essas são várias formas de falar da mesma coisa: o embate que arte contemporânea estabelece com tudo aquilo “auratiza” a obra. Como percebeu Benjamin, coube exatamente à fotografia e ao cinema a tarefa de confrontar pela primeira vez a arte com essa questão, que foi também colocada por outros fenômenos tipicos do século XX, os ready mades, as tendências pop, a arte desmaterializada. Natural que a fotografia esteja presente no momento em que os artistas e curadores decidem aprofundar esse debate.

Ferreira Gullar publicou há alguns meses em sua coluna, na Folha de S. Paulo (“A pouca realidade”, 07/03/2010), uma crítica que aponta outra forma de empobrecimento, não do objeto artístico em si, mas do sentido que ele é capaz de produzir. O vilão é um tipo de fotografia, de cinema e de vídeo que ele imagina invadir o espaço da Bienal. Diz ele:

“Leio que a próxima Bienal de São Paulo será tomada por filmes, fotografias e videoinstalações. E não serão filmes de ficção, mas filmes que tratam da realidade política, econômica e social. Essa notícia veio ajustar-se a uma leitura que tenho feito do rumo tomado pelas artes plásticas, segundo a qual tudo o que nelas era fantasia foi substituído pela realidade. (…) Ao substituir as significações simbólicas pela exposição pura e simples dos fenômenos reais, abre-se mão da capacidade humana de criar um universo imaginário que, durante milênios, contribuiu para fazer de nós seres culturais, distintos dos demais seres vivos que, estes, sim, limitam-se à experiência do mundo material.”

Ele parte provalvelmente a uma reportagem de Silas Marti, publicada no mesmo jornal (25/01). Gullar retomou a discussão (“A pouca realidade 2”, 21/03), respondendo a uma manifestação da curadoria da Bienal que, segundo ele, concordava com sua “tese de que a arte existe porque a realidade não nos basta”. Mas a limitação de algumas linguagens lhe parece incontornável: “Se é assim, tanto melhor. Mas por que fazê-lo por meio do cinema se a Bienal é de artes plásticas?”

Interessante como o artigo de Gullar tem afinidades com a famosa crítica de Baudelaire ao Salon de 1859. Alguns trechos mais violentos contra a fotografia já são bem conhecidos, vejamos apenas o parágrafo final do texto:

“Dia a dia, a arte perde o respeito por si mesma, se prosterna diante da realidade exterior, e o pintor se torna cada vez mais inclinado a pintar, não o que sonha, mas o que vê. Entretanto, é uma felicidade sonhar, é uma glória exprimir o que se sonha, mas o que direi? Você ainda conhece essa felicidade? Afirmará o observador de boa fé que a invasão da fotografia e a grande loucura industrial não estejam ligadas a esse resultado deplorável? Será possível supor que um povo, cujos olhos se habituaram a considerar os resultados de uma ciência material como produtos do belo, não terá, ao largo de certo tempo, particularmente diminuída sua faculdade de julgar e de sentir o que há de mais etéreo e de mais imaterial?”

Esses são dois críticos e poetas respeitáveis, não podemos simplesmente desqualificar suas opiniões. O temor que manifestam tem fundamento: realidade e arte são coisas distintas. O que cabe é perguntar a que exatamente se dirigem suas críticas.

Que fotografia é essa que pode ser entendida como “exposição pura e simples dos fenômenos reais”? Esse sim foi um “sonho” que a ciência positivista produziu, e que a primeira propaganda da fotografia ingenuamente replicou.

O problema é muito mais um discurso equivocado sobre a fotografia do que uma escolha feita pelos artistas. A diferença é que, na época de Baudelaire, esse discurso era hegemônico, na de Gullar, se ainda sobrevive (ele dá exemplos no segundo texto), já não deveria ser levado tão a sério.

Se de fato a fotografia, o cinema e o video se fazem cada vez mais presentes nos espaços de arte é exatamente porque já se constatou o fracasso dessas linguagens como “reprodução do real”. Já não precisamos da retórica didática da “fotografia construída” para perceber que a mais documental das imagens não escapa da condição de “representação”.

Não encontramos em textos posteriores de Baudelaire manifestações contra a fotografia como essa de 1859. Ao contrário, sabemos da admiração e respeito que cultivou pelo trabalho de fotógrafos como Etienne Carjat e Nadar, que se tornaram seus amigos. Isso leva a crer que Baudelaire teve a oportunidade de vencer seus temores e de compreender melhor os potenciais da fotografia. É surpreendente ter que voltar ao assunto um século e meio depois.

Ninguém tem a obrigação de gostar da fotografia. Mas se é para questioná-la, que seja por aquilo que ela pode efetivamente ser. Não pela sua suposta coincidência com a realidade, coisa que, por mais que se tenha tentado, ela jamais alcançará.

***

Textos na íntegra:

A pouca realidade 1 e 2, de Ferreira Gullar

O público moderno e a fotografia, de Charles Baudelaire


História da fotografia à maneira de Dan Brown

Três posts abaixo, eu falava da sobrevivência de um “valor de culto” na fotografia, emprestando de Barthes e Didi-Huberman a comparação com o Sudário de Turim, como forma de expressar um aspecto misterioso e sagrado que existe em algumas fotos.

Zapeando a TV dias depois, parei num programa do Discovery Channel que falava extamente sobre o Sudário (na última experiência que tive com esse canal, aprendi muito sobre os possíveis resultados do duelo entre um urso polar e uma morsa). Nesses pseudo-documentários as coisas sempre adquirem um aspecto espetacular, com direito a encenações, simulações, infográficos, demonstrações em laboratório, um narrador com voz dramática, músicas de suspense, e cientistas dando depoimentos do tipo: “eu não podia acreditar no que estava vendo…!” O Sudário, que na mão daqueles pensadores era uma bela metáfora para pensar a fotografia, se torna aqui pretexto para especulações mirabolantes, com ares de teoria conspiratória. Em resumo, a tese deles é a seguinte:

Mesmo sendo evidente que Cristo passou longe daquele tecido, a imagem é feita com um realismo surpreendente e com uma técnica até hoje não desvendada. Aí vem a pergunta: qual gênio teria sido capaz de tal proeza? Quem, senão ele, Leonardo da Vinci! O documentário explica que a falsificação do sudário teria sido uma espécie de jogada de marketing dos Savoy, poderosa família italiana, com a colaboração secreta de Leonardo, pintor com certa vocação para a heresia. Desvendada a autoria, resta saber qual é a técnica misteriosa empregada. E adivinhem só… Daguerre, Talbot, Florence, Nièpce, não tem pra ninguém. Leonardo foi o verdadeiro inventor da fotografia. Conforme um tal Nicholas Allen é a de que ele teria aplicado uma solução de sulfato de prata sobre um tecido, devidamente exposto dentro de uma câmera escura. À frente da câmera, um cadáver provavelmente servia de modelo. A coisa não pára por aí. Existe certa desproporção do rosto em relação ao corpo representado no Sudário. A conclusão é a de que o rosto teria sido gravado numa exposição separada. Comparações com algumas pinturas sugerem, na leitura dos cientistas consultados, que quele rosto de Cristo era, na verdade, um autorretrato de Leonardo. Parece um roteiro saído de um livro de Dan Brown (de “O código Da Vinci”), que certamente inspira o documentário.

Fragmento de “O manto de Da Vinci”, Discovery Channel, 2006.

Um breve olhar para a história da fotografia já evidenciaria algumas contradições, que o documentário ignora sem qualquer cerimônia. Eles falam como se fosse um consenso que a sensibilidade da prata já era conhecida no renascimento. Nunca soube disso, mas vamos supor que sim. Não explicam, no entanto, como a imagem teria sido fixada, questão crucial que emperrou as pesquisas no século XIX. Outra coisa: como o programa sugere, a exposição do corpo à luz pode ter levado três dias, até gerar a imagem tênue que está no Sudário. Fica difícil entender como Leonardo teria conseguido gravar seu rosto. Conhecemos bem as dificuldades para o retrato no século XIX, mesmo quando a exposição já tinha baixado para alguns poucos segundos.

Sei que Boris Kossoy enfrentou resistências quando divulgou para o mundo suas pesquisas sobre a descoberta da fotografia no Brasil, por Hércules Florence. Será que um dia teremos que dar o braço a torcer e nos desculpar com os cientistas injustiçados do Discovery? Não tem comparação. O problema não está nas especulações que eles fazem, mas na linguagem sensacionalista a que se rendem. Qualquer verdade manifestada desse modo merece nossa desconfiança. Contra essas teses rebuscadas e emocionantes, vale o conselho do filósofo medieval Guilherme de Ockham: dentre as várias teorias que explicam um fenômeno, a mais simples é sempre a melhor.

Ouvi algumas vezes de Luis Felipe Pondé, colega da Faap, a seguinte frase: o problema quando deixamos de acreditar em Deus é aquilo que colocamos no lugar dele. Tanto faz no que acreditamos mas, pelo menos, as estratégias de comoção das religiões tradicionais são mais sofisticadas e poéticas do que as adotadas por essas pseudo-ciências. Se é pra tirar alguma lição dos mitos, é preferível recorrer àqueles que sobreviveram ao tempo, não aqueles que estão em cartaz na programação da Discovery.


Um momento especial para a fotografia

Nunca na história da fotografia, nacional e internacional, vivemos um momento tão intenso como este. Pelo fato da fotografia passar por uma nova consolidação de seu suporte tecnológico, tem provocado uma atenção especial à sua produção. Sua legitimidade como manifestação artística e cultural é indiscutível e podemos assistir agora em São Paulo uma verdadeira explosão fotográfica de qualidade inquestionável. É possível acessar exposições em que a fotografia, moderna e contemporânea, ocupa espaços nobres da cidade e provoca nossa imaginação.

O século XX possibilitou a consolidação da fotografia graças aos artistas que souberam não só dominar a técnica, como expandir os limites do fazer fotográfico e produzir imagens que nos deixa em estado de êxtase. Antes de mais nada, entender o território da fotografia dentro da arte contemporânea é perceber como ela conquistou um espaço nobre nas artes visuais através de um trabalho incessante em várias direções, viabilizando-se como documento e como superfície sensível capaz de detonar questões estéticas e perceptivas.

Irmãos Vargas

Irmãos Vargas. Isabel Sanchez Osório, 1926

Se pensarmos na fotografia moderna, há de se destacar as exposições da Pinacoteca do Estado – Estúdio de Arte Irmãos Vargas – a fotografia em Arequipa, Peru – 1912/1930 e Gaspar Gasparian – um fotógrafo, ambas com a curadoria de Diógenes Moura; e a mostra As construções de Brasília, fotografias de Marcel Gautherot, Peter Scheier e Thomaz Farkas, na Galeria de Arte do Sesi (Avenida Paulista, 1313), organizada pelo Instituto Moreira Salles.

Visitar a exposição dos Irmãos Vargas é se deparar com a beleza acentuada da fotografia encenada e se emocionar com o clima dramático das luzes e dos retoques da fotografia pictorialista. Mantendo um estúdio em Arequipa, distante e desconectado dos centros de produção, eles desenvolveram com muito sucesso uma fotografia baseada no retrato teatralizado. Incríveis performances que lembram o cinema mudo, mas que ainda hoje ressoam como experiências estéticas realizadas entre o pictórico e o cinemático no interior da própria fotografia.

Gaspar Gasparian

Gaspar Gasparian

A exposição de Gaspar Gasparian traz outra desconcertante vivência diante do belo, pois estamos frente a cópias vintage, de época, que tem uma adequação exata entre a densidade da matriz (o negativo) e a textura e o tom do papel utilizado. Essa questão é relevante, pois a fotografia produzida nos anos 1950 era idealizada para ser impressa num suporte específico dentre as variedades disponíveis no mercado. Isso dava à fotografia uma característica imagética diferente das impressões digitais atuais. Além disso, Gasparian foi empresário bem sucedido na área têxtil e fotógrafo amador, um exemplo clássico dos associados do Foto Cine Clube Bandeirante, a moderna escola da fotografia brasileira. A exposição nos permite perceber que suas fotografias são composições harmoniosas, algumas arranjadas, de luzes estudadas e cortes precisos, que desvendam os seus procedimentos de trabalho.

Já a Galeria de Arte do Sesi traz em As construções de Brasília, imagens de alguns dos mais importantes nomes da fotografia documental dos anos 1950 – Marcel Gautherot e Peter Scheier – e da fotografia modernista – Thomaz Farkas. A exposição tem a monumentalidade da arquitetura da capital e acentua a qualidade técnica e estética da fotografia produzida por estes profissionais, referências fundamentais da história do período. Como sempre, a montagem do Instituto Moreira Salles é exemplar.

Simultaneamente aos modernos, temos os contemporâneos. As exposições Apreensões, de Bob Wolfenson, no Centro Cultural Maria Antonia; Maldicidade, de Miguel Rio Branco, no Museu da Imagem e do Som; Recorrências, de Mauro Restiffe, na Galeria Fortes Vilaça; Esqueceu de Beber Água, Agora Chora de Sede, de Caio Reisewitz, na Galeria Luciana Brito; A Casa em Festa, da novata Flavia Junqueira, na Zipper Galeria; a 18º edição da Coleção Pirelli-Masp, no Masp; e a presença da fotografia da Bienal Internacional de São Paulo.

Miguel Rio Branco

Miguel Rio Branco

Essa reunião de artistas e instituições culturais mostra a força da fotografia na cena cultural paulistana e brasileira. A individual de Miguel Rio Branco, por exemplo, reúne 40 fotografias, 3 vídeos e uma instalação, discute o drama e o isolamento dos menos favorecidos que vivem nas grandes metrópoles. Rio Branco com seu olhar crítico e poético mantém o tom provocativo de seus trabalhos anteriores e deixa claro que sua intenção é dar visibilidade à situação de abandono e decadência do espaço público. Fotografias sombrias, de extrema complexidade e carregadas de denúncias que, somadas aos vídeos e à instalação, montam uma narrativa dramática e sensível do homem contemporâneo.

Fica claro que houve um esforço por parte das instituições culturais e galerias comerciais que selecionaram o seu melhor para o período da Bienal da Internacional. Se por um lado temos a Coleção Pirelli-Masp com 17 artistas que integram esta edição, mostrando mais uma vez a diversidade geográfica e a singularidade da produção fotográfica brasileira; por outro, temos a Bienal Internacional, que nesta edição ampliou significativamente os espaços para a fotografia e o vídeo.

Nan Goldin

Nan Goldin

A decepção fica por conta da exposição de Nan Goldin, divulgada pela Fundação Bienal de São Paulo com bastante antecedência, mas que na verdade não mostra as fotografias da artista. São apenas imagens projetadas e sonorizadas. Não é vídeo nem fotografia. A expectativa que tínhamos era de ver as ampliações fotográficas de Nan Goldin que, ao longo de suas séries, desenvolveu uma profunda análise das nossas relações sociais, familiares e amorosas. Suas imagens são provocativas e não permitem qualquer indiferença. The Ballad of Sexual Dependency, de 1986, título que remete a uma canção de Bertolt Brecht, já é um clássico da fotografia intimista e dramática; The Beautiful Smile, de 2007, relativo ao prêmio da Hasselblad; e Emotions and Relations, de 1998; são livros que trazem a questão do cotidiano e da intimidade via uma fotografia direta, sem desvios aparentes.

Essas exposições, que mostram importantes artistas, abrangem o moderno e o contemporâneo, ampliam nossa imaginação e oferecem um conjunto de referências significativas para melhor compreensão do mundo que vivemos. Nenhuma outra manifestação das artes visuais ocupa a cidade com tal diversidade e qualidade. Um momento especial para todos nós que batalhamos para criar espaços de visibilidade e circulação para a produção fotográfica nacional e internacional.


Incubadora

Borda, de Felipe Russo

Borda, de Felipe Russo

Welcome Home, de gUi Mohallem

Welcome Home, de gUi Mohallem

Sopro, de Breno Rotatori

Sopro, de Breno Rotatori

Nesta quinta, dia 14/10, começaremos na Galeria Olido a exposição do Projeto Incubadora, do qual participo junto com Felipe Russo, gUi Mohallem, Breno Rotatori, Pio Figueiroa, Lua Cruz e Lucas Simões.

Do que se trata? Quem estiver lá nesse dia, verá uma montagem inacabada de três trabalhos: Welcome Home, do gUi, Sopro, do Breno, e Borda, do Felipe. Também estaremos lá para um bate-papo. A exposição deverá se reconfigurar e, no dia 28/10, haverá uma nova abertura. A principal interface do projeto é um blog, onde se pode acompanhar o desenvolvimento das nossas conversas.

Breno, Felipe e gUi já trabalhavam muito juntos quando decidiram transformar o debate num projeto. Cada fotógrafo formalizou a presença de alguém que já estava mais ou menos por perto: Breno chamou Pio, Felipe chamou Lua, e gUi chamou Lucas. Depois, sugeriram me incluir.

Foi em março deste ano, numa padaria, que eu os encontrei pela primeira vez. Eles me apresentaram a idéia e mostraram o que já tinham feito. Os trabalhos eram muito bons, aceitei participar, mas não necessariamente eu entendia “o que nós, os outros, fazemos aqui”. Esse foi o título do meu primeiro post no blog do projeto. Está claro que não somos autores, nem exatamente curadores. Quebramos a cabeça pensando em nomes para isso, mas é o que menos importa.

A idéia era criar condições para que os trabalhos fossem afetados pelas conversas, e deixar num blog o rastro dessa experiência.  Por mais que eu mesmo desconfiasse, foi de verdade. Era absolutamente sincera a abertura que os três promoviam, e todos puderam ver o quanto os formatos e os sentidos dos trabalhos se reconfiguravam ao longo dos encontros. Chegamos a nos perguntar se deveria haver uma exposição, ou se o blog não vestia melhor a face mais importante do projeto, que era a interlocução. O desenho da exposição foi uma etapa crucial das conversas, talvez a parte mais coletiva de tudo o que foi criado pelo grupo.

Incubadora é um projeto, não é um coletivo de arte. Seu contrato é mais provisório, mais instável. Mas é uma resposta peculiar dada a questões que movem muitas experiências contemporâneas, incluindo a dos coletivos. Discutir e mostrar “processos” também não é exatamente uma novidade na arte contemporânea. Mas a fotografia é particularmente resistente a isso, porque ainda pesa o modo de trabalho dos clássicos: a criação fotográfica como algo puramente introspectivo, que se resolve dentro do “instante”,  e que gera imagens únicas e definitivas. Mesmo para os clássicos, isso não é totalmente verdadeiro.

O Projeto Incubadora não inventa nada de novo (coisas como o processo, a interlocução), também não destrói o que é antigo (coisas como a autoria). Apenas busca uma medida para essas coisas, e coloca em evidência aspectos da criação fotográfica que tendem a ser recalcados, mesmo que estejam sempre presentes.

Galeria Olido
Av. São João, 473, Centro
Abertura: 14/10, 20h30
Visitação:  15/10 a 28/11, terça a domingo, das 13h às 20h

A exposição reconfigurada abre no dia 28/10


Darwin e a fotografia

Neste fim de semana, assisti ao filme “Creation” (2009), recorte da biografia de Charles Darwin centrado nas dificuldades que enfrentou quando finalizava A origem das espécies (1859). Vemos ali um personagem debilitado por uma doença desconhecida, atormentado pela morte de uma filha, e em conflito com os valores cristãos de sua comunidade e de sua família.

Numa das primeiras cenas, sua filha Annie está num estúdio se preparando para ser fotografada. Darwin lhe explica como funciona a técnica. Enquanto o fotógrafo tenta fotografar a menina, ela parece mais interessada nas aventuras que seu pai lhe conta.

Creation, 2009 (trecho do filme excluído por solicitação da produtora)

Imagino que a fotografia apareça ali como emblema das inovações técnicas que, ao lado da teoria de Darwin, impactaram o século XIX (ainda que, para a pequena Annie, essa novidade esteja ofuscada pelas histórias fantásticas que seu pai lhe conta).

Especulações à parte, a fotografia teve uma presença importante numa pesquisa posterior de Darwin, que resultou em A expressão das emoções no homem e nos animais (1872). Encontrei uma versão digitalizada da primeira edição desse livro, e vi que ele traz um número razoável de referências a trabalhos fotográficos, sobretudo feitos por cientistas. Podemos ler já nos agradecimentos:

Darwin

Fotos cedidas por Herr Kindermann para "A expressão das emoções".

“Eu tenho o prazer de expressar meus agradecimentos ao Sr. Rejlander pela disposição de fotografar para mim várias expressões e gestos. Agradeço também ao Sr. Kindermann, de Hamburgo, pela cessão de alguns excelentes negativos de crianças chorando, e ao Dr. Wallich, por um outro encantador, de uma menina sorridente. Já expressei meu agradecimentos ao Dr. Duchenne, que generosamente me permitiu ter algumas de suas grandes fotografias reproduzidas e reduzidas. Todas estas fotografias foram impressas pelo processo da Heliotipia, que garante a precisão das reproduções.”

Imagem cedida por Duchenne de Bologne.

Duchenne de Boulogne

O livro traz longos comentários sobre a pesquisa de Duchenne de Boulogne, que hoje nos parece um tanto lunático e perverso, dando choques no rosto de pacientes da Salpêtrière, diante da camera de Adrien Tournachon, irmão de Nadar. Mas Darwin mesmo explica a importância desse trabalho na compreensão do funcionamento dos músculos faciais.

Oscar G. Rejlander, Autorretrato.

Oscar G. Rejlander, Autorretrato.

Também foi uma supresa ver que nas referidas imagens de autoria de Oscar Gustave Rejlander, o próprio fotógrafo aparece encenando as “emoções”, provavelmente, pautado diretamente por Darwin.

Darwin, por Julia M. Cameron, 1868.

Darwin, por Julia M. Cameron, 1868.

Conhecemos o belo retrato de Darwin feito por Julia Margaret Cameron, e encontramos registros de duas cartas trocadas com Lewis Carroll, em que agradece o envio de fotografias, provavelmente para a pesquisa sobre as “Expressões”. Darwin, como outros cientistas e intelectuais, certamente mantinha boas relações com esses fotógrafos e artistas da Era Vitoriana.

Para encerrar, uma curiosidade, mesmo que não explique muito sobre a relação de Darwin com a fotografia: vi que a mãe de Darwin se chamava Susannah Wedgwood. Não foi difícil verificar que se trata da irmã de Thomas Wedgwood, pioneiro nas pesquisas que antecedem a descoberta da fotografia no século XIX, autor do artigo “Descrição para de um método para copiar pinturas sobre cristal e para criar perfis por meio da luz sobre nitrato de prata” (1802).

Aproveitei o entusiasmo para comprar um livro que encontrei na Amazon: Darwin’s Camera: Art and Photography in the Theory of Evolution, que deve demorar algumas semanas para chegar. Se houver grandes novidades, complementarei o post.

Infelizmente, o fime Creation teve uma passagem efêmera pelas salas de cinema brasileiras, em março deste ano.


CLAUDIA ANDUJAR – CLAUDINE HAAS

Este texto foi escrito para por ocasião do II Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo, realizado no Itaú Cultural, em que tive a oportunidade de entrevistar a artista Claudine Haas, ou melhor, Claudia Andujar. Acompanho o trabalho de Cláudia e sua trajetória desde os anos sessenta e setenta como leitor da revista Realidade. Mais tarde, tive a oportunidade de estar com ela em diversas ocasiões. A única certeza era que o tema do Fórum – Fora de Casa, Fora do Eixo, Exílios e Migrações na Fotografia – tinha fortes conexões com sua experiência de vida.

Claudia Andujar no Palco do II Fórum - Foto: Olga Lislov

Claudia Andujar no Palco do II Fórum - Foto: Olga Lislov, Fórum Virtual

Claudia nasceu na Suiça, passou a infância na Hungria, na cidade de Transilvânia, que fica na divisa com a Romênia. Durante a Segunda Guerra Mundial sua cidade foi anexada à Hungria. Como refugiada foi para a Suiça e posteriormente para os Estados Unidos. Lá teve sua educação e formação cultural e tornou-se artista plástica. Com vinte anos, em 1955, veio ao Brasil pela primeira vez, por razões familiares e logo se sentiu em casa. Não sabe explicar o porquê, mas o contato humano foi tão emocionante e intenso, que logo se apaixonou pelo país. Encontrou aqui um calor humano que não havia encontrado nos lugares por onde havia passado anteriormente.

Mas, Claudia gosta de enfatizar que toda sua trajetória de vida, inclusive com a fotografia, está muito ligada aos seus primeiros vinte anos, ocasião em que teve a oportunidade de viver em diferentes lugares, presenciar o horror da guerra e a destruição dos laços humanos e familiares.

Para conhecer mais e melhor o povo brasileiro, viu que somente a pintura, que havia estudado nos Estados Unidos, não dava conta de suas necessidades expressivas. Foi então que surgiu em sua vida a fotografia. Através dela pode conhecer melhor o povo brasileiro – aquele que vive no interior deste país tão generoso e tão diverso e grandioso geograficamente. Seu interesse sempre foi e continua sendo tentar entender porque as pessoas fazem o que fazem. Tem consciência de que o comportamento humano tem raiz na cultura, mas, também sofre influências de ordem psicológica.

Claudia Andujar, Yanomami

Claudia Andujar, Yanomami

Essa sua necessidade de compreender o Outro, sempre incluiu, necessariamente, um tempo de convivência alongado, o suficiente para tornar-se invisível diante desse Outro para obter imagens mais próximas possível da realidade. É complemente avessa à idéia fotografar apressadamente, sem o mínimo conhecimento do homem e do seu entorno espacial. Para ela, o fotógrafo que tem esse tipo de comportamento não valoriza minimamente as relações humanas de cumplicidade e intimidade que envolve o ato fotográfico.

Capa da Revista Realidade

Capa da Revista Realidade

Desenvolveu seu notável trabalho de foto-repórter free lancer, entre 1958 e 1971. De 1959 a 1961 publicou nas revistas Life, Look, Aperture, entre outras. Na Editora Abril, trabalhou para as revistas Realidade, Quatro Rodas, Cláudia e Setenta. A partir de 1972 passou a se dedicar exclusivamente à causa Yanomami, que conheceu no início dos anos setenta, ocasião em que participou de uma grande reportagem sobre a Amazônia para a revista Realidade. Para iniciar este novo momento em seu trabalho com a fotografia, deixou sua atividade como free-lancer e conseguiu uma Bolsa da Fundação Guggenheim (em 1972 e 1974) para realizar a documentação fotográfica sobre os Yanomami. Mais tarde, outra bolsa da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Foi o começo de uma nova vida ligada à defesa dos Direitos Humanos daquele povo, do seu território e à divulgação de sua cultura.

Durante 14 meses apenas conviveu e observou o cotidiano daquela comunidade indígena a fim de estabelecer os processos de confiança mútua. Só após esse conhecimento mínimo é que ela começou a fotografá-los. Cláudia costuma afirmar que sua relação com os índios Yanomami, fio condutor de sua trajetória na fotografia e na vida, é essencialmente afetiva. Mais tarde, Cláudia agregou à sua atividade artística a militância política. Sua ação como cidadã e artista se politizou. Seu engajamento ético e sua sensibilidade estética transformaram radicalmente sua vida. Através da ONG Comissão Pró-Yanomami atuou fortemente na demarcação das suas terras, conquistada somente nos anos noventa.

Claudia Andujar, Yanomami

Claudia Andujar, Yanomami

Suas fotografias sobre os índios Yanomami são instauradoras de um mundo de incrível coerência centrado no aspecto humano e na confiança mútua. É um trabalho bastante espiritualizado, pois ambos – os índios Yanomami e Cláudia estão concentrados na conexão possível entre a fotografia, a sinceridade e o que há de divino naquele momento mágico em que os índios se abraçam e se enlaçam; se pintam – gestos cotidianos que na sua fotografia se transfiguram de modo inquietante e cósmico. São imagens profundas, diretas, de profundo respeito, sem artifícios de embelezamento, que evidenciam a condição humana, motivação presente em toda a sua obra.

Cláudia rompe com maestria o limite entre a fotografia documental e a abstração, e viabiliza um universo poético intenso e de rara beleza. Nisso reside sua potência de artista: trazer a fragilidade humana, seu cosmos e suas crenças para a esfera do visível. Por ocasião de sua exposição em 2005 na Pinacoteca do Estado e lançamento do seu livro A Vulnerabilidade do Ser, pela editora Cosac Naify, ela afirmou ao rever o seu arquivo: “o que chamou a atenção ao rever meu trabalho é que em todos os momentos eu sempre procuro no Outro a beleza que vem desse amor que tenho pela Humanidade”.

Para finalizar quero lembrar que Cláudia também publicou nas revistas Bondinho e Fotografia, que tinham como editor de fotografia, George Love, seu companheiro. Juntos eles organizaram em setembro de 1974, no Museu de Arte de São Paulo, a I Semana Internacional de Fotografia, ocasião em que tiveram a oportunidade de fazer a aquisição de muitas fotografias de consagrados autores internacionais. Cláudia publicou muitos livros, entre eles: Yanomami, em 1978, e Amazônia, ambos pela editora Praxis; Yanomami, em 1998, por ocasião da 2º Bienal Internacional de Fotografia Cidade de Curitiba; A vulnerabilidade do Ser, em 2005 e Marcados, em 2009, ambos pela Cosac Naify. Possui fotografias nas coleções dos principais museus do mundo.

Dentre as várias questões que preparei para Cláudia Andujar, a primeira visava expor um fato importante muitas vezes ignorado, também pelos estudos estrangeiros que tem sido dedicados aos livros de fotografia brasileira: pedi a ela que discorresse sobre a ação da ditadura militar que censurou seus dois primeiros livros. Os textos, de Darcy Ribeiro e do poeta Thiago de Mello respectivamente, tiveram que ser retirados dos livros para garantir sua distribuição. Cláudia nos brindou com respostas precisas e com informações preciosas que se tornaram públicas para grande maioria da platéia. Muitos vieram me agradecer por tomar conhecimento, pela primeira vez, de informações que requerem, além de pesquisa, relações de proximidade e intimidade. Do mesmo modo que Cláudia realiza seu trabalho.

Seu discurso foi coerente, engajado politicamente, evidenciando a relação de amor, respeito e tolerância com os Yanomami. Após o debate, quando perguntei o que ela realmente sentiu quando se deparou com esses índios pela primeira vez, ela simplesmente respondeu: “eu fiquei tão emocionada que percebi logo que apenas estava retornando a um mundo ao qual um dia eu também pertenci. Foi uma descoberta da minha ancestralidade. Me senti voltando para casa”.


Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte III

Cena de Metrópolis, de Fritz Lang, 1927.

Cena de Metrópolis, de Fritz Lang, 1927.

É natural que idéias sejam deturpadas por quem as menospreza, mas o conceito de virtual foi às vezes mutilado pelo fogo amigo: é o fato de estar na moda que dificulta sua compreensão.

Este é o último de uma série de três posts. No primeiro, discuti os conceitos de realidade, representação da realidade e realismo, no segundo, analogia, mimesis, verossimilhança e objetividade.

Virtual

Temos chamado de virtual tudo aquilo que está associado às novas tecnologias, sobretudo às redes. Construímos assim a impressão de que esta palavra surge para dar conta de uma novidade. Mas é preciso saber que estamos diante de uma noção que é, pelo menos, uns vinte e cinco séculos mais velha que os computadores.

No campo da fotografia, temos chamado de virtual a realidade inventada pelos artistas, em oposição àquela realidade que a câmera encontra ordinariamente e que os fotógrafos documentaristas se esforçam por reproduzir. Aqui, realidade virtual se torna o viés criativo e bem intensionado do que poderíamos chamar simplesmente de falsa realidade.

Mas virtual não é aquilo que se opõe ao real, é uma dimensão da realidade. A metafísica sempre se interrogou sobre o “ser” das coisas (aquilo que chamamos corriqueiramente de essência). Nessa perspectiva, Aristóteles dizia que esse ser pode existir em “ato”, aquilo que já está manifesto (que é “atual”), ou pode existir em “potência”, aquilo que tem a capacidade de “vir a ser” (Metafísica, livro V). Virtual é essa dimensão potencial e disponível da existência, que já está inscrita no ser como possibilidade, que pode ser intuída, mas que ainda não se tornou presente. Por exemplo, um negativo fotográfico exposto e ainda não revelado é virtualmente uma imagem, as ações da bolsa são virtualmente dinheiro, ou uma semente é virtualmente uma árvore (este último exemplo é de Pierre Lévy).

Sugere-se aí a possibilidade de compreender o devir, portanto, de projetar o conhecimento para uma temporalidade mais complexa, que considera o movimento das coisas.

Aristóteles gostava da arte exatamente porque enxergava nela essa competência de abordar o mundo em suas potencialidades. Ao contrário do historiador, que narra o acontecido, o poeta narra o que poderia acontecer (Poética, cap. IX).

Novas tecnologias

Para mim, as discussões sobre tecnologia não são as mais empolgantes. Podemos passar rapidamente por elas, já assumindo que o que mais interessa virá no próximo tópico.

Tudo o que está no computador ou na internet é virtual em certo sentido. Não existe ali uma imagem, um texto, uma música, pelo menos, não o tempo todo. Existem apenas dados, mas que são potencialmente imagem, texto, música, ou seja, que estão disponíveis para serem “atualizados” nessas formas. Mais ou menos como a “imagem virtual” que existe no negativo não revelado mas, enquanto a revelação é um processo definitivo, a imagem digital permanece sendo essencialmente dados, e sua atualização numa manifestação visível é sempre provisória.

Num sentido mais complexo, podemos dizer que as imagens de síntese numérica, isto é, geradas diretamente no computador, produzem realidades virtuais. Elas não são cópias de um fato ocorrido, são encenações “modeladas” a partir de conceitos abstraídos da realidade. Não são simplesmente ficções, pois ainda podem corresponder às potencialidades do real. Sem dúvida, elas estão aptas a simular também realidades impossíveis mas, uma vez que responde a um modelo, a imagem não deixa de mostrar potenciais coerentes com as condições estabelecidas. Se não reproduz uma natureza idêntica à nossa, constrói uma natureza com uma coerência similar. A realidade virtual construída por meio de simulação não prova nada, nem prevê nada, apenas diz que, dadas tais condições, tais coisas poderiam acontecer. Por isso mesmo, ainda tem valor de conhecimento em certos conhecimentos. Mas cabe dizer que isso não é exclusividade das experiências mediadas pelas novas tecnologias. Sem dúvida, isso é válido para a simulação de um terremoto calculada por um super computador, mas também para a tradicional simulação de incêndio feita num edifício.

Não vou entrar nesse assunto mas, há alguns meses, publiquei no blog de um amigo um artigo sobre a “virtualização das identidades” nas redes sociais.

Fotografia

Com novas ou velhas tecnologias, a questão do virtual tem atravessado muitas discussões sobre a fotografia. Isso está claramente colocado em duas diferentes perspectivas (e talvez em mais uma terceira, que apresento como pura especulação):

1. A fotografia contemorânea investe muitas vezes na encenação como forma de romper com a tradição documental, de desvincular a imagem de um instante dado no passado, o “isso foi” de Barthes, para fazê-la apontar para um tempo indefinido, que é o das potencialidades. Como já disse no começo deste post, aqui estamos diante do virtual. Mas é abusivo confundir simplesmente virtual com ficcional, sobretudo se tomarmos o ficcional como o avesso do real (esta última, noção que a fotografia contemporânea também renega). Faz sentido falar em virtual se reconhecemos na ficção o exercício de um entendimento que se descola dos fatos observados para operar no plano dos conceitos e, a partir deles, testar as possibilidades de reconfiguração dessa realidade.

Cindy Sherman, 1977.

Cindy Sherman, 1977.

Assim é, por exemplo, uma personagem de Cindy Sherman. Podemos reconhecer nela a representação de algo virtual não porque não exista. Ao contrário, é virtual porque, mesmo como invenção, mesmo sem se referir à pessoa que esteve diante da câmera, expõe um modelo de mulher que pode ser identificada com alguém próximo, alguém distante, alguém possível, talvez, consigo mesma…

A chamada “fotografia construída” teve o mérito de expor as possibilidades de diálogo da imagem fotográfica com essa dimensão virtual. Mas, talvez por esse esfoço pioneiro, creio que às vezes tenha feito isso com certo didatismo.

2. Autores como Vilém Flusser e Arlindo Machado nos lembram que a fotografia não lida diretamente com o real, ela o transforma segundo códigos ou modelos conceituais forjados pela cultura. Desse modo, a imagem representa o mundo segundo um universo de possibilidades previstas nesses códigos. Para simplificar essa idéia: uma pessoa diante da câmera sempre flexibiliza sua identidade para encenar um personagem, aquele que é possível de ser captado pela câmera, aquele que nos esforçamos para construir quando queremos ser fotogênicos, aquele que os rituais sociais exigem (o casamento, a formatura, mas também a guerra, a catástrofe…). Enfim, quando vemos uma foto, acreditamos estar diante de “fulano”. Mas, em boa medida, o que a imagem nos dá aver é um modelo: um trabalhador, um pai, uma noiva, um burguês, um índio, uma vítima… Mesmo uma fotografia documental sempre terá algo de virtual, na medida em que não aponta apenas para o instante do passado, isto é, a pessoa ou o fato que foi resgistrado, mas para uma situação abstrata na qual projetamos uma grande amplitude de fenômenos.

Joachim Schmid, Photogenetic Drafts, 1991.

Joachim Schmid, Photogenetic Drafts, 1991.

Essa idéia aparece às vezes no trabalho de muitos artistas com certa ironia, ou em tom de denúncia. Quando Joachim Schmid picota retratos e sobrepõe uns aos outros, ele demonstra que o que temos ali não não é uma pessoa singular, é apenas uma pose, uma conduta diante da câmera, que se repete em lugares e tempos distintos. Sua conclusão, alardeada de modo quase performático, é a de que não precisamos mais fotografar, pois o retrato que alguém faria de mim certamente já foi feito milhares de outras vezes.

Dorothe Lange, Migrant Mother, 1936.

Dorothea Lange, Migrant Mother, 1936.

Essa ironia funciona como uma espécie de terapia de choque para os olhares mais alienados ou resistentes, que são incapazes de enxergar os códigos que orientam a imagem fotográfica. Superado isso, podemos reconhecer nessa virtualidade um valor mesmo da fotografia documental. Um exemplo: eu não me comovo muito com a depressão norte-americana que sucedeu a crise de 1929. Mas reconheço na imagem de Dorothea Lange o sofrimento de uma mãe, potencialmente a minha, a sua, qualquer mãe que não pudesse resgatar seus filhos de uma situação de indignade. A força da fotografia documental é de falar de alguém que esteve diante da câmera ao mesmo tempo em que fala de todos nós, em outras palavras, de construir com fragmentos do passado alegorias sobre o futuro. Mesmo Barthes, acusado de limitar a fotografia ao “isso foi”, parecia ter compreendido isso, por exemplo, quando diz sobre Lewis Payne, condenado a morte: “ele está morto e vai morrer”. Trata-se de alguém que que já morreu e que pouco deve importar a Barthes, mas trata-se também da iminência da morte, angústia que atormenta qualquer ser humano.

Essa virtualidade não está apenas nas imagens dos grandes mestres. Quantas vezes, diante de uma fotografia anônima que encontramos perdida em algum lugar, não ficamos tentados a desdobrar aquele instante que a imagem nos mostra, projetando sobre seus personagens histórias que, no final das contas, são sempre as nossas.

História e virtualidade

Acabei de sugerir que mesmo a fotografia documental penetra o campo da virtualidade quando se liberta do passado que a gerou. Essa imagem nos oferece um relato aberto, enquanto a história está limitada e constrangida pelos fatos ocorridos. Essa parece ser a perspectiva de Aristóteles, quando prefere o trabalho do poeta ao do historiador.

Mas Walter Benjamin propõe uma visão muito distinta da história, avessa às abordagens que se contentam em resolver o passado estabelecendo a cronologia dos fatos, articulados num tempo homogêneo, que sempre avança numa direção necessária, a do progressso (Sobre o conceito de história).

Para ele, considerar o passado como algo resolvido é legitimar o poder que narra a história sob a perspectiva dos vencedores. É como pisar nos corpos insepultos dos vencidos, negando um sentido às suas mortes.

Ele convida então o historiador a “escovar a história a contrapelo”, a escutar nas vozes que ouvimos também “as vozes que emudeceram”, a não dar essas batalhas por encerradas, porque é o nosso futuro que está em jogo na abordagem que fazemos desse passado. Ou seja, não se trata de saber como o passado determinou o presente, mas de se perguntar sobre as potencialidades nele existentes e ainda não realizadas, pelas quais vale a pena lutar.

Há talvez aqui mais um caminho para pensar o virtual nessas imagens que servem à memória (inspirado nas leituras de Maurício Lissovsky): não é preciso à fotografia romper com a história e menos ainda com a realidade para encontrar nela uma virtualidade. Porque o passado para o qual a imagem aponta permanece pulsante, colocando em causa nosso próprio devir. É por isso que, nas palavras de Benjamin, “o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos” (Pequena história da fotografia).


Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados: #1, #2 e #3

Pequeno glossário de termos mal utilizados pelos debates teóricos sobre a fotografia.

Artigos s série

  • Anônimo. Walter Reed Hospital, 1918
    Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte I
    Ronaldo Entler | 19.Jul.10

    Sabemos que, desde sua invenção, recaiu sobre a fotografia uma confiança exagerada. A ideia de que ali havia uma reprodução fiel da realidade garantiu sua imediata aceitação como instrumento de memória e documentação, no entanto, atrapalhou seu reconhecimento como arte. Nos últimos 30, talvez 40 anos, muitas teorias se

  • Dr. Rodman, Cirurgia, Filadelfia, 1863
    Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte II
    Ronaldo Entler | 8.Aug.10

    Depositamos sobre a fotografia uma confiança exagerada. Como resposta, muitas teorias se voltaram contra antigos conceitos que pareciam impedir uma visão mais crítica sobre o meio. Mas, afirmada tal consciência sobre os limites da fotografia, é possível fazer as pazes com um vocabulário que, usado de modo mais preciso, pode

  • Cindy Sherman, 1977.
    Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte III
    Ronaldo Entler | 3.Nov.10

    É natural que idéias sejam deturpadas por quem as menospreza, mas o conceito de virtual foi às vezes mutilado pelo fogo amigo: é o fato de estar na moda que dificulta sua compreensão. Temos chamado de virtual tudo aquilo que está associado às novas tecnologias, sobretudo às redes. Construímos assim


Rodtchenko e o estranhamento

O Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, realiza em parceria com a Pinacoteca do Estado de São Paulo a exposição Aleksandr Rodtchenko – revolução na fotografia. Este texto sintetiza minha apresentação no Seminário realizado na última semana, que reuniu pesquisadores, críticos e curadores para discutir a obra de Rodtchenko.

Pioneer with a Horn, 1930

Rodtchenko, 1930

Aleksandr Rodtchenko (1891–1956) foi o grande protagonista do construtivismo, movimento estético fundado por Vladimir Tátlin, em 1913, que tornou cosmopolita a arte russa, que passa a dialogar com a experiência abstrata européia que Kandisnsky iniciara em 1910. Rodtchenko foi o mais vigoroso artista da Rússia: pintor e desenhista, designer e cenógrafo, fotógrafo e cineasta. De espírito experimental e inovador versátil, seu principal interesse era a valorização da pesquisa visual e dimensional que atribuía movimento e lirismo às formas geométricas.

Para a vanguarda russa e para Rodtchenko em particular, a fotografia era evidentemente muito mais do que um simples meio de documentação, por isso mesmo ela deveria ser responsável não só pela ampliação do uso da imagem fotográfica para provocar e ampliar nossas percepções, como também revolucionar o pensamento visual. A nova realidade do mundo industrial das primeiras décadas do século XX impôs um novo ritmo para as cidades e para o homem das metrópoles, e exigiu uma nova tomada de consciência.

A incomparável criatividade de Rodtchenko deu à fotografia uma nova possibilidade de representação, pois trouxe uma nova lógica interna para a invenção formal. Em 1923, influenciado pelos trabalhos de El Lissitzky, sintonizado com László Moholy-Nagy, e impressionado com os dadaístas alemães, que combinavam algumas formas geométricas com a fotografia, ele inicia sua trajetória com a fotomontagem, pois acreditava que a geometria do Construtivismo encontraria sua necessidade espiritual e filosófica numa arte não representacional.

Rotdchenko admitiu em várias ocasiões que a fotomontagem o levou à fotografia, pois precisava fazer certas imagens para continuar a produção de seus trabalhos como artista gráfico. Seus primeiros trabalhos fotográficos marcam um retorno à abstração, mas seu principal foco de interesse foi sempre a composição. Para ele, a chave da transformação da fotografia e da arte depende do senso de composição e, para isso, baseia-se em esquemas geométricos e aponta as possíveis variantes de sua construção: ângulos insólitos, diagonais ascendentes e descendentes, linhas verticais e horizontais, círculos, bem como suas combinações, como vemos nas fotografias da exposição, em sua grande maioria apresentadas em cópias vintage. As fotografias da exposição pertencem a Moscow House of Photography, à família e coleções particulares.

Pro Eto

Rodtchenko, Capa de Pro Eto, de Maiakovski, 1923

PPP

Rodtchenko, ilustração para Pro Eto, de Maiakovski, 1923

Antes de iniciar seu percurso com a fotografia, ele desenvolveu em 1923 uma série de fotomontagens que ilustram o poema mais conhecido de Maiakovski, Pro Eto (About This), incorporando todas as premissas dos movimentos vanguardistas: o uso das formas elípticas para romper com a linguagem tradicional; a inclusão de marcas das novidades tecnológicas que pudessem capturar a velocidade e a simultaneidade dos acontecimentos da vida moderna; a relação conflituosa entre o sóbrio e o espontâneo; enfim, uma série de contrastes que traçam as evidências em oposição de um mundo em plena transformação. No texto O choque do novo, o crítico Robert Hughes afirma que este projeto representa “a mais eficaz fusão entre a arte e vida pública na vanguarda russa e foi feita por Rodtchenko com seu estilo brilhante e contundente”.

Rodtchenko acreditava que a relação homem e máquina poderia ser frutífera dependendo de como a tecnologia seria utilizada para a criatividade. Para ele, a câmera era o veículo ideal, pois era uma máquina para ver, com poder investigativo, a gramática da luz e da forma. Entendia a relação arte e técnica como uma nova unidade trazida pela modernidade e entendia a possibilidade de reprodução fotomecânica como um instrumento de arte-educação, um exemplo de como a tecnologia poderia atender a algumas das necessidades básicas de difusão do conhecimento.  Para ele, a reprodutibilidade ampliava e democratizava a experiência estética.

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Rodtchenko, Moça com uma Leica, 1934

Após os primeiros contatos com a fotografia, seu trabalho ganhou um novo senso de espaço, associado com um novo dinamismo nascido de uma nova sintaxe, caracterizada pelo ritmo do contraste geometrizado de luz e sombra, pelo corte insólito, pelos novos e inusitados ângulos de tomada, e pela força dada à composição diagonalizada. As fotografias de Rodtchenko mantém o frescor e dá relevância à vanguarda. Seu pensamento visual estava contaminado pelo desejo de mudança que movia a construção do mundo socialista. Essa nova possibilidade de expressão fotográfica rompeu com o procedimento tradicional e desarticulou os automatismos de visão, despertando o observador da mesmice visual em que estava submerso há décadas pela imposição convencional da fotografia e das artes visuais.

Rodtchenko descobre na fotografia outra possibilidade entre o realismo e a abstração. Podemos verificar que as diferentes posições assumidas pela câmera é parte integrante do novo programa desenvolvido por Rodtchenko para chocar e estranhar o olho receptivo. A partir da obra de Rodtchenko, interessa-me chamar a atenção para o conceito de estranhamento desenvolvido em 1929 pelo formalista russo Victor Chklovski (que juntamente com Roman Jakobson fundou a Escola Formalista Russa da Teoria Literária), que está presente na obra em questão à medida em que a forma apreende a realidade na sua diferença provocando o espectador que, por sua vez, se vê empenhado em buscar uma organização a partir da desconstrução da imagem fotográfica. Rodtchenko incorporou ao seu trabalho as teorias dos formalistas russos, particularmente Chklovski cujo conceito de estranhamento lhe servia de base para uma virada radical na prática fotográfica habitual.

Chklovski assume que uma das funções da Arte é desautomatizar o modo de ver o mundo, restituindo às coisas o impacto e a singularidade que despertaram quando foram vistas pela primeira vez. Para ele, a Arte deveria trazer os objetos e as situações com uma sintaxe peculiar, provocando o estranhamento. Estranhar para perturbar. Estranhar para causar incômodos; para abalar as nossas certezas; provocar reflexão; despertar novas sensações visuais. A percepção automatizada do cotidiano daria lugar a uma nova visão das formas, onde a natureza da experiência estética pede um olhar mais atento e prolongado. A fotografia se encaixava perfeitamente no programa criativo dos construtivistas russos.

Para Aaron Scharf, a fotografia, produzida pela máquina, praticada universalmente e compreendida por todos estava em sintonia com os objetivos do novo estado soviético por sua proximidade às aparências aceitáveis e sua adequada aplicação à propaganda visual instituída pelo sistema – cartazes, revistas ilustradas, livros, murais, entre outras. De todas as correntes de vanguarda animadas por idéias transformadoras, o Construtivismo desenvolvido na Rússia, foi o único que se inseriu numa realidade revolucionária concreta, e que colocou explicitamente a função social da arte como uma questão política. Como assinalou Rodtchenko: “eu gostaria de fazer fotografias que nunca fiz antes, de modo que tivessem vida e realidade, que fossem ao mesmo tempo simples e complicadas, surpreendentes e espantosas”.

Um belo catálogo acompanha a exposição que chegará a São Paulo em fevereiro de 2011, na Pinacoteca do Estado.


Chacal vs Capitão Nascimento

Na semana passada, fui ver Carlos (2010), filme de Olivier Assayas que se apresenta como “ficção baseada em pesquisas jornalísticas”, e que conta a história do legendário terrorista venezuelano conhecido como Chacal. Produzido como minissérie pelo “Canal Plus”, rede francesa de TV, foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, assim como em Cannes, em sessões de quase seis horas de duração.

Na semana anterior, havia assistido também a Tropa de Elite II (2010), de José Padilha, que dispensa apresentações.

Ambos tratam da complexa relação entre política, corrupção e violência. A história de Carlos se concentra nos anos 70 e 80, no bolo internacional que mistura a guerra fria, a questão palestina e o comércio de petróleo. Tropa de Elite II expõe a relação dos poderes públicos com as ações do crime organizado nos morros cariocas.

O filme francês me ajudou a situar algo que me incomodou em Tropa de Elite: o didatismo, aquela voz facilitadora do Capitão Nascimento, sempre nos ajudando a fazer as conexões entre os fatos e a julgar as ações dos personagens. Em Carlos, ninguém explica nada. Temos que simplesmente detectar em cada momento as tensões políticas que, assim como em Tropa de Elite, se reconfiguram o tempo todo.

Os personagens de Tropa são quase arquetípicos, por isso são fáceis de apreender: o principal deles, o homem sem refinamento que se revela bom em sua rudeza, como são os pais, tios ou avós de alguns de nós, que desenvolveram uma sólida noção de certo e errado sem precisar desenvolver teorias sobre o assunto (o discurso final do Capitão Nascimento em Tropa II é indignado, ingênuo e verdadeiro, como a opinião política dos nossos tios). Tem também o comunicador bonachão, performático que traveste de indignação seu pensamento fascista; o professor universitário de esquerda, militante, sedutor e cheio de retórica; o governante inseguro e manipulável que, quando não chega, termina corrupto… Conhecemos uma dúzia de cada um desses personagens.

Em Carlos, os personagens são contingentes, aqueles que a história nos deu. E, não sendo exemplares de nada, são difíceis de apreender. Para saber do que estamos falando, temos que puxar pela memória o que representam figuras como Kaddafi, Arafat, Sadat, Husseim, ou cidades como Damasco, Tripoli, Bagdá, Beirute, Cairo, ou organizações como OPEP ou FPLP etc. Depois de quase seis horas de filme, ainda é preciso gastar mais algum tempo na wikipedia.

Em Carlos, nenhum personagem que tenha um nome é inocente por muito tempo. Só os figurantes são bons. O filme deixa claro que as alianças são amorais e que, de um instante para o outro, ex-inimigos se juntam para eliminar seus ex-aliados. Já aparece ali, por exemplo, a delicada cooperação entre os EUA e países e líderes ligados ao petróleo que, depois, passariam a representar o mal.

Se Capitão Nascimento já começa Tropa II na condição de herói, fica sob nossa responsabilidade saber exatamente em que momento Chacal deixou de ser o ideólogo marxista, vaidoso e atrapalhado em suas ações, para se tornar o mercenário frio, meticuloso e corrupto. Nesse sentido, o Capitão Nascimento era mais complexo em Tropa I, porque restava ali alguma ambiguidade entre os meios desumanos que adotava e os fins nobres que almejava.

Tanto Carlos quanto Tropa deixam a angústia de não saber como nomear o verdadeiro culpado.  O primeiro se limita a exibir, sempre como pano de fundo, o ponto de vista que se converterá na causa de Chacal, e que redefinirá seu alvo, a cabeça que está a prêmio. O segundo ainda tenta coordenar as coisas numa intrincada relação de causas e efeitos (e que sempre exige a intervenção da voz em off do Capitão Nascimento).

Para demostrar que não há simplesmente um vilão, Tropa de Elite II apela para a noção de “sistema”. Mas, sem querer enfrentar a complexidade desse conceito, o filme quase o transforma num personagem oculto, ou seja, novamente num vilão. É interessante demonstrar ao público que a corrupção é sistêmica, isto é, enraizada de modo insconsciente em ações muito distintas, alimentada por um conjunto complexo movimentos e de relações, mais do que por um centro de decisões. Desse modo, o poder é algo que circula de modo coordenado nas práticas cotidianas, aquilo que Foucault chamou de “microfísica do poder”.

Mas perceber um poder como sistema deveria ser uma forma de enfrentá-lo em suas sutilezas, não uma explicação sobre a impossibilidade de combatê-lo. O sistema, a estrutura, o organismo é algo mais abstrato, mas que ainda pode ser aprrendido por um conhecimento ajustado à sua complexidade. Mas Capitão Nascimento, esse herói rude, só consegue dizer “a culpa é do sistema” do mesmo jeito que se dizia “foi Deus quem quis assim”.

Mesmo que o filme estimule a pensar nesse fantasma que é o sistema, acho mais convincente o que parece se depreender do filme Carlos, quando ele evita grandes explicações: a idéia de que o poder é amoral, de que os movimentos da história têm algo de aleatório, de que as motivações por trás das alianças são sempre de imediatas, de que a ilusão de paz só pode ser alcançada no breve instante de inércia em que todos tem uma arma apontada para suas cabeças.

No final das contas, são dois filmes muito bem feitos, com escolhas estéticas diferentes. Tropa de Elite é sofisticado em sua linguagem. Equipara-se às boas produções norte-americanas no uso dos recursos técnicos e narrativos do cinema, algo que a maior parte dos filmes nacionais fica devendo. Carlos é simples, está longe de ser experimental, continua sendo um filme de ação feito para a TV. Equivale ao olhar atento que dedicamos ao jornal todas as manhãs, enquanto nosso pensamento não cessa de formular discretamente questões sobre um mundo que jamais chegamos a compreender.

– – –

Carlos deve chegar como série em algum canal brasileiro de TV ou, pelo menos, nos cinemas, numa versão de cerca de três horas prometia pelo diretor. Ouvi também notícias de que é possível baixar pela internet, com legendas em português.

A trilha do filme é incrível (Brian Eno, New Order, Wire, The Feelies, Chico Buarque & Pablo Milanez), mas não encontrei nem na Amazon. Se alguém souber de algo, avise.


Quando a verdade não importa

Por causa de uma reportagem sobre a autobiografia de Robert Capa, retornei às suas imagens e me detive sobre a polêmica fotografia do miliciano, na Guerra Civil Espanhola.

Robert Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950

Robert Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950

Senti quando o beijo de Doisneau foi desmascarado, e torci para que a tese da encenação na foto de Capa fosse apenas especulação. Mas os céticos – para quem realidade e fotografia são coisas sempre avessas – tinham razão, e nos olharam com um ar de “eu avisei!”.

Por vocação ou por obrigação, quase todos nós aprendemos a desconfiar das imagens. Dominamos seus códigos, suas armadilhas retóricas, suas estratégias de sedução.  Com a devida autoridade, temos passado também essa lição aos nossos alunos.

Robert Capa. Morte de um miliciano, 1936.

Robert Capa. Morte de um miliciano, 1936.

Mas voltei à fotografia do miliciano e percebi algo curioso: porque uma ponta de fé ainda persiste? Porque ainda sinto nessa imagem a mesma força? Por que ainda vejo aquilo que sei não ser verdadeiro? Ainda vejo um homem que corria na direção do inimigo como se quisesse impedir sozinho a entrada dos fascistas naquele vasto território. O tiro cujo impacto interrompe seu movimento e o lança na direção contrária. O instante da morte, quando a expressão de dor ainda não se desfez, quando a mão já deixa escapar a arma, mas ainda não o idealismo. O corpo que, tombando para trás, se projeta para o futuro e, ainda hoje, nos convoca para a sua luta. Nada disso é verdade, mas está tudo lá.

O que sustenta a imagem não é tal noção de verdade. Ela interessa à grande ciência que busca compreender realidades imutáveis: Newton descobriu a verdade sobre a atração dos corpos. Interessa também à pequena moral: a polícia descobriu a verdade sobre certo assassinato que comove o público. Uma coisa é tão estável que não precisa ser lembrada, a outra é tão insignificante que logo será esquecida.

As imagens operam no domínio da memória, que não é nem tão definitiva quanto a gravidade e nem tão efêmera quanto um fato televisivo. Ela persiste, sempre em movimento. As memórias mais intensas não almejam a verdade, caso contrário elas se esgotariam diante de uma prova. Elas estão aí para serem vividas em sua incompletude, repetidamente, e aquilo que lhes falta é exatamente o que permite a ela tocar o presente. Como diz Chris Marker, “uma memória total é uma memória anestesiada” (Sem Sol, 1983).

A foto de Capa não é intensa porque mostra exatamente o que ocorreu, mas porque mantém viva uma realidade, porque a torna memorável. Ela opera como os mitos.

Curioso que “mito” tenha se tornado para nós sinônimo de “mentira” (o documentário que denuncia a foto de Capa tem a mesma linguagem cientificista de um programa do tipo “mythbusters”, território de verdades inúteis e efêmeras). Uma narrativa não se torna mítica por ser verdadeira ou falsa, mas por ser o modo mais efetivo de fazer o passado atuar na busca de um sentido para o presente. Nunca foi importante saber se a Guerra de Tróia aconteceu tal e qual descrito na Ilíada. É parte da mitologia de nossos ancestrais, mas suas invenções são tão consistentes que, ainda hoje, recorremos a ela para pensar o que somos. Em contrapartida, quantas imagens mais verdadeiras a gente não esquece todos os dias?

Algumas imagens constituem uma espécie de mitologia, são aquelas que parecem deixar o tempo em suspensão. Ainda temos pela frente a luta que está prestes a ser perdida na foto de Capa. Mas temos também o amor que nunca cessa na foto de Doisneau.


Formas puras e abstrações pertinentes

Fragmento do texto de apresentação do livro Bonito – Confins do Novo Mundo, fotografias de Valdir Cruz. A exposição com 25 fotografias encontra-se na Galeria Lourdina Jean Rabieh, Avenida Gabriel Monteiro da Silva, 147, telefone 3062-7173.

“O que é real é a mudança contínua da forma:
a  forma é apenas uma visão instantânea da transição”
Henri Bergson

A fotografia é a primeira manifestação tecnológica na história das artes visuais e também é a linguagem que mais se reinventou nos últimos 170 anos. Um olhar retrospectivo nos possibilita entender que desde o princípio, os suportes e as tecnologias foram sucessivamente se modificando a fim de propiciar um resultado imagético cada vez mais convincente, verdadeiro e renovador. E a cada novo paradigma, temos a oportunidade de perceber o quanto o homem se esmerou em criar um registro técnico que também provocasse nossa imaginação.

É o caso das fotografias de Valdir Cruz publicadas nesta exposição (e no livro), que documentam a região de Bonito, Mato Grosso do Sul, conhecida como uma das mais belas do país. Um trabalho exaustivo, que exigiu muitas viagens e um mergulho na história e nas peculiaridades daquelas belezas naturais. Também impôs a necessidade de elaborar uma leitura própria das diferentes luzes tropicais do centro-oeste brasileiro, para conceber um ensaio que pudesse dar conta de algumas das singularidades visuais de Bonito com as características técnicas que definem o seu trabalho fotográfico.

Valdir Cruz, Nascente do Rio Bonito, 2009

Valdir Cruz, Nascente do Rio Bonito, 2009

Valdir Cruz tem uma trajetória bastante específica na fotografia brasileira. Iniciou sua formação técnica e estética nos Estados Unidos, sob orientação do mestre George Tice[1], que lhe deu uma sólida base para a compreensão de todo o processo fotográfico e possibilitou sua aproximação das matrizes de E. Steichen e, mais tarde, de Horst P. Horst, Mappelthorpe, entre outros. Para Valdir, é difícil pensar sua produção fotográfica sem a câmera de grande formato, sem a longa exposição que garante profundidade de campo e informações distintas nas diversas zonas de luz e sombra, sem uma revelação e impressão que lhe ofereçam quase todos os detalhes pré-visualizados. Dificilmente ele admite algum imprevisto ao longo da sua operação sequencial e clássica da fotografia.

Fotografar para Valdir Cruz é um ato que exige disciplina e rigor, é uma operação técnica sofisticada que requer concentração e conhecimento profundo das variáveis que envolvem o processo. Ele sabe que só assim é possível registrar uma imagem que tenha alguma essência transformadora, que traga alguma centelha que seja capaz de revesti-la com magia. Essa disciplina aprendida é que permitiu este ensaio desenvolvido com mais naturalidade e despojamento. Um conjunto de fotografias em que prevalece uma leveza e uma liberdade incomum, que se diferencia bastante dos seus trabalhos anteriores.

Em Bonito – Confins do Novo Mundo podemos conferir sua maturidade como artista, pois mesmo mantendo uma forte relação com a tradição da fotografia paisagista em preto e branco, ele soube incorporar à sua fotografia uma atmosfera poética que parece guiar com clareza as idéias que desenvolveu para este ensaio. Idéias que refletem uma consciência aguda do seu processo criativo.

Ele assumiu o encanto e o frescor das sensações fugazes. Sua composição é elegante e imaginativa. Nada escapa ao seu olhar atento que elabora um universo visual a partir de um mapa de procedimentos que revela formas puras e abstrações impertinentes, com estranhas e pulsantes luzes. Sua matriz de grande formato registra uma natureza exuberante, quase intocável. É possível perceber também que Valdir esperou pacientemente o momento em que toda a improvável ordem natural do cotidiano entra em revolução e explode na beleza da sua fotografia. Ele descobre certas estruturas visíveis e cria uma conexão entre elas; concentra na imagem uma força desconcertante que excita nossos sentidos.

Claro que o caráter documental que permeia sua obra não se constitui aqui um obstáculo à expressão de sentimentos e emoções, mas o deslocamento provocado pelo ambiente in natura de Bonito parece que exigiu uma preocupação estética e plástica diferenciada dos seus trabalhos anteriores. Estas fotografias de Valdir Cruz tem o poder de nos conduzir a um novo patamar de percepção, distribuído em diferentes camadas, a partir de uma superfície, a água, que reflete e refrata a luz.

Valdir Cruz, Encontro de Exus, 2008

Valdir Cruz, Encontro de Exus, 2008

Diante de algumas fotografias, como por exemplo, a surpreendente Encontro de Exus, temos uma sucessão de eventos amalgamados em simultaneidade. A primeira impressão é de estranhamento, pois é uma imagem ruidosa e com ricos detalhes. O resultado fotográfico exige concentração para entender a imprecisão dos contornos, os diferentes tempos reunidos no mesmo espaço, ou as diferentes paisagens que integram a mesma fotografia.

Valdir Cruz não esqueceu o legado dos grandes mestres da fotografia, e realizou um ensaio que sintetiza uma experiência imersiva puramente visual. Um perfeito equilíbrio entre intuição e intelecto. Bonito – Confins do Novo Mundo é um ensaio inovador, resultado de décadas de trabalho lapidado e testado em diferentes temáticas. Se “a técnica é o exercício da sinceridade” como defendeu o poeta Ezra Pound, Valdir Cruz trouxe para este trabalho toda sua experiência. Potencializou com sua competência técnica e seu olhar sensível, a força invisível que organiza e alinha os diferentes objetos – pedras, folhas, seixos, galhos, peixes, entre outros – que ao serem fotografados parecem conduzir ao devaneio nosso olhar de espectador.

Valdir Cruz, Rio da Prata, 2008

Valdir Cruz, Rio da Prata, 2008

Forma, tempo e movimento. Estas são algumas das variáveis que Valdir Cruz combina com maestria neste ensaio e é isso que torna sua fotografia diferente e estranhamente harmoniosa. A verdade é que ele conseguiu com seu inesgotável repertório de formas, enquadradas num tempo alongado, instaurar uma relação privilegiada com o sagrado. Uma espécie de exatidão e beleza. Uma trama delicada e, ao mesmo tempo, densa e leve, desorganizada e equilibrada. Por exemplo, essa água que se torna espelho – Rio da Prata –, que reflete o céu e as nuvens, a floresta e a mata, também viabiliza ver suas profundezas através da transparência. Quantas culturas estão impregnadas nestas fotografias? Que espécie de palimpsesto ele conseguiu inscrever nestas fotografias?

A natureza é extremamente complexa e a de Bonito registrada neste ensaio em particular, torna-se imagem à qual nós podemos entender melhor o seu sentido e sua força espiritual. Esse movimento natural que a cada instante transforma o mundo visível é que interessa ser registrado. Na verdade, o lapso entre momentos singulares que por um acaso qualquer, faz tudo movimentar e gerar uma imagem que desperta o interesse do artista.

De modo geral, o ensaio produz um efeito paralisante que nos deixa atônitos porque as fotografias parecem enigmas imobilizados diante dos nossos olhos. Daí, nossa admiração confessa, pois a esfera onírica é evocada. Marcel Proust escreveu que “a verdadeira viagem de descoberta consiste não em procurar novas paisagens, mas em possuir novos olhos”. E foi exatamente isso que moveu Valdir Cruz neste trabalho pois ao mesmo tempo que evitou a imagem apressada e vulgarizada do mundo contemporâneo, buscou registros que impressionam pela densidade temporal, pela desintegração das formas, pela provocação do espanto e do fantástico quase inesperado naquela paisagem ancestral.


[1] George Tice (1938, Newark, New Jersey), fotógrafo norte-americano, professor da Maine Photographic Workshops, desde 1977.

 


A tensão crítica entre a palavra e a imagem

No trabalho que levou à Bienal, Jonathas de Andrade toma como referência uma série de cartazes propostos pelo educador Paulo Freire para a alfabetização de adultos, e estabelece relações entre novas imagens e palavras a partir de conversas que manteve com um grupo de mulheres analfabetas (vejam mais informações no site do artista).

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Jonathas de Andrade, Educação para Adultos, 2010.

Barthes disse uma vez que a língua é fascista, não porque impede de dizer, mas porque obriga a dizer (Barthes, A aula).  Usar uma palavra é filiar-se a uma estrutura cuja tradição espera impor um sentido. Cabe ao artista atuar em suas brechas, arrancar dela as ambiguidades e os contrassensos possíveis. Não só a poesia, mas também as artes plásticas conseguem às vezes explorar essa potencialidade da palavra.

Marcel Duchamp recorre à linguagem verbal de modo “sistematicamente irresponsável”. Ali onde se espera que a palavra apare arestas do discurso e ofereça maior precisão, os títulos, legendas e comentários de Duchamp fazem da obra um mecanismo repleto de folgas e solavancos. Um título como “A noiva despida por seus celibatários, mesmo”  (obra apelidada de “Grande Vidro”), tem sido objeto de debates inesgotáveis, mesmo depois de quase um século.

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La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), 1915-23; La Boîte verte (Caixa Verde), 1934, com desenhos e notas sobre a obra "A noiva...".

Como diz Octavio Paz comentando a obra de Duchamp: “o jogo de palavras é um mecanismo maravilhoso porque em uma mesma frase exaltamos os poderes de significação da linguagem só para, um instante depois, aboli-los completamente” (O. Paz, Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza).

Magritte, A traição das imagens (Isto não é um cachimbo), 1928-29.

Magritte, A traição das imagens (Isto não é um cachimbo), 1928-29.

René Magritte mergulha na filosofia da linguagem, e expõe suas artimanhas de um modo tão simples quanto certeiro.

Num só gesto, Magritte desfere um duplo golpe: de um lado, ele nos lembra que o cachimbo é ali apenas uma imagem. Parece óbvio, mas o poder opressor da imagem reside na dificuldade que temos de percebê-la como tal, como representação.  De outro lado, como lembra Foucault, essa obra retira a linguagem do automatismo que parece tornar seu sentido natural, e demonstra que a palavra tem o poder de “dizer o que quer”,  apontando “sua própria autonomia diante daquilo que ele nomeia” (Foucault, Isto não é um cachimbo).

Como fará Jonathas de Andrade, Magritte também jogou com a forma das cartilhas de alfabetização.

René Magritte, La clef des songes, 1930

René Magritte, La clef des songes ("A chave dos sonhos": a acácia, a lua, a neve, o teto, a tempestade, o deserto), 1930

Ao mesmo tempo em que nos convida a imaginar que um objeto poderia ser chamado por outro nome, ele nos lembra – flertando também com o surrealismo – que o insconsciente é um lugar em que as ligações entre signos e coisas podem ser tão livres quanto poderosas.

O jogo entre imagem e palavra que Jonathas de Andrade cria em “Educação de Adultos” é bastante sutil, está longe do aparente nonsense que muitas vezes faz as obras de Duchamp ou Magritte parecerem herméticas.  Aqui, não chega a haver contradição: os objetos sugeridos pelas palavras estão também ali, visivelmente referenciados pela imagem.

Jonathas de Andrade, Alfabetização para Adultos, 2010

Jonathas de Andrade, Alfabetização para Adultos, 2010

Levando adiante o método emprestado de Paulo Freire, Jonathas de Andrade espera ir além do contrato – a relação arbitrária das palavras – que as cartilhas estabelecem. Exige-se das linguagens que elas sejam usadas num embate mais efetivo com a realidade.

Desse modo, palavras e imagens deixam de ser representações abstratas, tornam-se apropriações de fragmentos de experiências, apontadas por conversas que o artista mantém com o grupo de mulheres.

Algumas das relações que vemos parecem óbvias, mas basta dar alguns passos para trás, ampliar o enquadramento que fazemos da obra, situar como fundo não a parede da Bienal, mas a história recente do país, e veremos o poder crítico desse trabalho. Essa contaminação com a realidade multiplica irreversivelmente os sentidos da obra, e nos convida a extrapolar as relações propostas em cada cartaz. Ao se tornar “lúdico”, o trabalho se torna também “político”, duas qualidades que a pedagogia sempre valoriza, mas que raramente consegue conciliar.

Se a linguagem pode ser fascista, é preciso saber que nem toda alfabetização é libertária. Em princípio, ela visa garantir a compreensão e o cumprimento de uma ordem. Para ser libertária, a alfabetização deve estimular no uso da linguagem algum nível de abertura.

Voltando à Barthes: “só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (A Aula).


A série “Educação para adultos” pode ser vista na Bienal de S. Paulo, em cartaz até o próximo fim de semana (12/12). Vale ver também a entrevista que Jonathas de Andrade concedeu ao Olhavê.


Arqueologia de um filme de Godard

O Dobras Visuais lançou uma pergunta a uma série de convidados: qual imagem chacoalhou você na 29a Bienal? Vale a pena conferir as respostas.

Escolhi Je vous salue, Sarajevo, de Jean-Luc Godard, filme de pouco mais de dois minutos em que Godard disseca uma fotografia feita durante a guerra nos Balcãs, na antiga Iugoslávia.  Mandei para o Dobras um breve comentário. Aqui, deixo um relato sobre a aventura que foi mergulhar nesse pequeno filme.

Pensar qualquer obra de um artista erudito implica fazer uma espécie de arqueologia. Você encontra coisas surpreendentes em lugares inesperados, e algumas peças sempre ficam faltando. Para começar, decidi fazer minha própria tradução do filme, pelo exercício de mergulhar nas palavras. Procurando o texto, descobri que ele já é uma colagem de outros textos.

O filme começa com uma fala sobre o medo, extraída da peça Dialogue des Carmelites,  adaptada em 1949 por Georges Bernanos, escritor que viveu no Brasil durante a Segunda Guerra: “Num certo sentido, paúra é filha de Deus (…) Ela vela cada agonia, ela intercede pelos homens”. Na peça de Bernanos, uma religiosa enclausurada reivindica a idéia de que o medo, como fraqueza, não é ofensiva a Deus, ao contrário, o medo a tornaria “irmã de Cristo em sua agonia”.

Ao final, a bela estrofe extraída de um poema de Luis Aragos (do livro Le Crève-Cœur, de 1941), que traz um pensamento sobre a morte: “Quando for preciso fechar o livro, farei isso sem nada lamentar. Vi tanta gente viver tão mal, e tanta gente morrer tão bem”.

Essas duas falas, inserem o filme numa perspectiva trágica: o medo faz parte da vida, e a morte pode terminar como uma aliada.

O filme destaca fragmentos de uma única fotografia, que apenas ao final é mostrada integralmente. Nessa imagem, vemos três soldados sérvios, um deles prestes a chutar a cabeça de uma mulher caída no chão. Diz Godard: “a cultura é a regra, a arte é a exceção”. A “Europa da cultura” impõem a sua regra, e mata a “arte de viver”. Não há o que celebrar nesse projeto de civilização que se desenvolve ao preço da intolerância, como a imagem não cessa de mostrar.

Isso me remeteu ao livro de Susan Sontag, Diante da dor dos outros. Lá reencontrei uma descrição da mesma imagem que está no filme (o que permitiu também identificar o autor). Diz Sontag sobre essa imagem:

Foto de Ron Haviv, da série "Blood and Honey" (Bijeljina, Bósnia, 1992).

Foto de Ron Haviv, da série "Blood and Honey" (Bijeljina, Bósnia, 1992).

“Narrativas podem nos levar a compreender. Fotos fazem outra coisa: nos perseguem. (…) vemos um miliciano sérvio uniformizado, um jovem com óculos escuros no alto da cabeça, um cigarro entre os dedos médio e anelar da mão esquerda levantada, um rifle que pende da mão direita,  a perna direita em posição de chutar o rosto da mulher deitada, de cara para baixo, sobre a calçada, entre dois corpos. (…) Na verdade, a foto nos revela muito pouco – exceto que a guerra é um inferno e que rapazes bonitos armados são capazes de chutar a cabeça de mulheres velhas e gordas que jazem indefesas, ou já mortas” (Sontag, Diante da dor dos outros, 2003).

A descrição de Sontag não vem acompanhada da imagem, mas quase parece comentar a sequância de fragmentos que vemos no filme. Por sua vez, Godard, que disseca a fotografia, opta por um texto descolado da imagem. Sua estratégia é a montagem num sentido primordial, que aproxima detalhes da foto, textos e um trecho da música Silouans Song (1991), de Arvo Pärt.

Imagem final de "Je vous salue, Sarajevo"

Imagem final de "Je vous salue, Sarajevo"

Em todo precurso arqueológico restam lacunas. Há uma segunda imagem que encerra o filme, sobre a qual não encontrei nenhuma referência*: uma pessoa que se curva sobre um objeto que também não conseguimos identificar, uma espécie de bloco que segura com certa tensão sobre o colo. Pouco se pode dizer sobre essa imagem. Fica apenas certa sensação de angústia, de clausura, o recolhimento de alguém que renuncia à vida. Essa imagem desaparece como um olho que se fecha.

As descobertas sobre o filme vão se encaixando. Mesmo assim, aquela cena de violência jamais fará sentido. Ela sugere que a história da cultura nos conduz a um beco sem saída. Restam a arte e a morte.

* Nos comentários a esse post, Paulo Miyada nos dá informações detalhadas sobre esta última imagem (23/05/11)


O tempo que passa ou a inquietação dos sentidos

Acompanhei de perto as publicações sobre os 30 anos da morte de John Lennon. Invariavelmente, lembrei-me de uma frase dele que diz mais ou menos assim: “enquanto você sonha com o futuro, sua vida acontece”. Para nós, o tempo passou rapidamente, mas para ele o tempo foi interrompido. Ou parou? Parece incrível! Conhecemos muitas fotografias do Beatle mais talentoso e rebelde, mas fico chocado com a imutável juventude fixada nas imagens. Claro, mito morre cedo e jamais envelhece. E minha geração não só perdeu John Lennon, como também Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morinson. Todos muito jovens.

Fico impressionado cada vez que me deparo com suas fotografias. Tempo congelado e memória afetiva. Inquietação dos sentidos. O tempo é cruel apenas com aqueles que ficam por aqui, insistindo na duração e na permanência. Vilém Flusser em suas reflexões deixa claro que nós, humanos, criamos a comunicação, um artifício que dribla o medo que temos da solidão e da morte. Por isso mesmo também criamos e desenvolvemos tecnologias que registram imagens e sons para que as futuras gerações possam nelas se reconhecer. Na verdade, as fotografias permitem expandir nossa existência na vida dos outros. As novas gerações com certeza conhecem o som revolucionário do final dos anos sessenta e as fotografias que permaneceram para todo o sempre. Este é o poder imagético que se revela, quase sempre nos interstícios entre presença e ausência, passado e presente.

No dia 8 de dezembro de 2010, exatamente no dia do assassinato de John Lennon, a Globo News Document exibiu uma bela matéria conduzida pelo repórter Sidney Rezende entrevistando o fotógrafo brasileiro Luiz Garrido, que conviveu com John Lennon e Yoko Ono no ano de 1969. É comum afirmarmos que a história da fotografia é, metaforicamente, um imenso iceberg, do qual apenas uma minúscula ponta é conhecida. Com exceção de algumas fotografias publicadas na saudosa revista IrisFoto, em 1974 (Garrido não se recorda precisamente do ano da publicação) era quase desconhecida a relação casual entre Luiz Garrido e o casal mais famoso dos anos setenta.

Embalado pelo movimento estudantil de 1968 em Paris, Garrido cursou e abandonou a Faculdade de Economia (os professores eram Celso Furtado, Josué de Castro, entre outros) e foi viver a experiência Blow Up, típica daqueles que entenderam que o momento era viver a intensidade e o glamour proporcionado pelo poder da imagem. Frequentou a Escola Nacional de Fotografia Francesa, cuja orientação era uma boa formação técnica sob a coordenação dos engenheiros da Kodak Pathé (associação empresarial de muitos anos na França). Como isso não bastava, foi trabalhar como free lancer para publicações brasileiras.

Silvio Silveira, então Diretor Comercial da antiga revista Manchete, lhe fez um provocatico desafio: “o John Lennon está em lua de mel aqui em Paris e vai encontrar o Salvador Dali no Hotel Plaza Athenée. Porque vocês não tentam fazer uma matéria?” Na ocasião, o jornalista que acompanhava Luiz Garrido era o Carlos Freire, hoje um dos mais importantes nomes da fotografia brasileira em atividade do exterior. Após dois dias de espera do lado de fora do hotel, ao lado de centenas de outros jornalistas, Garrido escreveu um bilhete para John Lennon e desenhou uma flor. Foi exatamente esta mensagem que cativou o ainda Beatle que o convidou a subir no apartamento e acompanhá-lo por algum tempo.

John e Yoko, por Luiz Garrido

John e Yoko, por Luiz Garrido

Depois disso, foi à Amsterdã a convite do casal que lançava o movimento Bed and Peace, e quando encerrou a entrevista coletiva John Lennon publicamente enfatizou: “você fica”. Uma nova oportunidade e passaram a tarde juntos trocando idéias. Depois disso, uma semana em Londres convivendo com eles – conversando, comendo juntos e fumando um. Garrido percebeu que a iniciação política de Lennon, vinha através das idéias de Yoko que o provocava para aproveitar sua imagem de ídolo globalizado para potencializar alguma revolução.

Foram ao Canadá, pois os EUA proibiram sua entrada no país, e o movimento pela paz cresceu. Quando voltaram para Londres, novamente Garrido estava ao lado de Lennon que, naquele período, fazia pequenas alterações na letra e mixava a música Give Peace a Chance e recebia a visita de Ringo Star, Mick Jagger e Keith Richard. Na época, Garrido era apenas um jovem que estava vivendo a raridade do instante. Hoje, as mais de 300 fotografias em preto e branco, realizadas entre março e setembro de 1969, são o registro de uma época e, simultaneamente, o documento de um momento histórico para o Rock and Roll.

Depois desses meses de convivência, Garrido e Freire venderam a matéria para a Manchete e foram finalmente contratados pela revista. Sem noção da importância do que documentara, Garrido conservou os negativos, e agora, assediado pela imprensa internacional, procura a melhor oportunidade para compartilhar suas fotografias. Hoje, neste mundinho em que qualquer celebridade vira-lata tem um exército de seguranças, o jovem fotógrafo dificilmente poderá ter alguma experiência parecida com a de Garrido. Vale a pena clicar no link e conhecer um pouco mais desta aventura incomum de um fotógrafo que se tornou uma referência da fotografia brasileira, particularmente no gênero retrato, um gênero que o consagrou ao longo de sua trajetória artística.


O olhar trágico através da lente

Os pensadores chamados trágicos – como Nietzsche – sugerem que não há no mundo nenhuma força que conspire espontaneamente a nosso favor. O nitzscheano Clément Rosset  (A lógica do pior, 1971) vai um pouco mais longe. Ele diz que, vez ou outra, quando menos esperamos, esse mesmo mundo nos brinda com certa ironia, fazendo com que o trágico beire o cômico. É o que ele chama de “riso exterminador”.

No começo deste ano, acompanhamos a notícia sobre um vereador filipino, Reynaldo Dagsa, que, ao fazer uma foto de sua família na comemoração do ano novo, registrou também um homem que lhe apontava uma arma. Ele foi baleado ali mesmo e morreu logo em seguida.

Familia de Dagsa. À esquerda, apontando a arma, o homem que foi identificado como Michael Gonzales.

Familia de Reynaldo Dagsa. À esquerda, apontando a arma, o homem que foi identificado como Michael Gonzales.

Dagsa era um amador, queria apenas celebrar um ano bom com sua família. Para ele, o acaso surgiu como uma espécie de fantasma que a câmera foi capaz de tornar visível, num gesto tão fora de lugar quanto definitivo. Esse é o tipo de ironia de que fala Clement Rosset (em seu exemplo, ele remete aos que embracaram na primeira classe do Titanic para celebrar o progresso, que havia permitido construir um navio “inafundável”, conforme dizia o folheto publicitário).

Amadores ou profissionais, a câmera sempre mantém alguma independêcia de nossa consciência. Não raramente, o acaso nos envia esse recado e descobrimos em nossas fotos coisas que nos surpreendem. Mesmo que essas presenças tenham sempre algo de assombroso, esse é um dos prazeres da fotografia.

Contra tal ironia, muitos que trabalham com imagens assumem essa perspectiva trágica e aceitamos seus riscos. Se for o caso, olham a morte de frente quando a encontram. É o que acontece com Emilio, fotógrafo e cinegrafista do belo filme La puta y la ballena (Luis Puenzo, 2004),  que filma sua própria morte na Guerra Civil Espanhola.

Por mais que pareça inverossímil, a realidade também sabe jogar com as improbabilidades. Talvez a inspiração do personagem de Puenzo seja o cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen, que buscou com sua zoom aqueles que ele certamente intuiu que seriam seus assassinos. Ele cobria no Chile o levante militar de junho de 1973 que ficou conhecido como Tanquetazo, e que já dava o tom daquela que viria a ser uma das mais violentas ditaduras da América Latina, iniciada alguns meses depois.

Para o olhar verdadeiramente trágico, esses acasos permanecem imprevisíveis, mas já se anunciam como expectativa.  Todo fotógrafo que aceita se confrontar com a realidade cultiva em alguma medida esse olhar e tende a fazer da exceção a regra que move sua arte, sejam os pequenos acidentes que se revelam lúdicos, sejam as injustiças que se tornam catastróficas.


João Castilho é mestre

Em dezembro de 2010, eu postei no Twitter: “João Castilho é mestre”. Várias pessoas concordaram e algumas acrescentaram outros adjetivos. Os elogios eram merecidos, Castilho já demonstrou seu talento como artista, mas minha afirmação era um pouco mais literal. Eu tinha acabado de participar de sua banca de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais, onde ele apresentou a dissertação “A fotografia entrópica de Robert Smithson”.

Não é tão óbvio encontrar um artista com vocação e disposição para a pesquisa acadêmica. Ainda vemos bons programas de pós-graduação acolhendo artistas que não vêem nenhuma distinção entre a universidade e o ateliê, e que acabam por eleger a si mesmos como tema, justificativa e método de toda a pesquisa.

Castilho bem que poderia, mas em seu mestrado não quis se deter em sua produção. Não precisaria, mas optou por debater um tema delicado e ainda mal assentado na história: a produção fotográfica pouco conhecida de Smithson, artista norte-americano consagrado por suas intervenções em espaços naturais e urbanos, e que morreu aos 35 naos de idade, no auge de sua carreira. Para nós, é um tema pouco confortável porque em seus trabalhos mais conhecidos – como o Spiral Jetty – a fotografia parece ser um mero registro de suas ações.

Spiral Jetty (1970), intervenção de R. Smithson em Salt Lake, no est

R. Smithson, Spiral Jetty (1970).

Pode nos parecer pouco, mas esse representa um momento importante de afirmação do diálogo entre a fotografia e as outras linguagens que, nessas últimas décadas, passaram a conviver indistintamente dentro dentro dos espaços dedicados à arte. Como diz João Castilho:

“Smithson se opôs, sistematicamente, à ordem estabelecida da arte modernista e a todas as ortodoxias. Tinha como objetivo claro expandir o campo de sua atuação e implodir as fronteiras das diversas categorias de arte e dos limites de suas instituições. Nada mais natural que começasse a usar a máquina fotográfica.

Esse projeto de renovação artística implicava, em um primeiro momento, um rompimento com a prática dos cânones da fotografia da época, e, depois, a convivência da fotografia com todos os outros meios disponíveis aos artistas daquele período. A fotografia deveria conviver com as outras formas artísticas, sem hierarquização”.

De um lado, a pesquisa não se limita às obras mais conhecidas de Smithson. De outro, tenta demonstrar que a fotografia não era para ele assim tão assessória quanto pensamos. Para isso, Castilho mergulha em relatos biográficos e depoimentos deixados pelo artista, recorrendo a uma bibliográfia quase desconhecida no Brasil. Foi uma surpresa descobrir como Smithson falava com profundidade sobre seu tempo e sua arte. E, mesmo que tenha optado por usar sempre uma câmera amadora (uma Instamatic 400), não deixou de pensar com propriedade sobre o sentido histórico e cultural do meio a que recorria.

R. Smithson, Photo-Markers, 1968.

R. Smithson, Photo-Markers, 1968.

A estrutura da dissertação de Castilho é simples: começa com uma contextualização ampla da produção do artista e termina com uma análise em profundidade de algumas obras escolhidas. No meio disso, foi preciso abordar um conceito tão difícil quanto importante, entropia, que Smithson toma emprestado da física moderna para criar uma chave crítica que permite pensar muitas das transformações vividas pelo século XX. É difícil e distante do nosso vocabulário, mas vale deixar um parágrafo sobre o tema.

A primeira lei da termodinâmica diz que a energia não se perde, se transforma. No entanto, a segunda lei diz que o aproveitamento dessa energia depende de uma ordem que tende a se desfazer contínua e irreversivelmente, conduzindo à sua “morte térmica” do sistema em questão.  Esse acréscimo de desordem equivale ao aumento de entropia. Por exemplo, quando se coloca em contato porções de água quente e de água fria, a distinção de temperatura cria um fluxo ordenado de moléculas que permite explorar a energia desse sistema. Ele se tornará “morto”, atingirá seu grau máximo de entropia quando esse contato resultar irreversivelmente em uma única porção de agua morna. A desordem medida pela entropia tem a ver com um estado de indistinção de formas e de fluxos, de nivelamento, de esgotamento, de degradação, de incapacidade de produção de estímulos, tendência espontânea da natureza contra a qual o ser humano, com sua força construtiva, acreditou poder lutar.

Smithson constata, no entanto, o fracasso desse esforço. Isso podia ser visto em Passaic, sua cidade natal no estado de Nova Jersey, que era naquele momento uma espécie de grande ruína gerada pelo próprio esforço organizador do progresso. Ele reencontrou ali uma paisagem em que tudo remetia à noção de entropia, e realizou um importante trabalho que envolveu mapas, fotos e textos, resultados que ele chamou de “monumentos”, como explica Castilho:

“Os monumentos de Passaic parecem, inicialmente, não ser monumentos. Onde já se viu tubos, canos, pontes, parquinhos serem monumentos? O que teriam essas construções a ver com com as gloriosas edificações em homenagem a tempos gloriosos? Os monumentos de Passaic estão todos vazios, esvaziados de toda memória. Nenhuma presença humana, nenhuma referência histórica. Em Passaic, a ordem e a irracionalidade da sociedade industrial fracassaram no caos e na catástrofe. As estruturas sucumbiram na desintegração. Estes seriam, então, monumentos erigidos à entropia”.

R. Smithson, Monumentos de Passaic, 1967.

R. Smithson, Monumentos de Passaic, 1967.

Em sua conclusão, de modo muito discreto, Castilho introduz seu próprio trabalho para mostrar algumas afinidades que descobriu e cultivou com Smithson. Antes mesmo de definir o tema de sua pesquisa, Castilho havia começado a série denominada Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína, de 2007, título que também aponta para a idéia de um esgotamento precoce das paisagens.

João Castilho, Aqui tudo parece que ainda é cosntrução mas já é ruína, 2007

João Castilho, Aqui tudo parece que ainda é cosntrução mas já é ruína, 2007

Smithson parece ter oferecido a Castilho uma linha de pensamento crítico que deu ainda mais consistência ao seu trabalho. O debate em torno do conceito de entropia se tornou nítido em suas obras posteriores, como no vídeo Abalo, de 2010, e nas imagens que compõe seu mais recente livro, Peso Morto, também de 2010, realizado em parceria com escritores convidados.

João Castilho, Abalo, 2010

A identificação entre Castilho e Smithson não se resume ao tema “entropia”. Temos nessa pesquisa o feliz encontro de dois jovens artistas de gerações e lugares distintos, que se destacam não só por suas produções plásticas mas também pela densidade de suas reflexões.

Além de oferecer uma escrita clara, sem maneirismos, Castilho fez ainda uma apresentação muito tranquila e segura para a banca, composta pela orientadora da pesquisa, Maria Angélica Melendi (UFMG), Eduardo de Jesus (PUC-MG) e eu. Todos destacaram o ineditismo da pesquisa e recomendaram que o trabalho fosse publicado. Vamos torcer para que isso aconteça logo.


Norman Rockwell – behind the camera

estudo auto retrato

Triplo aurretrato, 1960 – capa The Saturday Evening Post, 13 de fevereiro de 1960

O universo da imagem sempre nos surpreende. Há algumas semanas, visitando a exposição do ilustrador Norman Rockwell (1894-1978), no Brooklyn Museum, em NYC, mais um mistério é desvendado. A exposição torna pública, pela primeira vez, o uso da fotografia nos trabalhos daquele que é considerado o maior nome do desenho e da ilustração norte-americana entre as décadas de 1930 e 1970. Aliás, é na década de 1930 que ele incorpora a fotografia em seus trabalhos e a exposição, com curadoria de Ron Schick, desvenda todo o mistério – seus parceiros fotógrafos, alguns dos seus episcópios (projetores) utilizados para ampliar as imagens, a cópia contato, a direção de cena, enfim todos os procedimentos que o transformaram no artista que melhor soube trazer o imaginário do cidadão norte-americano para a publicidade e para as capas das principais revistas do país.

estudo menina no espelho

Girl at mirror, 1954 – capa de The Saturday Evening Post, 6 março de 1954

Rockwell trabalhou durante 47 anos para a revista The Saturday Evening Post e assinou 323 capas neste período. Ele também trabalhou com diversos fotógrafos durante os mais de 40 anos em que usou a imagem da câmera como matriz do seu desenho e da sua pintura, mas apenas três são os responsáveis pela maioria das fotografias de seu arquivo que hoje ultrapassa o número de 18 mil negativos, devidamente catalogados e arquivados no Norman Rockwell Museum, em Stockbridge, Massachusetts, responsável inclusive por manter por tanto tempo o segredo da originalidade do trabalho de Rockwell.

Gene Pelham (1909-2004) foi fotógrafo de Rockwell durante 14 anos, quando ele morou em Vermont. Pelham utilizou inicialmente uma câmera 5X7 polegadas e mais tarde a 4X5 polegadas, e produziu fotografias de excepcional qualidade, já que assumia a função de criativo assistente e ótimo laboratorista. Bill Scovill (1915-1996) foi o primeiro fotógrafo com quem Rockwell trabalhou em Stockbridge. Diferentemente de Pelhman, que também era modelo, Scovill era tecnicamente eficiente e ajudava-o a contratar fotógrafos locais quando viajavam. Ele colaborou na criação de 160 ilustrações e documentou toda a atuação de Rockwell na direção dos personagens no estúdio. Louie Lamone (1918-2007) foi inicialmente contratado para ajudá-lo em sua mudança para Stockbridge e aos poucos se tornou seu assistente geral. Lamone trabalhou com Rockwell durante 23 anos, mas começou a fotografar somente em 1961, tornando-se primeiro fotógrafo em 1963. Os dois últimos também utilizavam a câmera 4X5 polegadas e o 35mm para selecionar modelos e locações.

3 fotografos rockwell

Seus três fotógrafos: Bill Scovill, Gene Pelham e Louie Lamone (da esquerda para a direita)

No início da sua carreira, Rockwell contratava modelos profissionais que, aos poucos, foram sendo substituídos por pessoas que viviam ao seu redor: os amigos e seus filhos, familiares e vizinhos. Isso gerou uma aproximação e uma cumplicidade muito grande entre o artista e os leitores das revistas ilustradas – os principais veículos de comunicação de massa na década de 1930. É incrível perceber, através das fotografias selecionadas para a exposição, sua intensa participação na criação das imagens e o modo como ele utilizava diferentes artifícios para dar conforto aos seus modelos não profissionais. Dizia ele: “eu retrato humanos com cara de humanos”.

Outra curiosidade trazida pela exposição é que Rockwell sempre procurava se posicionar muito próximo da câmera fotográfica. Além de estar presente na cena e controlá-la em suas nuances, isso facilitava muito sua transcrição para o papel, ocasião em que ele fazia os pequenos ajustes para eliminar os excessos e valorizar as expressões e os movimentos congelados pela câmera fotográfica. Esse anúncio – First Trip to the Beauty Shop, de 1972 – é um exemplo típico de como ele soube explorar o uso da fotografia para criar uma iconografia das mais emblemáticas do povo norte-americano.

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First Trip to the Beauty Shop, 1972

Sabemos da relação íntima entre a pintura e a fotografia e conhecemos a importância da fotografia nos trabalhos de Delacroix, Ingres, Courbet, Gauguin, Degas, Picasso, entre outros. Norman Rockwell tinha conhecimento de que, já antes do Renascimento, muitos artistas trabalharam diretamente com a camara obscura e isso nunca foi um obstáculo para ele. Seus cenários arranjados lembram as composições de Robinson e Rejlander do século XIX ou mesmos as encenações contemporâneas de Cindy Sherman e Jeff Wall. Rockwell, assim como Rejlander, também finalizava suas imagens a partir de vários fragmentos fotografados separadamente. Enfim, os procedimentos em busca da perfeição, da meticulosa precisão, dos ângulos necessários para enfatizar os olhares da cena, da iluminação correta, evidenciam sua atenção para a importância da fotografia, essência primeira de sua arte.

Norman Rockwell deixou sua obra muito bem documentada e a maioria dos fotógrafos contratados para trabalhos específicos, além dos seus três preferidos, estão devidamente nomeados. Isso significa que ele assumia a fotografia como parte do seu processo criativo e com certeza muitas delas devem ser de sua própria autoria, mas ainda não estão identificadas. De qualquer modo, é sempre bom lembrar que ele foi um exímio desenhista desde criança. Em um dos seus diários de trabalho ele escreveu: “eu desafio qualquer um a me mostrar quando comecei a usar fotografia. Afinal, sempre fui conhecido como o garoto com olhos de câmera”.

Confesso, sempre admirei o trabalho de Norman Rockwell (talvez por ser tão fotográfico) e conheço alguns dos seus principais livros, mas jamais tive com clareza a evidencia fotográfica que mostra esta exposição.

estudo circo

Circus, 1955 – um dos 81 desenhos de propaganda criados durante 10 anos para a Massachusetts Mutual Life Insegurance Company. Rockwell é o que está em pé na fotografia

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Leaving the Hospital, 1954 – fotografia produzida para ilustrar uma peça publicitária





A imagem do ano do World Press Photo

Revista Time, 19/07/2010

Revista Time, 19/07/2010

Fiquei surpreso com a foto escolhida como “imagem do ano de 2010” pelo World Press Photo: o retrado feito pela sulafricana Jodi Bieber da jovem afegã Aisha, que teve seu nariz e orelhas decepados pelo marido, com o apoio do Taleban.

Lembro bem de quando a imagem circulou pelo mundo no ano passado depois de ser publicada na capa da revista Time. É desse tipo de cena que você olha com o estômago e só consegue responder com o silêncio.

Foi uma experiência forte, sem dúvida, mas em momento algum senti que estava diante de uma grande fotografia. Ela é boa talvez no sentido de demandar credibilidade e de dar expressão à gravidade do fato. Mas nada muito além disso.

Vamos então refletir um pouco mais sobre essa imagem, sobre sua publicação pela Time, sobre o prêmio recebido. Não tenho clareza do que penso. Acreditem, vou tentar entender enquanto escrevo.

– A imagem expõe o resultado da violência sem nenhum pudor. Sensacionalismo? A imagem é sem dúvida “apelativa”, no duplo sentido do termo: é um clamor e uma superexposição. Difícil saber se uma coisa justifica a outra, isto é, se a necessidade de trazer algo à nossa consciência justifica a carga excessiva colocada sobre nosso olhar. Mas essas duas coisas estão lá, tanto pior se fosse apenas a segunda. Como assume o editor, “nossa imagem de capa desta semana é forte, impactante e perturbadora”. Não é só isso. Sem nenhuma ingenuidade, eles estão bancando ali uma quase propaganda (de guerra): “o que acontece se deixarmos o Afeganistão”, diz a chamada, referindo-se à discussão sobre o fim da intervenção política e militar dos EUA no país do oriente-médio. A imagem é a resposta.

– Não é apenas a violência que nos perturba. É sua proximidade. O Afeganistão continua longe e, em princípio, ainda estamos “diante da dor dos outros” à qual normalmente reagimos com um misto de repulsa e curiosidade. Mas, nesse caso, há algo diferente, um vínculo forte com o ocidente. Não só porque os EUA estão no Afegaistão (esse é o tema da reportagem da Time), ou porque a garota já estava sob a proteção das tropas americanas, antes de seguir para os EUA. A questão é que temos ali uma beleza que também é a nossa, uma mulher que poderia ter qualquer nacionalidade, um rosto que, se não estivesse mutilado, não apenas despertaria nossa compaixão, mas também nos seduziria. Há um potencial ocidental nesse rosto que impede sua abordagem como exótico. Diferente de pensar “pobre das mulheres daqueles homens”, é como se a violência tivesse agora atingido uma das nossas. Portanto, o próprio fato envolve uma questão de identificação com uma imagem.

– A foto parece ser pouco elaborada, um retrato numa capa como tantas outras que já vimos. Não há uma composição que se destaca, um enquadramento peculiar, um instante decisivo. No site de Jodi Bieber, há vários ensaios que demonstram melhor sua competência. Há coisas realmente boas por lá. Mas e a foto desta capa? Não podemos ser ingênuos: essa simplicidade não deixa de ser uma construção. A fotografia de aberrações (pessoas doentes, deformadas, mutiladas…) é quase um gênero histórico que possui sua própria linguagem.  Mas não é o caso. Temos ali um retrato com um leve toque publicitário: um sombreado ao fundo, um torso precisamente colocado entre a frontalidade e o perfil, um olhar de canto de olho mas que enfrenta a câmera,  um vestuário oriental soft. E claro, aquele rosto que tinha tudo para ser belo. Poderia ser a foto de uma campanha publicitária, de um book de modelo, ou de uma personalidade qualquer que aparece em capas de revista. Nossa perturbação aumenta exatamente porque essa imagem coloca um conteúdo numa forma que parece não lhe pertencer. É uma estratégia forte e precisa que tem antecedentes: August Sanders, Diane Arbus, Joel-Peter Witkin… Acho que a Time teve consciência desse deslocamento, de que mostravam alguém que passou por uma experiência limite de violência do mesmo modo que mostrariam o ganhador do Oscar ou o investidor do ano. Mas duvido um pouco de que os jurados do prêmio tenham passado por questões dessa ordem. Por sua vez, a fotógrafa diz algo que quase segue nessa direção, mas de um modo mais poético: “quis mostrar sua beleza, não quis mostrá-la como uma vítima”. Mas não podemos ser hipócritas: aos nossos olhos, sua beleza apenas agrava sua condição de vítima, escancara aquilo que foi perdido.

– Mesmo que haja grandes trabalhos premiados, sinto que o World Press não se preocupa tanto com a originalidade autoral. Já vimos por lá bichinhos, paisagens, também já vimos acidentes e catástrofes, tudo isso em fotos que são, no máximo, interessantes e corretas. Isso significa que o prêmio valoriza não tanto – ou não apenas – a obra, mas a beleza do fato, a importância do fato, a gravidade do fato, e a capacidade do fotógrafo de estar ali quando as coisas acontecem. É uma concepção clássica de fotojornalismo, também não é a minha preferida, mas tem lá sua legitimidade. Neste caso, não parece ser diferente: o prêmio não considera apenas a foto, mas também a importância do contexto que ela revela e do qual participa. Mas, mesmo os bichinhos e as catástrofes costumam aparecer no World Press com composições mais sofisticadas que essa.  Normalmente, o público ainda diria: “nossa, que foto!”. Aqui, seria: “nossa, que coisa, que desgraça, que maldade!” Talvez, simplesmente: nossa!”.  Os parâmetros não parecem estéticos, imagino que um dos principais ingredientes dessa escolha seja a comoção. Vale explicar. Por comoção, podemos entender um “movimento coletivo”, o desejo de considerar o afeto do público como um componente da comunicação de massa (como fazem explicitamente os roteiristas de novela quando conduzem a trama em função de uma vontade média). Mas claro, essa comoção não é fútil, ao contrário, considera a importância do tema, é politizada no sentido de destacar o papel que a fotografia teve para esse público na compreensão de uma realidade e na afirmação de uma causa. De todo modo, se esta hipótese faz sentido, isso significa trocar um papel “formador” que um evento cultural poderia ter por um papel simplesmente “consagrador”.

Por um instante, eu mesmo achei que poderia chegar à conclusão de que o prêmio foi justo ou injusto. Mas não é preciso trazer o debate para o campo moral. Se estranhamos a escolha, temos que tentar tirar um sentido disso. Construir um olhar crítico sobre as imagens é muito mais produtivo do que reivindicar uma pretensa objetividade das fotografias, das exposições, dos concursos.


"La cámara oscura", em busca de um olhar que transcende as aparências

Zapear a TV a cabo é como a rotina de andar no meio da multidão. Depois de um longo percurso, nenhuma marca, nenhuma história pra contar. Até que um dia, quando a gente menos espera,  a gente dobra uma esquina e vê um rosto, uma expressão, um gesto, algo que nos surpreende e que é capaz de produzir uma experiência.  A TV e, claro, também a internet são as metrópoles dos flaneurs preguiçosos.

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Num desses dias de sorte, pulando de canal em canal, dei de cara com um filme chamado A câmera escura. Opa! Bom motivo pra largar o controle remoto. Filme argentino recente (La camara oscura, 2008), escrito e dirigido pela desconhecida Maria Victoria Menis, traz uma produção simples, uma história delicada e, como o título promete, uma presença forte da fotografia.

Uma família judia aporta na Argentina fugindo da perseguição dos pogroms na Rússia, no final do século XIX. A mulher, que chegou grávida ao país, dá a luz ainda na rampa do navio a Gertrudis, uma menina que dizem ser muito feia. A fotografia aparece em alguns momentos de sua vida mas, sabendo-se feia, ela trata de sempre esconder o rosto.

Mesmo crescendo solitária e introspectiva, ela se casa e tem filhos com um colono, que a escolhe como esposa por uma razão inusitada (que não vou contar). Sua família ocupa bem o seu tempo, mas não consegue livrá-la da solidão. Certo dia, um retratista francês aparece no vilarejo e é contratado para passar alguns dias na fazenda, fotografando a família e o local. O fotógrafo, como ele mesmo explica, viveu experiências trágicas mas aprendeu com o surrealismo a buscar uma dimensão mais profunda e sutil da realidade. E é assim que ele é capaz de ver beleza em Gertrudis que, aos poucos, aprende a encarar a câmera e também a si mesma. Até encontrá-la, o fotógrafo amarga o fato de que, em seu exílio de retratista ambulante, ninguém está preparado para entender suas fotografias experimentais.

Não é um filme difícil, intelectualizado, mas é silencioso, contemplativo e alguns fatos são mais intuídos do que vistos. Exige-se do nosso olhar a mesma capacidade imaginativa que o fotógrafo reivindica.

Em dois momentos, sem maiores explicações, a diretora pede licença para passear por imagens completamente descoladas da narrativa. Primeiro, uma animação que traduz o universo introspectivo da pequena Gertrudis. Depois, num devaneio do fotógrafo, uma série de imagens experimentais que associam elementos do filme com o cinema e a fotografia das vanguardas.

De quebra, o filme dá forma a situações que hoje só conseguimos imaginar a partir dos relatos históricos. Os fotógrafos europeus que tentavam a vida na América e perambulavam pelas pequenas cidades e fazendas, famílias de origem humilde que buscam no retrato uma confirmação de sua recente prosperidade, os “caixotes” que começam a conviver com as primeiras câmeras de pequeno formato, laboratórios improvisados em celeiros. Também vemos ali, didaticamente, como se pode construir um mundo com a fotomontágem, e como funciona uma camara obscura, que no filme se forma acidentalmente, de um modo mais poético do que convincente.

Infelizmente, não é fácil encontrar o filme. Passou muito rápido pela programação de um canal pouco interessante da TV a cabo, não me lembro de ter entrado em cartaz, e não está disponível em DVD nem mesmo na Argentina.

Quem sabe, com um pouco de paciência, conseguimos garimpar e rencontrar em meio à multidão aquele rosto que gostaríamos de olhar mais detidamente.


Sedução da ausência: os descaminhos de um tema de pesquisa

Na minha pesquisa de pós-doc, discuti os trabalhos de Christian Boltanski e Sophie Calle a partir da seguinte hipótese: muitas vezes, a fotografia seduz não tanto pelo que ela mostra, mas pelo que esconde, pela história que  supomos existir e que ela não é capaz de contar. Essa pesquisa virou um artigo, mas não foi oportuno contar ali uma das origens dessa intuição. Esses dias, uma ex-aluna me escreveu pedindo para relembrar o episódio. Decidi compartilhar.

Christian Boltanski, Licée Chases, 1986-7.

Christian Boltanski, Licée Chases, 1986-7.

Em 2000, caminhando na região da Av. Paulista, eu achei uma carta escrita a mão numa folha de caderno: uma mulher respondia a um anúncio de um homem que procurava por sexo sem compromisso. Apesar do assunto, a linguagem era formal, nada erotizada. Ela explicava que morava desde a adolescência com uma família para quem trabalhava. Considerava essas pessoas sua própria família, mas dava a entender que toda sua rotina girava em torno das necessidades deles, e que ela não tinha uma vida social própria. Próxima dos 40 anos, ela dizia ter certas curiosidades e, por isso, respondia ao anúncio. Ela falava da fisionomia e do corpo de forma quase contratual, e assumia não haver ali nenhuma outra expectativa. Ao final, um nome e um telefone.

Essa carta ficou cerca de dois meses pregada numa parede em frente a minha mesa de trabalho. Já não havia mais o que reler, mas eu continuava olhando para ela como uma imagem. Como acontece quando lemos um romance, acabei inventando um rosto para aquela personagem, e desenhei a continuação dessa história de todos os jeitos: rolou, não rolou. Foi só aquilo, foi mais que aquilo. Ela desistiu de mandar a carta e jogou fora. O homem recebeu a carta e jogou fora. Considerei até a possibilidade daquilo ser parte da performance de algum artista que inventa e deixa cartas pelas ruas da cidade.

E aquele número de telefone? Cheguei a ensaiar algumas estratégias de abordagem. Mas tive um surto de bom-senso. Quantas vezes alguma coisa não nos pareceu melhor enquanto exisita como promessa, como fantasia, como utopia?  Qual história seria capaz de mobilizar em mim o mesmo nível de imaginação?

Uma analogia: quem já não se viu cativado por uma foto que encontrou em algum lugar, anônima, sem nenhuma informação ou legenda? Ao contrário, quem já não morreu de tédio diante dos relatos eloquentes que acompanham o “slide show” da viagem que um parente compartilha conosco em seu “home theater”?

Algo assim permite entender a diferença entre a pornografia e o erotismo. A pornografia resolve o desejo e o esgota ao revelar tudo.  Por isso sempre deixa certa frustração. O erotismo alimenta o desejo ao sugerir que há mais para ser visto.

O valor está no que se vê, mas também no que se esconde, no devir. O devir, uma espécie de futuro do pretérito contido naquela carta, era muito melhor do que qualquer desfecho que a história pudesse ter. Em vez da resposta certa, preferi guardar as perguntas. Joguei a carta no lixo.

Com o tempo, isso me ajudou a entender um valor que algumas fotografias possuem: uma justa medida entre o fato que apresentam e a história que não contam,  entre seu poder de referência e seu silêncio, entre seu realismo e a abertura que deixam para o imaginário.

Gostava muito do trabalho de Christian Boltanski e de Sophie Calle, e passei a vê-los como artistas que sabem jogar com essa medida. Numa noite de insônia, esse episódio, esses artistas e algumas leituras se cruzaram, e nasceu o projeto de Pós-Doc que apresentei à Unicamp, chamado provisoriamente de “Sedução da Ausência”. Mas aí começa a história oficial.

Em geral, uma pesquisa acadêmica nasce de escolhas e justificativas bastante metódicas. Mas, uma vez ou outra, eu tive a sorte de ser escolhido por um tema.


Viver o novo e compartilhar emoções

Como sempre, a cidade de São Paulo oferece muitas opções para quem gosta e aprecia a fotografia. Seja diletante, artista, estudante, pesquisador, crítico de artes visuais, a oferta é sempre muito grande e diversificada nos espaços institucionalizados. Neste momento, a Pinacoteca do Estado, exibe Revolução na Fotografia, de Aleksander Rodtchenko; o Instituto Moreira Salles, Uma Antologia Pessoal, retrospectiva de Thomaz Farkas; a Caixa Cultural, Olhar-Imaginário, de German Lorca; o Instituto Tomie Ohtake, Relicário, de Vik Muniz; o Centro de Cultura Judaica, Marcados, de Cláudia Andujar (abertura prevista para dia 15 de março); o Museu AfroBrasil, Antífona, de Gal Oppido; o Sesc Belenzinho, Ituporanga, de Caio Reisewitz;  a Fauna Galeria, Mulheres dos Outros, de Eduardo Myulaert; o MIS, Blues, de Klaus Mitteldorf; entre outras mostras que merecem visitação.

German Lorca, imagem da exposição "Olhar Imaginário"

German Lorca, imagem da exposição "Olhar Imaginário"

Visitar estas exposições é sempre um saudável exercício de leitura visual, pois juntas elas oferecem uma visão panorâmica de qualidade incomum sobre a fotografia moderna e contemporânea. Digo isso porque, tanto no aspecto curatorial quanto na questão da expografia, são perceptíveis as diferenças em termos de abordagens e escolhas assumidas. Isso é, sem dúvida, muito enriquecedor para quem vê as exposições porque, além das informações adquiridas via a própria fotografia, você poderá compará-las no tempo e no espaço.

O que nos cabe indagar é porque a produção mais jovem, que sabemos que existe, dificilmente encontra espaços para exibição. Há poucos meses, tivemos a inauguração da Zipper Galeria, que se assume como o espaço para este tipo de produção, mas cuja primeira iniciativa, paradoxalmente, foi a exposição A casa em festa, de Flavia Junqueira, artista já bem conhecida do público paulistano. Além disso, na edição da Expo Arte Fotografia de 2009, seu trabalho teve expressiva comercialização através de outra galeria.

Sabemos o quanto é difícil manter um espaço para exibição, mas alijar do processo a produção jovem contemporânea é não querer apostar em alternativas que podem a médio prazo se transformar em soluções, inclusive econômicas. Participo como conselheiro de alguns dos mais importantes eventos de fotografia do país e sei o quanto é difícil assumir, mesmo que parcialmente, a exibição dessa nova fotografia brasileira. Geralmente, os principais entraves são o tempo para pesquisar e o compromisso com os patrocinadores, o que significa, em outras palavras, um retorno antecipado e garantido de mídia espontânea.

Quando escrevo nova fotografia brasileira tenho certeza que muitos compreenderão. Nos diferentes encontros realizados em diferentes centros de produção do país, temos acesso aos portfólios e ao jovem fotógrafo – ou seria image maker? Por isso mesmo, sinto que este é o momento de mostrar alguns trabalhos que são produzidos nas várias regiões brasileiras, particularmente aqueles que têm um frescor sintonizado com o contemporâneo. A fotografia numérica, ou digital se quiserem, trouxe novo aprendizado, diferente do convencional. Os jovens que vem investindo nessa produção de imagens mostram-se, mesmo desprovidos em parte de um passado muito técnico, histórico e estético, com coragem suficiente para apontar outros caminhos dentro de uma nova e possível sintaxe fotográfica.

Breno Rotatori, série Bloco de Notas

Breno Rotatori, série Bloco de Notas

É interessante percebermos nessas imagens a singularidade das cores que emergem da tecnologia digital. Cores que não vemos, mas que a câmera registra. Não só isso: temos ainda as texturas diferenciadas, as formas ruidosas, o excesso das luzes que pulsam distintamente e o tratamento da imagem nos ambientes de baixa luminosidade. Esse distanciamento dos procedimentos da fotografia convencional e essa intimidade com os novos ambientes tecnológicos e perceptivos se insinuam como alternativas estéticas. Talvez como outros paradigmas visuais.

Já se falou demais sobre a relação entre a fotografia analógica (de base química) e a fotografia numérica (de base digital), mas ainda não sabemos avaliar sua real contribuição neste exato momento tecnológico. Seguramente, a idéia de produção e criação de imagem a partir da perspectiva artificialis está em crise. Não é somente a crise dos suportes ou a crise de gerações. É um novo olhar que se instaura e que procura seu espaço na atual produção das artes visuais.

Diante desse abismo inexorável em que nos encontramos e cujo poder de ruptura desconhecemos quase completamente, cabe nos perguntar quanto tempo ainda será necessário para que o circuito institucionalizado, incluindo aí o mercado, arrisque mais e comece a exibir e refletir sobre a novíssima produção fotográfica contemporânea. Que tal pensarmos mais seriamente em viver em profundidade essa produção visual e (re)aprender a compartilhar emoções?


Inhotim: espaço e experiência

Neste carnaval, fui conhecer Inhotim. Eu sabia que encontraria obras importantes de grandes artistas, algumas delas já vistas em outras montagens. A surpresa não é a qualidade das obras, mas a experiência.

Ali circulam artistas, críticos, estudantes, turistas, gente perdida, de tudo um pouco. Vez ou outra, uns estranham os comportamentos dos outros, mas o espaço é capaz de satisfazer igualmente a todos.

Inhotim: GoogleMaps

Assimilamos a ideia de que a arte é uma atividade dotada de autonomia, que se justifica por si mesma. Mas a defesa dessa especificidade tem como efeito colateral um distanciamento entre arte e vida cotidiana. Os estudiosos vêem na arte um objeto que exige uma forma própria de conhecimento, os amadores, uma atividade que exige um tanto de solenidade. Uns como outros sempre chegam armados diante das obras, os primeiros com seus métodos, os segundos, com certa mistificação. São igualmente duas formas de preconceito.

Para quem tem boa-vontade, Inhotim oferece a oportunidade rara de se desarmar. Antes e além das obras, encontramos a paisagem, os jardins, as edificações. Claro, jardins e edificações que também são obras de arte assinadas por nomes importantes, mas que estão integradas ao espaço, que são o próprio espaço, e não estão separadas dele por uma moldura, por um pedestal. São obras de arte que podem ser vistas enquanto se perambula, que não tem o peso dessa “especificidade” e, portanto, que não ativam de imediato o olhar analítico ou o olhar deslumbrado que se carrega quando se abandona a rotina para entrar num museu.

Inhotim tem o mérito de permitir um pouco de vida em torno das obras, algo que talvez não tenha sido planejado desde o início. Parece ser o desdobramento natural de sua origem: um investidor que gosta de arte, bem assessorado e bem acompanhado por gente que entende do assunto, decide colocar obras consagradas no jardim de casa para deleite próprio e de seus convidados. Não chega a ser uma estratégia curatorial, mas talvez combine os ingredientes necessários para tocar o grande público.

A experiência que produz é o contrário da imersão, que pressupõe abandonar um meio para acomodar-se a outro. As bienais exigem imersão: passa-se dias vendo, pensando, respirando arte. Lá, não. Os mais sistemáticos, que têm em Inhotim muito material para pesquisa, também se perdem um pouco em coisas banais como um recorte da paisagem, a vegetação, os animais, um bom café e, mais cedo ou mais tarde, deixam escapar adjetivos nada especializados. Em contrapartida, os mais perdidos, que tinham Inhotim incluído no pacote, certamente aprendem muita coisa quase sem perceber.

O ambiente que oferece é o oposto do “cubo branco”, ideal de espaço que pretende se neutro em torno da obra. Mesmo quando não se exige, tudo parece ser tratado como “site specific”. O espaço sempre aparece, ou porque foi desenhado para a obra, ou porque a obra foi concebida para aquele lugar, ou porque espaço e obra são indistintos.

A disponibilidade de espaço é tamanha, as galerias são tão generosas que quase despertam certo moralismo: “tanto museu improvisando seus puxadinhos, tanta obra sem um pedaço de parede pra ser pendurada…!”. Mas é interessante perceber como essa amplitude muda nossa relação como a obra: a possibilidade de chegar perto, de se afatar, circular, atravessar a obra; se for o caso, também de olhar para onde a obra não está, vivenciar o ambiente, a arquitetura, para logo depois ser fisgado novamente pela obra. Um exemplo próximo de nós: mesmo que pareça que já vimos o bastante, é incrível entrar literalmente em alguns trabalhos de Miguel Rio Branco.

Galeria Miguel Rio Branco

Pavilhão Miguel Rio Branco

Não devemos tratar essa amplitude luxuosa como um ideal de espaço que deveria substituir o “cubo branco”. Se temos ali um bom laboratório de como a arte pode ser vivenciada por um olhar menos tenso, Inhotim continua sendo um espaço distante, excepcional, nada cotidiano. Fica a experiência, mas resta saber como ela poderia ser construída também em outros centros culturais, nos espaços públicos, nas ruas das cidades.

Dentro e fora das galerias, há uma legião de monitores que integram um belo projeto de formação que inclui muitos moradores da modesta cidade de Brumadinho. Não se pode esperar deles que saibam discutir as obras e os artistas, é natural que precisem de mais tempo. Mesmo assim, é muito bom ouvi-los falar sobre o que aprenderam ali. São algumas falas mais institucionais que incomodam. Quando perguntados sobre a história do lugar, eles têm na ponta da língua um discurso sobre “a doação daquele patrimônio à socieade”. Não que seja fundamental, mas algumas informações sobre as personalidades envolvidas no projeto são tratadas como tabus para eles. Quando provocados, a resposta vem num estilo atendimento ao consumidor: “não tenho essa informação, senhor”. Isso apenas ajuda a alimentar algumas fantasias junto ao público.

Ao lado das obras, sempre encontramos um pequeno texto. Algo necessário, mas é preciso ter cuidado com o que se pode fazer com dois parágrafos. Depois de uma apresentação do artista, um pouco propagandística às vezes, sempre vem uma explicação suscinta sobre a obra. Tentando dar conta do aspecto conceitual da arte contemporânea, esse texto sempre corre o risco de antecipar “o que a obra quer dizer”, impondo um jogo poético de palavras, mas sem necessariamente alcançar uma conexão com o que se vê.

Cildo Meireles, Desvio para o vermelho I, 1967-84 (foto: Pedro Motta)

Cildo Meireles, Desvio para o vermelho, 1967-84 (foto: Pedro Motta)

Em Inhotim, essa coleção formada entre o prazer privado e o conhecimento técnico tem o mérito de resultar num conjunto denso e amigável ao mesmo tempo. Encontramos alguns clássicos da arte contemporânea, obras que podem render um bom papo-cabeça, mas que também enchem os olhos: são plásticas, monumentais, interativas, lúdicas, revelam histórias curiosas em seus materiais, em sua montagem, em seu modo de funcionamento. Não vemos ali uma fração da arte contemporânea que se pretende desmaterialziada, anti-estética, avessa a qualquer forma de contemplação, e que exige mais esforço para fazer sentido. Inhotim não tem nenhuma obrigração de mapear todas possibilidades da arte contemporânea mas, como um próximo desafio, seria interessante testar esse espaço amplo e bem cuidado diante de produções artísticas menos espetaculares e mais arriscadas. Isso significaria dedicar esse investimento não apenas à consagração, mas também à construção de uma arte contemporânea.

Feitas essas ponderações, o que fica é uma experiência incrível. Há boas lições pra se tirar dali. Tem que ir. E como ainda se trata de um espaço em construção, tem que voltar de vez em quando.


Viva Farkas!

Thomaz Farkas, São Paulo, década de 40

Na última sexta-feira a fotografia brasileira perdeu o seu maior entusiasta: Thomaz Farkas. Também o cinema perdeu a inteligência e a sensibilidade de um dos nomes mais emblemáticos da imagem criativa da segunda metade do século XX. Trabalhamos juntos na Coleção Pirelli-Masp por 20 anos e em muitas outras oportunidades. Posso afirmar que sua alegria de viver intensamente todos os momentos sempre foi explícita e a imagem, em particular a fotografia, foi uma das suas paixões mais delirantes.

Desde o início dos anos 1940, quando participa do Foto Clube Bandeirante, inaugurado em 1936, sua vida foi pautada pela criação e propagação da fotografia brasileira. Em 1949 realiza a convite de Pietro M. Bardi a primeira exposição de fotografia no Masp. No começo dos anos setenta publica uma revista mensal que durante anos foi referência para toda uma geração de fotógrafos brasileiros e em outubro de 1979 concretiza a Galeria Fotóptica, especializada em fotografia. Tornou-se um empreendedor cultural muito antes da era dos patrocínios e dos burocratas da cultura. Também foi professor da Eca-Usp, presidente da Cinemateca Brasileira e membro do Conselho da Bienal Internacional de São Paulo.

Ele sempre explicitou sua preferência pela fotografia documental e pelo fotojornalismo. Com sabedoria defendia a fotografia como uma possibilidade de expressar e sintetizar as emoções humanas. Sua simplicidade de análise significava que independentemente dos procedimentos utilizados, a imagem jamais deveria estar associada a justificativas e explicações, pois qualquer tipo de verbalização retira da fotografia o seu mistério. “A fotografia emociona ou não emociona”, dizia Farkas a partir de sua sofisticada experiência com a imagem.

Sabemos hoje que Farkas foi um dos mais criativos fotógrafos da chamada Escola Paulista, mas ao assumir a direção da Fotóptica, centrou sua energia num arrojado projeto de fortalecimento da marca durante décadas. Imerso neste mundo do trabalho, sem nunca se desvincular do cinema e da fotografia, seu trabalho fotográfico reaparece somente nos anos noventa e tornado público se insere definitivamente na cronologia da fotografia brasileira. Após exibir, valorizar e publicar centenas de fotógrafos é que timidamente resolveu mostrar sua produção.   Aparentemente um paradoxo, mas na realidade isso evidencia sua personalidade generosa e seu caráter ético inquestionável.

Sempre se assumiu como um fotógrafo amador. Amador na essência etimológica mais expressiva – aquele que ama o que faz. Por isso mesmo seu trabalho é admirado e surpreendente. Valorizava a fotografia instintiva, intuitiva, consciente de que “enquadrar é eliminar tudo aquilo que está atrapalhando”. Basta ver seus trabalhos em exposição no Instituto Moreira Salles para entender com mais clareza suas idéias. Quando há um formalismo construtivo dominando a imagem, elas são pontuadas pela geometria e beleza, equilíbrio e leveza, ou seja, aquilo que ele defendia como sendo uma “visão essencial”. Sua fotografia transita pelas linhas diagonais, que geram assimetrias e ordenações rítmicas vertiginosas.

Thomaz Farkas, Rio de Janeiro, 1945.

Dentro do movimento da fotografia paulista moderna, tardia diga-se, Thomaz Farkas, ao lado de Geraldo de Barros, Benedito Junqueira Duarte, German Lorca entre outros, produziu uma fotografia provocativa, centrada em parte no questionamento das referências visíveis, buscando descolar a imagem técnica de uma leitura mais imediata. Sua fotografia tornou-se paradigma da melhor fotografia produzida de forma independente nesse período, que desestruturou a tradição pictorialista e acadêmica do movimento amador.

Farkas com seu ímpeto transformador, seu espírito inquieto e seu olhar apurado colabora para esta nova fotografia que percorre o Brasil e o mundo através dos salões e dos concursos promovidos pelos fotoclubes. Mas isso foi insuficiente para o jovem que buscava fazer outra fotografia. Queria não apenas exibir-se, mas principalmente trocar idéias, revolucionar o pensamento visual. Essa atitude decorre do acesso que teve aos livros e revistas estrangeiras que circulavam pela empresa familiar, a Fotóptica. Daí as influências perceptíveis das vanguardas históricas, tanto na série surrealista que desenvolveu com os amigos da Escola Politécnica, quanto na série sobre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, quando radicalizou o registro sem grandes interferências no “real”, e articulou novos e inusitados ângulos de tomada, cortes e aproximações geométricas de toda ordem.

Manteve contato com o fotógrafo norte-americano Edward Weston e de alguma forma os trabalhos de Moholy-Nagy, Alexander Rodtchenko, André Kertész foram inspiradores durante o seu percurso. E claro, as fotografias de Robert Capa e Cartier-Bresson, também o fascinava. Nessa mistura fina entre o documental e a experimentação é que desenvolveu um trabalho que aos olhos de hoje podemos afirmar que é perturbador justamente porque é múltiplo, vibrante e intenso.

A obra fotográfica de Thomaz Farkas tem uma surpreendente coerência interna porque articula uma ordem formal na desordem dos signos cotidianos. Ele produz uma fotografia direta que provoca uma nova maneira de ver, capaz de desorientar os sentidos e nos conduzir a estranhos silêncios. A renovação é a tônica do seu trabalho porque além de situar a fotografia no terreno da expressão artística, interroga-a permanentemente. Um diferenciado conjunto visual, carregado de emoção, que se transformou numa das experiências mais criativas da fotografia brasileira.

Encerramento do 2a Seminário de Cinema e Fotografia da Facom-FAAP, 2010

Perdemos Thomaz Farkas, um amigo carinhoso que vivia sob o signo intenso da paixão, mas suas lições (nunca intencionais claro) e suas fotografias estarão presentes para todo o sempre em nossas memórias. Viva! Viva a fotografia!


Colecionador de Olhares Desaparecidos [parte 1]

Primeiro Ato

Em 2009, passeando pela Feira do Bixiga, em São Paulo, num domingo qualquer, me deparei com um estranho amontoado de fragmentos fotográficos. Simplesmente uma coleção de recortes fotográficos, ou melhor, dezenas de fotografias rasgadas aos pedaços. Sim, quem resolveu jogar fora as fotografias também decidiu rasgá-las como meio de tentar fazer desaparecer suas imagens do passado.

Incomodou-me o fato de alguém ter tido a coragem de descartar sua própria história, por pior que seja. Tudo me perturbou: as fotografias rasgadas, os japoneses retratados, aqueles rostos desconhecidos, as roupas, os textos ideogramáticos, quase desenhos nos versos das imagens, enfim, um rico material descartado por alguém sem a mínima sensibilidade nem qualquer perspectiva de memória.

Indaguei um pouco sobre a origem do material. Teresa, minha fornecedora, me falou que tem alguns meninos que recolhem material descartado (ou seria lixo reciclável?) “treinados” para de encontrar algo com algum diferencial. Então, apesar de alguém ter rasgado e jogado no lixo, aquele material foi, primeiramente, valorizado por um anônimo garoto que percebeu algum potencial naqueles fragmentos. Teresa não queria ficar com o material, mas precisa da rede de meninos para abastecer o seu negócio, pois a qualquer momento poderá encontrar algum diamante que mudará sua vida. Ela acabou me convencendo da necessidade de ficar com aqueles fragmentos, apesar de parcialmente destruídos.

Aquelas fotografias rasgadas “imploraram” e acabaram em meu arquivo. Pensei em aproveitar algumas delas, raras de encontrar disponível por tratar-se de iconografia de um tempo passado e de uma situação de intimidade familiar. O material ficou guardado por algumas semanas esperando oportunidade de ser remontado e resignificado.

Segundo Ato

É incrível como nós, brasileiros de modo geral, não sabemos valorizar os pertences familiares. O que levou a pessoa a se desfazer do material e de maneira tão violenta e destrutiva? Qual seria o percurso dessas imagens familiares ao longo da sua história? Será que as fotografias que remetem ao início do século pertencem àquela história familiar? Quem seriam estes japoneses retratados em tantas ocasiões? Quantas famílias estão envolvidas nas fotografias? Será que existe troca de fotografias entre os familiares do Japão e os daqui do Brasil? Qual será o significado daqueles lindos ideogramas nos versos das fotografias? Quantas gerações estarão presentes nestas imagens? Como elas migraram para São Paulo? Que caminhos percorreram?

São muitas as perguntas e quase sempre sem respostas, mas estas dúvidas me estimularam e por isso mesmo acabei adquirindo as fotografias abandonadas na lata do lixo da história. As evidências eram apenas aquelas deixadas na própria fotografia, como o nome do fotógrafo, poucas datas, alguns estúdios, as cidades envolvidas, os índices presentes na própria imagem a partir do aculturamento do grupo. É perceptível que o grupo era conservador pois as roupas e alguns gestos flagrados nos dão evidências que aconteceu um processo de mestiçagem cultural. Enquanto as primeiras imagens são nitidamente “japonesas”, as mais recentes já mostram grupos miscigenados – ocidentais, negros e japoneses.

Terceiro Ato

Como sou um colecionador de olhares desaparecidos, senti o potencial existente naquela mala abandonada com fotografias rasgadas. Comecei a unir os fragmentos no terceiro ato, como se estivesse numa trama dramática de memória e esquecimento. Por enquanto, são imagens quase anônimas encontradas no lixo por um catador de papel, que as repassou para uma vendedora da Feira do Bixiga, chegando então às minhas mãos. Tudo ainda muito insuficiente para ganhar relevância. De qualquer maneira, o fato de ter percorrido esse estranho caminho – o objetivo inicial do descarte era simplesmente o esquecimento e o apagamento – e ter caído em minhas mãos é uma surpreendente coincidência. Um material perdido resignificado poderá ganhar contornos inimagináveis. Como se apresentou para mim e não por acaso, após alguma pesquisa e reflexão, busquei reencontrar os fios que tecem esta história.

Montei aproximadamente 40 fotografias, entre as quais selecionei algumas para a exposição Terceiro Ato, agora apresentada no 5º FestFotoPOA – Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre. Passei um tempo montando este quebra-cabeça, sem fazer emendas definitivas, mas conectando os pedaços para tentar entender o conjunto. Estas fotografias contam uma história que perdeu os seus elos ao longo do caminho e fez alguém descartá-las. Claro, antes disso, precisava desfigurá-las, destrui-las. Mas, perguntas ainda ressoam em minha cabeça: fotografias rasgadas continuam fotografias? Porque tornar novamente visível aquilo que foi violentamente descartado?

Bem, a exposição é o resultado parcial dessas inquietações. Resignificadas, as fotografias continuam rasgadas só que agora são vistas em outro circuito. Assumi a cor e os desenhos entre os pedaços que não querem se juntar, mas se transformar em outros ideogramas que clamam por novos significados e por uma nova existência. Que buscam dar evidências de sua importância do ponto de vista técnico e histórico. Vamos compreender esta exposição como uma tentativa de recuperar o prestígio destas fotografias abandonadas e como uma colaboração que busca reconstruir uma memória anônima tão importante quanto qualquer memória oficial. Isso é parte de um projeto pessoal mais amplo que é a valorização da fotografia produzida por fotógrafos desconhecidos e por fotógrafos amadores Brasil afora, que não foram contemplados, muito menos valorizados ao longo destes 170 anos de história.


“Terceiro Ato”. Vídeo feito por Cia de Foto e Galeria Experiência


Pequeno tratado sobre a destruição de imagens

Exposição "Terceiro Ato", de Rubens Fernandes Junior. FestFotoPoa, 2011

Fiquei pensando muito no que leva alguém a rasgar fotografias, como aconteceu com as imagens que Rubens Fernandes encontrou e acolheu em sua coleção (quem chegou agora, tem que ler o post anterior). Uma maneira de responder seria pensar às avessas o que leva alguém a produzir imagens. Arbitrariamente, pensei em três possibilidades ligadas ao que poderíamos chamar de “pensamento mágico”, “pensamento simbólico” e “pensamento burocrático”. Em cada um deles, e sucessivamente, existe um nível menor de vinculo entre a representação e o mundo, portanto, também um nível menor de afetividade envolvida.

 

Arquivo pessoal.

O pensamento mágico é uma categoria clássica. Nele, existe uma sobreposição entre a representação e o mundo: pronuncia-se habilmente um nome e aprisiona-se o ser denominado; manipula-se uma peça de roupa ou um chumaço de cabelo para afetar a vida de seu dono; espeta-se um boneco para ferir o corpo verdadeiro. Esse é considerado um modo de pensamento primitivo, mas que se resgata em qualquer tempo a partir de relações fetichizadas (enfeitiçadas) que podemos construir com as coisas: quem nunca nunca guardou carinhosamente a foto de alguém que ama, como se cuidasse da pessoa fotografada? Aqui, é fácil imaginar o contrário: quantos já não picotaram essa mesma imagem porque essa pessoa não merecia o carinho que lhe era dedicado?

 

Memento Park, Budapeste. Fragmento da estatua de Stalin, destruída em 1956. Atualmente, o parque acolhe as esculturas que foram imediatamente retiradas de todo o país, após a queda do regime comunista em 1989.

No pensamento simbólico, guarda-se alguma diferença entre a representação e o mundo, a primeira é uma via de expressão sobre o segundo. Os cristãos, para não se confundirem com as comunidades pagãs (marcadas pelo pensamento mágico), se esforçaram para afirmar a distinção entre a imagem de Deus que cultuavam e o próprio Deus que, aí sim, adoravam. Mas aqui está situado um amplo universo de possibilidades, com a implicação de níveis diversos de afetividade: a aliança no dedo que afirma o compromisso com alguém, o monumento que lembra um episódio ou personagem da história de um país, a roupa que sugere o pertencimento a uma geração. São rituais da cultura que garantem a construção das identidades individuais e coletivas. Podemos imaginar que, às vezes, essa construção exija algumas destruições, uma negação que é em si simbólica: sumir com a aliança de um casamento fracassado, recusar um emblema patriótico associado à repressão política, doar solenemente a roupa que ligava alguém a uma idade que se deseja superar. Mesmo o cristianismo teve que destruir às vezes suas imagens para demarcar sua negação ao paganismo idólatra. Não que seja óbvio, mas podemos pensar que as mesmas imagens que participam de um ritual de memória podem ser convocadas para participar de um ritual de esquecimento.

 

Queima de livros "anti-germânicos", Berlim, 10/05/1933

No pensamento burocrático, as representações estão ligadas a seus objetos pela simples força de um poder, sem qualque traço afetivo. É assim que o número do PIS representa o trabalhador, um uniforme representa uma escola, um carimbo representa certo direito do cidadão. Signos como esses podem ser descartados sem qualquer solenidade, porque estão muito fracamente ligados ao que representam: ninguém sofreria se abolissem o PIS. Mas vejam, para o poder fascista tudo pode ser tratado como questão burocrática, a arte, o conhecimento, até mesmo a vida pode ser descartada quando não demonstram utilidade e adequação à ideologia imposta, a única realidade que reconhece. Algumas imagens são usualmente tratadas de modo burocrático: a que o seguro fez do seu carro amassado, aquela em que você aparece no casamento da filha da prima que você nem chegou a conhecer, ou todas as fotos que vão pro lixo com o obsoleto jornal de ontem. Essas imagens são destruídas sem qualquer solenidade, culpa ou explicação.

 

A partir desse raciocínio, podemos tentar inventar uma história para as fotos rasgadas da coleção do Rubens.

Elas podem ter sido destruídas num surto de fúria, típico de quando um laço afetivo profundo é rompido: por exemplo, quando alguém se sente traído pelo melhor amigo, quando uma “Capuleto” se casa com um “Montechio”, quando uma esposa é vítima de violência física ou moral por parte do marido. Aqui, o ódio que move a destruição das imagens é um sentimento tão verdadeiro quanto o amor que garantiria sua produção e sua preservação. Há portanto um sentido. Mas não parece ser esse o caso. Uma ação passional desse tipo está normalmente associada a um ou outro indivíduo específico, não a toda uma comunidade, e levaria à sua exclusão abrupta, a uma destruição violenta, não ao gesto quase sistemático de rasgar as imagens como vemos aqui.

Elas podem ter sido destruídas num ritual íntimo de libertação: alguém que, em devoção ao novo amor decide romper todos os vínculos com os amores antigos; alguém que, tendo cumprido o luto pela morte de um ente querido, deseja smplesmente seguir em frente; alguém que assume definitivamente as raízes com um novo país que não aquele em que nasceu. Aqui, o ritual de esquecimento tem um ônus, mas também um ganho afetivo, perde-se algo para se conquistar algo. Portanto, também tem algum sentido. Como o gesto parece visar toda uma família, ou mais, a toda uma comunidade, poderíamos pensar: será então que alguém da quarta ou quinta geração de uma família japonesa teria desejado se libertar dessas raízes para se tornar brasileiro? Difícil imaginar algo assim. Isso só faz sentido quando a história impõe algum antagonismo: pode haver motivos para um judeu não reconhecer sua origem alemã; para um africano ou latino-americano não se identificar com a história ligada à violência de seus antepassados colonizadores, para um ucraniano não se sentir parte da União Soviética, coisas assim. Mas a história do Brasil está profundamente vinculada à presença de seus imigrantes. Reconhecer a origem estrangeira apenas afirmaria uma história tipicamente brasileira. E, como disse o Rubens, aquelas imagens são representativas dessa passagem cultural.

Tristemente, o que resta é uma razão burocrática para o descarte. Os rasgos sistemáticos parecem produzidos por um gesto quase mecânico exercido sobre algo já desprovido de sentido. Como um escritório que coloca “velhos papéis” na picotadora antes de mandar para reciclagem. Ali, já não se reconhecia uma memória, não havia uma causa contra a qual lutar ou uma origem da qual se libertar. Já não havia sequer uma imagem. Não há pessoas, apenas formas que compõem uma idéia vaga e abstrata de família, mais ou menos como a imagem de uma planta representa sua categoria vegetal num livro escolar. O único aspecto ritual que existe na ação de rasgar deste modo os documentos – sejam os papéis do escritório ou estas fotografias – parece ser a afirmação da propriedade privada (a privacidade): não se dá a terceiros o direito de buscar sentidos naquilo que seu proprietário decretou como insignificante. Portanto, rasgar essas fotos era uma maneira de evitar qualquer outro interesse possível sobre as imagens, evitar que pudessem pertencer a uma coleção.

Exposição "Terceiro Ato", de Rubens Fernandes Junior. FestFotoPoa, 2011

Mas a memória tem sua redenção nesse gesto de reapropriação afetiva de imagens de pessoas anônimas, feito por este “colecionador de olhares desconhecidos”.  Contra este gesto afetivo, o gesto de destruição das imagens se mostra impotente, porque o que motiva a coleção não tem nada a ver com a possibilidade de ser o novo proprietário de uma antiguidade bem preservada. Tem a ver com um olhar que aprendeu a se alimentar tão espontâneamente de memórias que o valor material do objeto se torna secundário.  Sob essa perspectiva, o gesto burocrático e destrutivo apenas torna essas imagens ainda mais carregada de um sentido potencial, porque é uma memória sobrevivente.